O
final desta eleição tensa e deste tempo infeliz pode ser o fortalecimento da
democracia americana. Os Estados Unidos viram de perto os defeitos do seu
sistema que permitiu a um presidente manipular os fatos, acirrar conflitos,
dividir o país, tentar restringir o voto. O país chegou à eleição com tapumes
nas lojas, cerca na Casa Branca e temor de escalada da violência. Nada disso é
normal, como escreveu Dorrit Harazim.
Depois
de duas eleições em 16 anos nas quais o vencedor do voto popular perdeu no
colégio eleitoral, depois de um governo tão extremista quanto o de Donald
Trump, está claro que os Estados Unidos precisam atualizar o legado dos
fundadores da pátria. O federalismo não pode dar tanto poder às autoridades
locais para restringirem o direito de voto, eliminando postos eleitorais. Não
pode haver o temor de que o voto pelo correio vá para o lixo. Aumentaram as
vozes respeitáveis nos Estados Unidos propondo reforma do sistema eleitoral.
Dias
atrás, em conversa com o embaixador Rubens Ricupero, ouvi a sua expectativa:
—
Eu tenho muita esperança de que as eleições provoquem uma reviravolta — ainda
tenho medo de me decepcionar uma vez mais — mas se Trump perder nós vamos ter
um verdadeiro terremoto, porque isso vai mudar todo o clima ideológico,
político, psicológico do mundo. A eleição dele foi um choque de ruptura
violentíssimo. A derrota dele não quer dizer que vamos voltar a uma situação
maravilhosa, mas é como você despertar de um pesadelo, quando acorda você não
está no paraíso. O fim do pesadelo não é o começo do sonho. É a volta à
realidade.
A
realidade tem uma recessão forte e uma pandemia descontrolada. Apesar disso,
essa é a chance de um reencontro dos Estados Unidos com eles mesmos, se os
líderes aproveitarem o momento para o recomeço.
Aqui
também o melhor é acertar o passo. Quando Jimmy Carter foi eleito previa-se
tensão com o Brasil porque ele defendia os direitos humanos e o fim da tortura
nos países latino-americanos. O governo Ernesto Geisel torcia o nariz e se
falava em intervenção em assuntos internos. Que país deve ser livre para torturar
e desrespeitar os direitos humanos? Agora, se fala em tensão entre Joe Biden e
Jair Bolsonaro. É, na verdade, a chance de Bolsonaro sair de duas posições
erradas: o isolacionismo na política externa e o estímulo ao desmatamento da
Amazônia.
Na
sua série de tuítes ontem sem pé nem cabeça, Bolsonaro já estava em posição
defensiva. Falou, no contexto da eleição americana, em ingerência estrangeira
“visando às eleições de 2022”. E se referiu às “nossas riquezas, nosso futuro”.
A
política ambiental do governo Bolsonaro até agora estimulou o desmatamento, o
garimpo ilegal e a grilagem. Isso é que põe em perigo o nosso futuro e destrói
a nossa riqueza. O ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro acha
bom o Brasil ser um “pária”. O cargo dele é cuidar das “relações exteriores”.
Por óbvio, um país pária não as tem. Ernesto Araújo está no emprego errado.
Biden prometeu um governo multilateralista, a volta dos Estados Unidos ao
Acordo de Paris e defendeu a proteção da Amazônia. Tudo isso é ótimo porque o
Brasil fez muito nas negociações do clima para que se chegasse ao acordo e
somos os maiores beneficiários do combate ao desmatamento.
Uma
pressão externa contra os crimes ambientais se somará aos grupos cada vez mais
majoritários, até do agronegócio, que exigem mudança. Seria tão absurdo
requerer soberania para desmatar quanto se Geisel tivesse defendido o direito
soberano de o Brasil torturar.
A
melhor resposta para a crise da democracia é mais democracia. Não se pode
tolerar um presidente que pede a grupos supremacistas brancos que recuem e
aguardem. Não se pode tolerar um presidente numa manifestação que pede
fechamento do STF. Países lenientes com desvios dos seus governantes correm o
maior dos riscos, o da perda da democracia.
A resposta da sociedade americana foi um comparecimento recorde às urnas. Uma senhora negra de 69 anos, da Carolina do Norte, entrevistada pela NBC, disse que votou pela primeira vez em sua vida. A repórter quis saber porque ela mudara de comportamento, e ela respondeu que ficou em casa por causa da pandemia, pôde se informou melhor e decidiu participar. Ela votou Biden-Harris. Os caminhos da democracia são sempre surpreendentes.
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