terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Carlos Andreazza - O garantismo de rebolação

- O Globo

Cinco ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para depredar o texto que deveriam guardar

Não tenhamos dúvida de que a pressão da sociedade foi decisiva para que o Supremo votasse contra o golpe urdido — dentro do Supremo — para autorizar a reeleição dos comandos de Senado e Câmara numa mesma legislatura. Matou-se a pretensão golpista de Davi Alcolumbre, mas não sem que aqui se reforce a vergonha de um presidente de Poder que abandona o mandato vigente para costurar uma presidência futura, ademais interditada por lei. Ceifou-se também a chance de Rodrigo Maia surfar a onda.

Não há o que comemorar, porém. Cinco dos 11 ministros da corte constitucional brasileira se sentiram à vontade para — distorcendo a semântica — depredar o texto que deveriam guardar. Cinco dos 11 ministros, alguns dos quais considerados garantistas, não se acanharam em expor o molejo oportunista do garantismo de rebolação hoje havido no STF.

Rebolam todos, entretanto. Ou quase todos. Muitos dos que agora se impuseram como originalistas — protetores do que versa a palavra constitucional — sendo os que, no ano passado, contorceram o verbo para encontrar na Constituição brecha que encaixasse a prisão após condenação em segunda instância. Não faltam exemplos outros.

Gilmar Mendes, relator da matéria da hora, não escondeu o método em seu voto-cabe-tudo: “O afastamento da letra da Constituição pode muito bem promover objetivos constitucionais de elevado peso normativo”. Difícil é achar ministro — todos decerto seguros de serem promotores dos mais virtuosos refinamentos constitucionais — que já não se tenha baseado nessa fórmula tudo-pode. Trata-se de manifestação cujo endosso teria —e tem — efeito carta branca nas mãos de juízes que não raro se movem como agentes políticos, mas que se querem merecedores da fé devotada aos santos.

Em suma, ignorar o que diz a Carta como forma de, confiando na condução dos iluminados, libertar o sentimento, o sentido não expresso, da Carta. Na prática, ignorar o que diz a Carta, o que pretendeu o constituinte, para que objetivos político-eleitorais de elevado peso antirrepublicano sejam tratados como saudáveis mutações constitucionais por togados, cujo abuso de poder os transformou em ditadores do regime democrático.

Quem lê o voto de Mendes quase tem vontade de o agradecer por ainda não serem ele e os seus supremos os que elegem as mesas diretoras do Congresso. O ministro nos avisa, condescendente, que pretendia mesmo mudar a regra do jogo e que não lhe faltam meios para fazê-lo à revelia do texto constitucional; mas que continuariam sendo os parlamentares a eleger o comando das Casas.

É preciso ser duro com o que se tentou armar no Supremo. Um golpe contra a Constituição da República. Um golpe que consiste em declarar inconstitucional o texto constitucional — com o argumento de cevar o texto constitucional.

Um golpe urdido há mais de ano, nos últimos meses à custa de um país de todo paralisado, que tem como gênese a convicção de que se poderia lastrear um arranjo político, a partir do Supremo, fraudando a Carta. A partir do Supremo, a subversão da Carta! O — como o nomeei no artigo passado — golpe de Alcolumbre; que corpo de golpe não teria, que não passaria de fetiche de moleque autocrata, sem que ministros do STF, verdadeiros despachantes, o tivessem anabolizado por meio de leituras messalinas da Constituição.

Diz-se — e sem o devido escândalo — que ministros do STF fariam cálculos políticos ante o que seria um dilema; como se fossem moderadores de apetites autoritários do futuro. Assim, porque avaliariam que a dupla Alcolumbre e Maia cumpre bom papel em frear o ímpeto golpista de Jair Bolsonaro, seria seguro, pensando num bem maior, estender-lhes os períodos na presidência das Casas legislativas. E então teríamos a seguinte equação arbitrária: para evitar um presumido golpe bolsonarista amanhã, aplique-se um golpe já.

É grave. A prostituição do pacto social assentado pelo constituinte; que faz ver que a progressiva depredação de nossos fundamentos institucionais, de que a eleição de Bolsonaro é a febre maior, plantou não raposas no supremo galinheiro, mas cupins. O STF carcomendo-se por dentro, enquanto do lado de fora crescem os que o querem derrubar — muito mais volumosos sendo os que, considerando-o uma estrutura inconfiável, voltada ao cultivo dos próprios interesses, não se incomodariam com seu empastelamento.

Como defender a importância do equilíbrio republicano e a virtude da separação entre Poderes independentes, da ponderação garantida pelo balanço entre eles, ante um Supremo infiltrado por grupos de interesse e que se acostumou a responder com gambiarras? Como defender a concertação da República, a tessitura garantidora de que o Estado não nos oprimirá tanto, num país em que ministros de corte constitucional conseguem extrair autorização de onde há vedação explícita, por consequência projetando, para deleite dos autoritários, um tribunal que, manipulando o ordenamento para fins casuísticos, enfraquece sua a razão de existir?

O Supremo precisa se proteger — se defender — do próprio Supremo.

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