Polarizações
socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA
Donald
Trump é uma doença ou sintoma de um mal pior? Derrotado ou
vitorioso, já terá deixado sequelas, de qualquer modo. Trump
inspirou, incentivou ou legitimou supremacistas
brancos, a xenofobia, a desconfiança na razão, em instituições que
promovem o debate público esclarecido e que arbitram conflitos de modo
democrático, promoveu a mentira sistemática e a disseminação da paranoia.
Avacalhou tudo isso que faz parte do pacote básico da democracia liberal.
Há
surtos de paranoia ou ressentimento reacionários que causam comoção e
sofrimento, mas passam. Ao menos, acabam não tendo força bastante para abalar pilares
dessas democracias liberais.
Não
foi o caso nem com o macarthismo dos Estados Unidos dos anos 1950, por exemplo.
Deixou marcas, destruiu vidas e inoculou para sempre na política americana a
rejeição mesmo a ideias sociais-democratas e o delírio anticomunista, mas não
produziu instituições autoritárias.
Um
movimento contemporâneo, na França, o poujadismo, agregou o ressentimento da
pequena burguesia reacionária, corporativista, revoltada com a modernização do
país e com instituições da democracia francesa da época, que funcionavam muito
mal, aliás, tanto que acabaram em um golpe militar disfarçado, em 1958. Mas a
democracia francesa progrediu e o poujadismo é uma nota de rodapé, embora uma
de suas crias, Jean-Marie Le
Pen, tenha dado brotos depois de quatro décadas dormente.
Trump
muita vez é explicado pelo ressentimento dos trabalhadores largados nas regiões
decadentes da indústria, pela revolta das comunidades do interior, dos desconfiados
da civilização dos costumes e dos direitos de minorias ou discriminados
quaisquer, contra as “elites” ilustradas e a indiferença dos tecnocratas
econômicos.
A
desigualdade de renda e de educação teria sido um fator também, assim como,
contraditoriamente, o ressentimento contra programas sociais que justamente
atenuam tais iniquidades (de modo diminuto, nos EUA).
Mas
mesmo tais ressentimentos não bastam para explicar a força renovada do racismo,
das milícias armadas ou o descaramento neonazista. Um grande, embora
controverso, sociólogo americano, Richard Sennett escreveu nesta semana no
jornal britânico “The Guardian” que o ressentimento seria mais profundo.
Reflete uma degradação civilizacional mais séria e que seria a atitude de uns
30% dos americanos.
Trata-se
de pessoas para quem a vida socioeconômica é um jogo de soma zero: reconhecer
direitos de outros por si só implica a perda dos próprios direitos; rebaixar
outrem é um progresso para si. Seria assim parte dos brancos americanos, diz
Sennett, um pessimista a respeito da vida pública, do sentimento do propósito
da vida ou da situação do trabalho contemporâneo.
Parte
da base trumpista de 2016 desertou o presidente agora, acredita Sennett
(aposentados, trabalhadores da indústria, pequenos empresários, classe média
alta dos subúrbios e parte dos evangélicos). Restaria um núcleo fanático, mas
imenso, que tende se tornar ainda mais extremista em caso de Trump: viriam a se
sentir mais abandonados e, agora, traídos por outros eleitores e pelo “sistema”
em geral.
As feridas americanas não serão curadas tão cedo, conclui Sennett. É difícil captar de modo mais preciso esse ressentimento branco entranhado. Mas decerto tão cedo, no mínimo, não vai se dar um jeito nas polarizações de cor, renda, educação, poder e da falta de entendimento básico do que sejam razão e terreno comum de diálogo.
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