É
função do Estado evitar catástrofes maiores que comprometam a segurança
Em
artigo publicado neste jornal no dia 02 de dezembro último, o professor Luiz
Carlos Bresser-Pereira propôs que os investimentos públicos em projetos de
infraestrutura sejam financiados com emissão de moeda pelo Banco Central, na
base de 5% do PIB por ano. Seria, segundo ele, uma alternativa para contornar a
dificuldade do governo em gerar poupança, algo que se arrasta desde a década de
80, e tirar o país da estagnação econômica.
Bresser
deixa claro que sua ideia extrapola o caráter emergencial dos gastos
extraordinários necessários para aliviar o impacto negativo da covid-19 na economia.
O uso de emissão monetária para financiar investimentos, conforme imaginado por
ele, ganharia status permanente no arcabouço das políticas governamentais, com
inscrição na Constituição da República e previsão no orçamento federal.
Não seria, portanto, algo passageiro. Uma agência ou órgão, cujo formato não se conhece ainda muito bem, emitiria títulos atrelados a projetos de infraestrutura, papéis esses que receberiam financiamento monetário do BC. Alguns aspectos foram discutidos no seminário de economia da FGV realizado no mesmo dia 02 entre Bresser-Pereira e o coautor da proposta, Nelson Marconi, com a participação, em total sintonia, de André Lara-Resende, que tem defendido o uso da emissão monetária para financiar gastos públicos. A premissa é de que a inflação está baixa, sob controle, e permanecerá assim por muitos e muitos anos até que a economia volte a ser pressionada pelo excesso de demanda.
Na
ausência de inflação, a taxa de juros perde a função de principal instrumento
de controle monetário, podendo cair a níveis negativos em termos reais, como
ocorre na Europa, sob risco, no extremo, da moeda voltar a ser guardada debaixo
do colchão. Isso só não ocorre pela facilidade de pagamentos propiciada pelos
meios digitais. Por razões de segurança, o dinheiro é mantido em conta corrente
nos bancos, uma liquidez imediata em busca de ativos que possam garantir algum
rendimento, como ações, imóveis, automóveis e até dólar.
A
ideia de que a conjuntura monetária é propícia ao recurso da emissão de moeda
como forma de aliviar as pressões do déficit e do endividamento público
ressurgiu das cinzas a partir da crise de 2008, estimulada pela prática do QE
(quantitative easing) - ou injeção de liquidez - promovida pelos bancos
centrais dos países desenvolvidos. A iniciativa criou um novo paradigma e
ajudou a propagar a chamada MMT (Modern Monetary Theory) que prega uma política
fiscal expansionista, sob a alegação de que a dívida pública denominada em
moeda local sempre poderá ser paga pelo governo com emissão monetária, a custo
zero.
Vale
aqui um parêntesis. Constitucionalmente, o uso da prerrogativa de emissão e
controle da moeda pertence à União, sendo exercida em caráter de exclusividade
pelo Banco Central do Brasil, algo que oferece garantia implícita de pagamento
a todo e qualquer título da dívida pública federal, uma característica especial
que sempre diferenciou aqueles papéis dos demais. Portanto, a alegação da MMT não
é novidade e não acrescenta argumento novo à discussão.
Separar
alhos de bugalhos, além de atentar para os detalhes envolvidos na questão,
torna-se fundamental para que se possa definir do que se está a falar e quais
as implicações decorrentes.
Primeiramente,
faz-se relevante notar que uma política fiscal expansionista é recomendada em
épocas de profunda retração como a que se vive agora. Não faz sentido falar-se
em teto de gasto ou em meta fiscal quando a economia está em retrocesso, sem
perspectivas de recuperação nos curto e médio prazos. É função do Estado evitar
catástrofes maiores que comprometam a segurança. Em uma pandemia, é disso que
se trata.
Sobre
isso estão de acordo economistas renomados como Larry Summers, Kenneth Rogoff e
Olivier Blanchard. Com a inflação perto de zero, admite-se que não haja risco
do uso circunstancial da emissão monetária para amenizar os efeitos do desastre
em caráter temporário.
Segundo,
há que entender a finalidade da política de QE. Seu objetivo é claro: tirar do
mercado títulos de longo prazo com baixa perspectiva de retorno, a maioria
privados, de modo a garantir, assim, o funcionamento das operações financeiras
e da economia, em suma. Vários tipos de papel têm sido recomprados do mercado
em geral, estejam eles nas carteiras dos bancos, nas gavetas das empresas, na
contabilidade dos fundos imobiliários ou nos escaninhos responsáveis pelas
dívidas municipais, no caso norte-americano, por exemplo. Nunca se pretendeu
promover o investimento nem o crescimento com o mecanismo.
Deve-se
ressaltar que as operações de QE se realizam no mercado secundário, uma vez que
o BC adquire papéis já previamente negociados. Ou seja, a intenção dos BCs
sempre foi a de evitar o colapso do mercado através de injeção de liquidez que
será em algum momento recolhida quando os papéis forem devolvidos aos
detentores originais. O processo estava em vias de desativação nos Estados
Unidos quando surgiu a covid-19, obrigando o FED a recorrer novamente ao QE
como meio de prover liquidez ao setor privado.
A
proposta de Bresser prevê financiamento com moeda para títulos de emissão
primária, ou seja, aporte de liquidez adicional, para além da já existente no
sistema monetário. O BC exerceria a função de banco comercial, com a concessão
de empréstimos a investimentos de longa maturação, algo que foge totalmente da
função típica de regulador da liquidez.
Ao
contrário de um banco comercial que intermedia a aplicação do dinheiro entre o
poupador e o devedor, o BC concederia crédito gerado a partir do uso da prerrogativa
única da União de emitir moeda. Para além disso, não está claro quem assumiria
o risco da operação. O pessoal do MMT poderia alegar que, diante de um default
do tomador de crédito (o investidor), o BC sempre poderia produzir mais
dinheiro para compensar a agência/órgão responsável pelo título representativo
do investimento, ou seja, a União, no frigir dos ovos.
O
ponto é importante, apesar do tamanho dos agregados monetários, que se acumulam
a partir da emissão primária de moeda com os diferentes tipos de aplicação
financeira (do ponto de vista do público), não fazer diferença hoje em dia para
a política monetária.
Por
fim, fica no ar, à espera de comprovação, a premissa de que a inflação
permanecerá perto de zero por muitos e muitos anos. Será que estamos todos
fadados a viver em um mundo de irremediável e eterna retração econômica, onde a
única e inofensiva tábua de salvação é a máquina de fazer dinheiro?
*Maria
Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação
Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”.
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