No
Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas
O
mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns
países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes
planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os
Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.
Com
oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado.
Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo
com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se
estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.
Bolsonaro
recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na
Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma
vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não
pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os
paióis do País.
O
programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos
e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.
Bolsonaro
prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do
que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O
Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a
lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora,
pesquisar antivirais eficazes.
No
outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos
realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita.
Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose.
Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando
um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.
Ainda
não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que
talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em
quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual
o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de
tempo?
As
vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de
brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do
uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.
O
Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais
gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se
vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido,
por esse caminho, a imunização de rebanho?
Se
abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema
parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se
encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as
associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do
mundo.
São
grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria
conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o
significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a
superfície.
É
uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo
branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo
QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se
reúnem em porões de pizzaria.
Com
a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível
alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais.
Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua
tese.
O
fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando
ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da
conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por
meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de
ambos foi um acidente histórico, uma alerta.
Isto
não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá
tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.
É
possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden.
Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas
que o tornaram possível.
De
certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista
como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça
nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.
Com
Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não
bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina,
enfraquecer a busca nacional por esse recurso.
Em A
Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos
Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam
de mãos dadas.
*Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário