quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Cristovam Buarque* - Ler importa!

Foi preciso um policial branco asfixiar um negro, para o mundo despertar para o lema “vidas negras importam”. O grito de “não consigo respirar” ecoou em todas as partes. Pena que um analfabeto não grite o mesmo e de seu grito surja um movimento com o lema: “ler importa”. As pessoas não percebem que o analfabeto não respira plenamente, uma vez que, além de comida e oxigênio, o ser humano se alimenta de conhecimento e estes chegam, sobretudo, pela leitura.

A falta de leitura asfixia pessoas e sociedade. Lutar contra o racismo exige luta contra o analfabetismo. Até porque 10 dos nossos 12 milhões de analfabetos são descendentes de escravos. Fala-se que “vidas negras importam” esquecendo-se que a falta de importância às vidas negras decorre em parte do abandono escolar a que os jovens negros são condenados, por serem pobres. O racismo produz analfabetismo entre os negros deixados sem escola, e acirra o racismo estrutural na sociedade.

Ao lado dos esqueletos sociais da escravidão, o analfabetismo é o berço do preconceito, a causa maior da exclusão social e do racismo. A luta contra o racismo conseguiu fazer com que os negros brasileiros já não se sintam inferiores aos brancos, como ocorria até recentemente, mas negros ou brancos sentem-se inferiores quando são analfabetos. Apesar disso, os que, corretamente, lutam contra o racismo com leis que criminalizam este comportamento, não lutam contra o analfabetismo que produz o racismo. Até lutam para que um pequeno número de negros entre na universidade, mas não para que todos os negros saiam do analfabetismo.

“Ler importa” não se refere apenas à chaga do analfabetismo total, mas também à necessidade de abolir o analfabetismo funcional que atinge quase 100 milhões de brasileiros. “Ler importa” não apenas para decifrar o que uma combinação de letras quer dizer em uma palavra, mas também para saber o que as palavras querem dizer combinadas entre elas em textos longos, em livros de literatura e de filosofia. “Ler importa” não apenas para decifrar as letras na bandeira do Brasil, mas também como aquelas palavras chegaram ali, identificar a base filosófica delas, por que os republicanos as escreveram logo depois da proclamação da República - e até hoje, 131 anos depois, ainda não entendemos que “ler importa”.

Apesar de todos os nossos avanços sociais e econômicos, temos em 2020 duas vezes mais adultos analfabetos do que em 1889. Não percebemos que a liberdade de expressão deve significar mais do que liberdade para alguns escreverem o que pensam, mas também a possibilidade de todos lerem o que está escrito. Por mais liberdade que tenha, não é livre a imprensa em um país com 12 milhões de adultos analfabetos plenos e 100 milhões de analfabetos funcionais.

“Ler importa” para todos e para ler tudo.

Recentemente, a proposta de aumentar impostos sobre livros foi rejeitada pelos que compram livros, mas eles não se mobilizaram para que todos pudessem ler; não houve luta contra o imposto infinito que pesa sobre os analfabetos, plenos e funcionais, que não lerão os livros, mesmo que distribuídos gratuitamente. A compra do livro é o primeiro passo, mas sua aquisição só ocorre pela leitura. Houve um movimento no sentido de “livro importa” para quem sabe ler, mas não de “ler importa” para todos.

“Ler importa” porque a leitura não é apenas um direito de cada pessoa, é um motor para o progresso de todos. Sem conhecer a história do Brasil, sem ler as propostas dos candidatos, o eleitor pode ser enganado mais facilmente; sem literatura acessível a todos, fica difícil formar a consciência nacional de um povo. “Ler importa” porque entre dois bons médicos, dois bons cientistas, dois bons engenheiros, aqueles que leem jornais, revistas, literatura, serão melhores que os outros.

É na educação de base que, além de alfabetizar, formam-se leitores. De todas as falhas de nossa educação de base, além de não alfabetizar todos na idade certa, não ensinar matemática e ciências, não auxiliar na prática das artes, não ensinar um ofício a cada jovem, nossas escolas não formam leitores em nosso idioma, e ainda menos em idiomas estrangeiros - porque “ler importa” tanto que é preciso ler em mais de um idioma.

“Vidas negras importam” e “ler importa” também. Por isso, “educação importa”.

 *Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília

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