Ouvi essa expressão quando entrei na faculdade de filosofia (feita para moças e veados, tal era o estigma, conforme algumas pessoas disseram, encorajando-me) para me bacharelar em História, e ser um merda de um professor, conforme vaticinou um médico que queria namorar a minha namorada. Estávamos nos acabados anos 50.
Foi
de professores dedicados que ouvi o axioma: “Tudo é político”. E a vida também
é política? Ou haveria, além da religião, da filosofia e da coragem de honrar o
Humano, uma política para o sofrimento, o inesperado e a morte?
Fiquei
aturdido com essa tonelagem que meus jovens ombros recebiam quando descobri a
responsabilidade de ser um protagonista no futuro do Brasil. A descoberta da
política como um modo de reler a minha existência na qual um copo d’água ou um
beijo seriam um ato político, reitero, assustou-me.
Primeiro,
porque passava de objeto a sujeito. Depois, porque eu percebia que a maior
parte das pessoas não se dava conta de sua importância num mundo que ficava
cada vez maior e menor. Quando descobri a fórmula, virei o que chamávamos de
“conscientizado” por oposição aos “alienados”. Aqueles que simplesmente viviam
sem ter o menor vislumbre de suas qualidades ou motivação para ir além de suas
rotinas.
Um
jovem a enxergar prisões em todo lugar e eu logo vi a religião como uma delas.
Depois, no auge da minha jornada, classifiquei tudo e todos como “alienados”.
Seria não político o amor familiar? Gostar de filmes americanos? Ler Joaquim
Nabuco? Como ser igualitário com crianças a serem nutridas e disciplinadas?
Seria possível escapar de um permanente debate e destino político?
Virei noite falando disso com meus amigos. O casamento, a paternidade e a vida profissional sem privilégios de família foram definitivos para uma parada meditativa. Sem dúvida, tudo era político. Sobretudo, era claro, para os políticos e os filhos, compadres, companheiros e amigos dos políticos. A antropologia social relativizou-me antes do livro que escrevi – Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social.
Não
seria mais sensato dizer que a política é uma parte importante da vida? Não
seria mais inteligente descobrir que alienados e conscientizados trocam de
lugar? Se todos são alienados, como queria o Simão Bacamarte da história de
Machado de Assis, não seríamos nós os conscientemente alienados, conforme
repetia papai aceitando sereno a minha postura revolucionária sustentada por
ele – o alienado maior?
Tempos
depois, vi com nojo e decepção como o axioma de que tudo é política desembocava
num outro pressuposto: o de que tudo era poder e exercer o poder em nome dos
oprimidos permitia ir além de todos os limites. Também tenho vivido a
oportunidade de reconstruir um outro lado – o lado de uma direita sempre
envergonhada e estigmatizada, bem como alienada – jogado no lixo pela
ignorância e pelo mesmo protagonismo dos condenáveis laços de família. Esses
hóspedes não convidados segundo analistas políticos brasileiros.
Assim
tem sido meu aprendizado do tudo é mesmo política.
E
assim sendo, nada se pode fazer para inibir uma moralidade nacional na qual as
obrigações devidas aos compadres, companheiros e parentes (sobretudo aos
filhos) são uma forma silenciosa de fazer política. Ela, de fato e de direito,
engloba o chamado “político”, tirando-o de sua impessoalidade – essa dimensão
crítica numa democracia é concretizada pelo voto secreto. Pois o segredo e o
impessoal contêm a semente da intimidade – esse avatar da liberdade
igualitária.
*
Assisti
feliz às comemorações dos 80 anos de Pelé – um dos maiores personagens
positivos da vida brasileira. Nada roubou, a ninguém enganou com seu
extraordinário talento e o peso do negrume glorioso de sua pele.
Vida
e morte ancoram a existência. Morre o ator Sean Connery, que encarnava na
ficção do cinema a idealização mítica de um agente secreto estilo Pelé em luta
contra o mal. Um mal sempre atenuado nas aventuras de James Bond (o simbólico
Ligador) por romances sensuais machistas, porém sedutores. Quem não queria ser
o 007 ou a namorada dele?
Morto
o ator, fica – eis o segredo dos mitos – o personagem na sua representação
imortal a indicar que, pelo menos no cinema, o bem vence o mal.
Coisa
cada vez mais complicada de acreditar neste mundo globalizado e, sobretudo,
neste Brasil no qual as “fake news”, esses veículos de calúnia e mentira, são
levadas a sério ao lado da burrice como política, conforme revela a questão das
vacinas contra a pandemia.
–
Papai, disse um amado filho para um pai idoso, afinal o 007 morreu bem. Noventa
anos é um bocado de vida.
–
É muito para quem tem 50, 60 ou 70 anos. Mas para mim, com 84, os 90 são um
muro, tipo fronteira. Seriam mais seis curtos anos e depois...
*É historiador e antropólogo social, autor de ‘Fila e Democracia’
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