“Rombo”
fiscal se arrasta desde os anos 1980, com breve período de exceção
O
país vive um momento em que decisões na economia vão ter grande impacto nos
próximos anos, de forma mais ou menos análoga ao que os ex-presidentes Geisel e
Figueiredo viveram quando dos choques de preços do petróleo em que optou-se por
pisar no acelerador ao invés de ajustar a economia àquela condição de grave
restrição. Foram os 20 anos seguintes de elevadíssimas taxas de inflação, só
domada após o Plano Real, em meados de 1994. Ao ouvir as alternativas que tinha
à mão na ocasião, Geisel teria dito: “Mas logo na minha vez vocês querem brecar
a economia?”.
O
momento, agora, é o retrato de um desequilíbrio que está na cobertura da
imprensa desde a crise da dívida externa nos anos de 1980, quando os
jornalistas de economia começaram a escrever sobre o “rombo” nas finanças
públicas. Para alguns, iniciava-se alí um aprendizado da importância da
política fiscal para a estabilidade da economia.
Foi
a partir de um acordo de socorro financeiro com o Fundo Monetário Internacional
(FMI), que preconizava austeridade nas contas do setor público como medida de
controle da inflação, que tomou-se conhecimento das metodologias de cálculo do
déficit e o assunto passou a ser parte da pauta de cobertura da imprensa de
1983 para cá.
O
fato é que os governos não foram capazes de resolver, até hoje, as restrições
fiscais que se arrastam, freiam o crescimento da economia e atrasam a vida de
milhões de brasileiros. Houve períodos de enfrentamento, quando no segundo
mandato o governo de Fernando Henrique Cardoso começou, em 1999, a política do
tripé macroeconômico calcado no regime de metas para a inflação, câmbio
flutuante e superávit primário nas contas públicas.
As
primeiras iniciativas de abandono das metas fiscais começaram no segundo
mandato de Lula, mas foi Dilma Rousseff que deu um basta nos superávits e
inaugurou o tempo dos déficits públicos. Ficou famosa a definição da presidente
de que “gasto [público] é vida.”
Na
gestão de Michel Temer foi aprovada a PEC do Teto do Gasto, pela qual o aumento
da despesa anual é limitado à correção pela inflação acumulada em 12 meses até
meados do ano anterior. Foi uma forma, talvez dura demais, de lidar com uma
expansão desmedida do gasto público nos últimos quarenta anos.
Quando
Bolsonaro assumiu, parecia muito claro no discurso do ministro Paulo Guedes o
entendimento da dimensão do problema. Mas o tempo mostrou que o presidente não
comungava das convicções liberais do ministro da Economia nem tinha a
compreensão das limitações que o “rombo” das contas públicas impunha aos seus eventuais
planos de governo.
Bolsonaro
nunca gostou das privatizações, não apoiou a reforma da Previdência, aceitou a
reforma administrativa desde que vigorasse só para os novos entrantes no setor
público e não concordou com a proposta de reestruturação dos programas
assistenciais (tais como o abono salarial, seguro-defeso e vários outros) para
financiar um projeto de renda básica. O Congresso, nesse aspecto, foi mais
reformista.
O
presidente, definitivamente, não lida bem com as restrições que lhe são colocadas
pelo “buraco” das contas públicas. Mas não há muitas alternativas para ele a
não ser a perda da confiança e da credibilidade na sustentação da trajetória da
dívida pública como proporção do PIB. Dívida que era de 51,7% do PIB em 2010 e
uma década depois já encosta em 100% do PIB. Os economistas do setor público e
privado entendem que esse não é um patamar sustentável e o mercado reage
mudando os preços dos ativos.
Dois
sinais muito claros dos mercados nos últimos meses são: a inclinação da curva
de juros que dá uma diferença grande, de cerca de 500 pontos-base, entre as
taxas de longo prazo e as de curto prazo; e a desvalorização de 40% do real
frente ao dólar americano.
“A
trajetória da dívida começa a estar sob os holofotes”, diz uma fonte que opera no
mercado desde os anos 1970. “A questão fiscal não está equacionada e a aparente
guinada de Bolsonaro para acordos políticos torna inverossímil a possibilidade
de um ajuste”, avalia.
Sem
a pandemia da covid-19, a história seria diferente?, indaga ele, que responde:
“Marginalmente, seria diferente porque os agentes entenderam a pandemia como um
evento ‘once for all’ do ponto de vista fiscal. Foi preciso gastar R$ 900
bilhões e não dá para chamar isso de irresponsabilidade fiscal”, diz a fonte.
A
pandemia, porém, empurrou o endividamento para a casa dos 100% do PIB.
Isso
não seria um enorme problema se fosse possível manter a taxa de juros baixa.
Mas
a inclinação da curva está dizendo que a taxa de juros de curto prazo, a Selic
de 2% ao ano, está fora de lugar.
Uma
enorme diferença entre agora e os anos da década perdida de 1980 é a taxa de
câmbio flutuante que somada às reservas cambiais dá um conforto na área externa
e afasta o risco de uma crise cambial. De positivo, atualmente, o país tem
juros baixos (condicionado à responsabilidade fiscal) e taxa de câmbio
desvalorizada.
Em
artigo publicado na “Folha de S.Paulo” do fim de semana, Arminio Fraga,
ex-presidente do Banco Central, sugeriu um roteiro de mudanças possíveis com o
retorno à meta de primário como âncora fiscal, já que o teto do gasto levaria
cinco anos para colocar o país em uma situação de equilíbrio das contas
públicas. Arminio não acredita que o país tenha todo esse tempo. Ele propõe uma
pequena folga para o teto e um ajuste de seis pontos percentuais do PIB nos
próximos quatro anos, pelo qual o déficit primário de 3% do PIB de 2019 se
converta em superávit de 3% do PIB em 2024.
“Não
quero acabar com o teto, mas dar uma pequena folga de 1% além da inflação
porque no curto prazo dá um espaço de manobra e, no longo prazo, eu prefiro ter
um governo em condições de investir na redução das desigualdades”, explica ele.
Outro
ex-presidente do BC, Affonso Celso Pastore, em artigo publicado no “Estadão”,
alerta para o risco de o Banco Central ser forçado a tomar medidas de repressão
ao livre movimento de capitais para evitar uma eventual sangria nas reservas.
Tal
situação decorreria da dominância fiscal - da qual a dificuldade na
administração da dívida é uma primeira manifestação - que leva à inflação e à repressão
financeira, com todas as distorções que ela produz.
O tempo corre, o ambiente se deteriora e o governo espera passar as eleições para tomar uma atitude.
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