Não
seria a primeira vez em que o Supremo Tribunal Federal interpretaria a
Constituição alargando seu alcance, mas seria a segunda em que as palavras
teriam seu sentido tão alterado, transformando o “não” em “sim”. Na primeira
vez, não foi o sentido de uma palavra, mas a inclusão de uma não existente no
texto constitucional que mudou sua aplicação, livrando a presidente impedida
Dilma Rousseff da perda dos direitos políticos.
O
ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo, no comando da sessão
do Senado, fez uma leitura criativa do Artigo 52 da Constituição, que é
explícito em seu parágrafo único: “Nos casos previstos nos incisos I e II,
funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a
condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado
Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de
função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.
Lewandowski
permitiu a votação separada do impeachment e da perda dos direitos políticos,
como se um “e” metafórico separasse as duas punições, que para o legislador era
uma apenas. Coube aos eleitores mineiros corrigir a decisão, não elegendo a
ex-presidente na eleição seguinte.
Desta vez, coube ao ministro Gilmar Mendes encontrar uma interpretação diferente para o parágrafo 4 do artigo 57 da Constituição que determina ser “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. O ministro tem alguns pontos válidos. É preciso compatibilizar a permissão de reeleição nos Executivos federal, estadual e municipal com o Legislativo. Também é necessário dar ao Legislativa espaço para “conformação organizacional” que garanta a independência entre os Poderes.
Mas
é preciso lembrar que foram os próprios parlamentares que colocaram essa norma
na Constituição. Sobretudo, lembrar que o Congresso tem uma maneira de alterar
essa proibição, que é aprovar uma emenda constitucional.
O
próprio Gilmar Mendes teve a experiência de estar nos dois lados em uma
discussão político-jurídica importante, a permissão para a prisão em segunda
instância. Na primeira vez, em 2016, votou a favor, acatando a interpretação de
que o trânsito em julgado dava-se após a condenação em segunda instância, pois
os recursos aos tribunais superiores (STJ e STF) não têm a capacidade de
alterar o mérito da decisão, mas são usados para protelar a aplicação da pena
e, em muitos casos, para até mesmo evitar que o condenado vá para a cadeia.
Já
em 2019, votou a favor da literalidade da Constituição, contra a prisão em
segunda instância, que considerou estar desvirtuada, especialmente pela
Operação Lava-Jato.
Sempre
que, nos últimos anos, o Supremo tem alargado sua visão constitucional, ou,
como quer o ministro Luis Roberto Barroso, empurrado a História, usou a
interpretação como ferramenta jurídica para acompanhar a dinâmica da sociedade,
permitindo que o formalismo dê lugar a decisões exigidas pela sociedade, como a
união homoafetiva, o aborto anencefálico, acordos individuais entre patrões e
empregados.
No
caso recente que provocou celeuma, não havia nenhuma demanda social para que se
permitisse que o deputado Rodrigo Maia e o senador David Alcolumbre pudessem
disputar a reeleição para presidir suas respectivas Casas Legislativas. Há um
contexto político por trás das escolhas futuras, por óbvio, mas não é possível
tomar uma decisão contraria à Constituição para conformar as presidências da
Câmara e do Senado a uma visão política, mesmo que ela esteja correta para
muitos.
O presidente Jair Bolsonaro pretende eleger o próximo presidente da Câmara para controlar a pauta e, sobretudo, não ser retirado do governo por uma ação de impeachment. Claro que muita gente acredita que o ideal seria que ele não tivesse esse poder, mas a maneira de impedi-lo não é atropelando a Constituição.
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