Cinco
ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para
depredar o texto que deveriam guardar
Não
tenhamos dúvida de que a pressão da sociedade foi decisiva para que o Supremo
votasse contra o golpe urdido — dentro do Supremo — para autorizar a reeleição
dos comandos de Senado e Câmara numa mesma legislatura. Matou-se a pretensão
golpista de Davi Alcolumbre, mas não sem que aqui se reforce a vergonha de um
presidente de Poder que abandona o mandato vigente para costurar uma
presidência futura, ademais interditada por lei. Ceifou-se também a chance de
Rodrigo Maia surfar a onda.
Não
há o que comemorar, porém. Cinco dos 11 ministros da corte constitucional
brasileira se sentiram à vontade para — distorcendo a semântica — depredar o
texto que deveriam guardar. Cinco dos 11 ministros, alguns dos quais
considerados garantistas, não se acanharam em expor o molejo oportunista do
garantismo de rebolação hoje havido no STF.
Rebolam todos, entretanto. Ou quase todos. Muitos dos que agora se impuseram como originalistas — protetores do que versa a palavra constitucional — sendo os que, no ano passado, contorceram o verbo para encontrar na Constituição brecha que encaixasse a prisão após condenação em segunda instância. Não faltam exemplos outros.
Gilmar
Mendes, relator da matéria da hora, não escondeu o método em seu
voto-cabe-tudo: “O afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover
objetivos constitucionais de elevado peso normativo”. Difícil é achar ministro
— todos decerto seguros de serem promotores dos mais virtuosos refinamentos
constitucionais — que já não se tenha baseado nessa fórmula tudo-pode. Trata-se
de manifestação cujo endosso teria —e tem — efeito carta branca nas mãos de
juízes que não raro se movem como agentes políticos, mas que se querem
merecedores da fé devotada aos santos.
Em
suma, ignorar o que diz a Carta como forma de, confiando na condução dos
iluminados, libertar o sentimento, o sentido não expresso, da Carta. Na
prática, ignorar o que diz a Carta, o que pretendeu o constituinte, para que
objetivos político-eleitorais de elevado peso antirrepublicano sejam tratados
como saudáveis mutações constitucionais por togados, cujo abuso de poder os
transformou em ditadores do regime democrático.
Quem
lê o voto de Mendes quase tem vontade de o agradecer por ainda não serem ele e
os seus supremos os que elegem as mesas diretoras do Congresso. O ministro nos
avisa, condescendente, que pretendia mesmo mudar a regra do jogo e que não lhe
faltam meios para fazê-lo à revelia do texto constitucional; mas que
continuariam sendo os parlamentares a eleger o comando das Casas.
É
preciso ser duro com o que se tentou armar no Supremo. Um golpe contra a
Constituição da República. Um golpe que consiste em declarar inconstitucional o
texto constitucional — com o argumento de cevar o texto constitucional.
Um
golpe urdido há mais de ano, nos últimos meses à custa de um país de todo
paralisado, que tem como gênese a convicção de que se poderia lastrear um
arranjo político, a partir do Supremo, fraudando a Carta. A partir do Supremo,
a subversão da Carta! O — como o nomeei no artigo passado — golpe de
Alcolumbre; que corpo de golpe não teria, que não passaria de fetiche de
moleque autocrata, sem que ministros do STF, verdadeiros despachantes, o
tivessem anabolizado por meio de leituras messalinas da Constituição.
Diz-se
— e sem o devido escândalo — que ministros do STF fariam cálculos políticos
ante o que seria um dilema; como se fossem moderadores de apetites autoritários
do futuro. Assim, porque avaliariam que a dupla Alcolumbre e Maia cumpre bom
papel em frear o ímpeto golpista de Jair Bolsonaro, seria seguro, pensando num
bem maior, estender-lhes os períodos na presidência das Casas legislativas. E
então teríamos a seguinte equação arbitrária: para evitar um presumido golpe
bolsonarista amanhã, aplique-se um golpe já.
É
grave. A prostituição do pacto social assentado pelo constituinte; que faz ver
que a progressiva depredação de nossos fundamentos institucionais, de que a
eleição de Bolsonaro é a febre maior, plantou não raposas no supremo
galinheiro, mas cupins. O STF carcomendo-se por dentro, enquanto do lado de
fora crescem os que o querem derrubar — muito mais volumosos sendo os que,
considerando-o uma estrutura inconfiável, voltada ao cultivo dos próprios
interesses, não se incomodariam com seu empastelamento.
Como
defender a importância do equilíbrio republicano e a virtude da separação entre
Poderes independentes, da ponderação garantida pelo balanço entre eles, ante um
Supremo infiltrado por grupos de interesse e que se acostumou a responder com
gambiarras? Como defender a concertação da República, a tessitura garantidora
de que o Estado não nos oprimirá tanto, num país em que ministros de corte
constitucional conseguem extrair autorização de onde há vedação explícita, por
consequência projetando, para deleite dos autoritários, um tribunal que,
manipulando o ordenamento para fins casuísticos, enfraquece sua a razão de
existir?
O Supremo precisa se proteger — se defender — do próprio Supremo.
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