Oscilando
a esmo pelas largas calçadas de uma Paris ancestral flana o espírito (ou
fantasma?) de Charles Baudelaire (18211867). Com as feições combalidas pelo
ópio, o andar trôpego pelo absinto, os cabelos tingidos de verde para afrontar
a carolice, o mais maldito dos poetas passeia com seu jabuti de estimação numa
coleira.
Enquanto o quelônio ensaia seus morosos passos pela rua, o poeta apreende tudo o quanto pode de uma metrópole em trânsito, que emana a tradição, mas quer romper as correntes e conhecer a modernidade. Baudelaire, um pensador e esteta atormentado, narra a extrema unção de um universo moribundo. Esta imagem lírica e decadentista sintetiza O Spleen de Paris, obra póstuma do poeta francês, que chega em nova tradução, por Samuel Titan Jr. professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na USP e responsável por traduzir autores como Adolfo Bioy Casares, Flaubert e Voltaire, entre outros.
Charles
Baudelaire é de conhecimento geral quando se fala da virtuosa obra inauguradora
do Simbolismo – ainda que de contorno parnasianos – As Flores do Mal (1857);
torna-se mais segmentado quando é citado Paraísos Artificiais (1860), ode à
ascese opioide; e passa a ser bastante específico quando analisado a partir de
seus escritos sobre Estética, textos em que nos apresenta o universo do flâneur,
um homem do mundo, que precisa ter brio para se manter à margem da multidão
escravizada pela produtividade da indústria e pela despersonalização impingida
à sociedade, graças aos famigerados tempos modernos. É aqui que O Spleen de
Paris encontra seu sentido mais intrínseco, já que se trata de uma coleção de
poemas em prosa, sem métrica, nem rimas. São reflexões pessoais, honestas e
imediatas a respeito de todas as rupturas (voluntárias ou compulsórias) frutos
do fin de siècle.
Para
Baudelaire, “spleen” é o estado de melancolia e tédio, uma dor existencial.
Faz, também, referência à teoria dos humores, conforme Hipócrates e Galeno,
segundo a qual, esse estado depressivo seria consequência da alta produção da
bílis negra pelo baço (spleen, em inglês). A teoria surgida na Grécia Antiga
encontrou ressonância na medicina até mais ou menos o século 17. Em Baudelaire,
parece uma tentativa de alinhar fenômenos fisiológicos a distúrbios do humor
diante de uma falência cultural mais forte que o indivíduo. Isto, muito antes
do surgimento da psicanálise e dos estudos sobre a psicossomática.
Ao longo
dos 50 poemas reunidos e publicados após sua morte, Baudelaire parecia convicto
de um projeto mais ambicioso que tudo o que já tinha escrito antes. Sua
preocupação é, claramente, documentar muito bem, ora de forma mais volitiva,
ora num esforço cronista e objetivo, os descaminhos que se entrecruzavam
naquele entroncamento de tendências e informações chamado Paris. A cidade que
foi o vetor da moda, da arte, da gastronomia e da etiqueta social era também
desigual, hostil e deprimente, embora essas facetas menos nobres não figurassem
na prioridade da comunicação de massa à época. A ascensão da burguesia, a
velocidade dos novos meios de transporte, a serialização da produção artística
e a agonia da estética figurativa não estavam na pauta dos mantenedores de um
status quo utilitarista. Por isso, o poeta se autoelegeu arauto do fim de um
mundo e seus laivos de prazer formal que escapavam por entre os dedos de um
vate do apocalipse. “Ai de nós, pobres fêmeas envelhecidas, já não agradamos a
ninguém, nem mesmo aos inocentes”, lamenta Baudelaire, encarnando o eu lírico
de uma senhora decrépita que, ao tentar agradar um bebê de colo, fazendo-lhe
fitas, acaba por assustá-lo, como se ela fosse um monstro.
O peso
das responsabilidades, que ceifa o frescor de um dia dedicado ao ócio criativo,
figura em outro segmento: “Quero propor um passatempo inocente. São tão poucas
as distrações livres de culpa!”. Isto remete ao “homem da multidão” do qual
Benjamin tanto falaria; o homem sem tempo para si, sem nome, sem direito ao
lazer, sem alma. São os mesmos personagens com quem Baudelaire já cruzava em
suas andanças enquanto colhia material para seu ambicioso projeto literário:
“Sob um vasto céu cinzento, numa vasta planície poeirenta, sem trilhas, sem
relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que caminhavam
recurvados”. Nos faz lembrar dos operários combalidos, que marcham em passadas
de máquina na Metrópolis de Thea Von Harbou.
Às vezes,
Baudelaire alude ao delírio de um tempo como, também, a prosa poética de
Lautréamont descreveu, tal qual saído diretamente de um sonho lúbrico e febril,
em que a profanação é a chave da escrita e o segredo da leitura: “Noite
passada, dois soberbos satãs e uma diaba não menos extraordinária subiram a
escadaria misteriosa pela qual o inferno parte em ataque à fraqueza do homem
que dorme e se comunica em segredo com ele”. Outras vezes, o poeta retorna às
suas reflexões sobre a arte, mas com a pena melhor pendida para a metaestética,
como se a impotência diante do mundo torturasse a razão do artífice: “Ai! Será
preciso eternamente sofrer ou fugir eternamente ao belo? Natureza, maga sem
mercê, rival sempre vitoriosa, deixa-me! Deixa de tentar meus desejos e meu
orgulho!”. E conclui, vencido diante do inquestionável: “O estudo do belo é um
duelo em que o artista grita de pavor antes de cair vencido”.
*É poeta, tradutor, ensaísta e doutor em estética e história da arte pela USP
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