terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Joel Pinheiro da Fonseca – Um presidente antivacina

- Folha de S. Paulo

 Esperar uma conduta digna e racional do presidente virou utopia

Imagine um país no qual a descoberta de uma vacina salvadora para a pior epidemia do século contasse com o apoio do presidente, e não com a sabotagem ativa de seu governo e da rede de bajuladores profissionais. Sim, estou ousado na utopia.

Lá atrás, no início da pandemia, Jair Bolsonaro e João Doria fizeram cada um a sua aposta de vacina: um no consórcio da Fiocruz com a AstraZeneca, o outro no do Butantan com a Sinovac.

Não tinha como saber qual ficaria pronta antes; era questão de sorte. Calhou de ser a vacina de SP, que está mais avançada no processo de testagem.

Era natural de se esperar que aquela que ficasse pronta antes traria algum ganho ao político que nela apostou. Isso é do jogo. O governo Bolsonaro tinha, ademais, a faca e o queijo na mão para partilhar com Doria os louros dessa vitória. O ministro da Saúde até tentou fazer seu trabalho: negociou a compra de doses da Coronavac pelo governo federal (desde que ela fosse devidamente testada e aprovada) e já apontava a direção: ela seria a vacina do Brasil, não de um estado específico.

Bolsonaro não gostou. Para negar qualquer holofote a um possível futuro rival, ele prefere deixar a pandemia correr solta.

Apoiadores de Bolsonaro atacam o governo de São Paulo por não ter aguardado a autorização da Anvisa antes de colocar prazos em seu plano de vacinação.

Ora, se se pautasse pela lerdeza proposta pelos críticos —fizesse, em suma, como o governo federal— o governo de São Paulo estaria traindo a população. É preciso que tudo já esteja pronto e planejado para quando a Anvisa finalmente liberar a aplicação. Se deixar as providências para depois, aí é que não teremos vacina tão cedo.

Em um texto particularmente alucinado, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, disse que os atos de Doria o alinham à "tirania global". Ter um plano para vacinar a população (inclusive pessoas de outros estados) e comprar doses da vacina. Que tirania terrível!

Só não é tão terrível quanto a omissão criminosa de Bolsonaro. Não tem plano de vacinação estruturado, não comprou os insumos para vacinar a população, não tem doses de vacina em quantidade.

Segundo informações da BBC, as compras de seringas, algodão e outros insumos já estão atrasadas. Mesmo que a licitação seja concluída ainda em dezembro, serão de 60 a 90 dias até que a compra seja entregue. Ou seja, perder-se-ão dias valiosos.

Todo mundo é político: Doria não menos que Bolsonaro. O grande teste é até onde se está disposto a sacrificar outros valores em nome do ganho político. Para um líder comprometido com o bem comum, haverá certas coisas que ele não estará disposto a fazer para ganhar mais poder. Para um projeto tirânico, não há limite: vale tudo para abocanhar uma fatia maior ou para prejudicar um adversário, o que dá no mesmo.

Agora a bola está com a Anvisa. Não acredito que ela seria capaz do crime de atrasar propositalmente a certificação de uma vacina apenas para agradar ao chefe do Executivo.

Graças a legislação aprovada pelo próprio Bolsonaro no início da pandemia, no entanto, já existem caminhos legais para aplicar a vacina em caráter emergencial caso a Anvisa demore.

Para os torcedores do presidente, cabe indagar: vale a pena —até mesmo do ponto de vista político— comprar essa briga e tentar barrar na Justiça uma vacina que pode salvar milhões? Eu já não duvido de nada. Esperar conduta digna e racional virou utopia.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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