Ela
orienta as ações de seus militantes, que se comprazem em gritar histericamente:
‘Mito!’
Dando
prosseguimento ao artigo anterior (18/1), centrado no conjunto de ideias que
estrutura o bolsonarismo, ressaltemos alguns outros aspectos para que tenhamos
uma visão mais abrangente desse fenômeno. Por mais que alguns insistam, talvez
com certa dose de razão, que essas “ideias” não sejam propriamente ideias dado
o seu caráter tosco, são elas que orientam as ações de seus militantes, que se
comprazem histericamente em gritar: “Mito!”.
Note-se,
preliminarmente, como muito bem observou um leitor, que os aspectos por mim
assinalados da ideologia bolsonarista não se restringem à extrema direita, mas
são igualmente válidos para a extrema esquerda, configurando um tipo de
autoritarismo ou totalitarismo cujas consequências são as mesmas na dominação
da sociedade e no controle ou aniquilamento das liberdades. Eis por que autores
como Hannah Arendt incluem na análise do totalitarismo tanto o nazismo quanto o
comunismo. Se me detive mais no caso da extrema direita, é por ser ela a
experiência concreta que o País está vivendo.
Subversão da democracia – Um aspecto importante desse fenômeno reside na subversão da democracia por meios democráticos, as eleições sendo usadas como instrumentos para corroer suas instituições e seus valores. Hitler conquista o poder por meios democráticos visando a destruir as próprias instituições republicanas. Chávez conquista “democraticamente” o poder, para eliminar progressivamente todas as instituições democráticas da Venezuela, hoje destruída e exaurida. O presidente Bolsonaro, por sua vez, está sempre testando os limites das instituições democráticas, erodindo seus valores e princípios, embora se diga o seu defensor. Quando convoca as Forças Armadas para defenderem a democracia, faz jogo duplo: o de defensor das liberdades e o de seu verdugo.
Militares –
A convocação dos militares é elemento constitutivo de um discurso que busca
criar condições para que eles, junto com as forças policiais, passem a
responder a ele, e não à Constituição, com o intuito de estabelecer uma relação
direta com eles, e não mais unicamente pela hierarquia militar. Há o menosprezo
da representação. O presidente gasta boa parte do seu tempo em comemorações
militares dos mais diferentes níveis, que não seriam, em condições normais,
afeitas à posição de um presidente. Os comandantes militares seriam as pessoas
que naturalmente deveriam presidir tais cerimônias. Uma vez que sempre procura
comparecer a tais eventos, tem como objetivo chamar a si as pessoas
homenageadas, estabelecendo uma relação direta com elas, independentemente de seus
superiores hierárquicos.
Trata-se
de um meio de também manter os comandantes sob controle, ao mostrar que pode
deles prescindir. É um empreendimento difícil nas Forças Armadas, por serem
elas hierárquicas e ordenadas, apesar de um suposto chamamento à tropa embutido
em tal comportamento, embora o caso não seja o mesmo em algumas Polícias
Militares, cuja cadeia de comando é fraca, além de pouco estruturada em torno
de valores. Aí as chances do bolsonarismo germinar são maiores, o que
explicaria a atual tentativa de uma reorganização das forças policiais, tirando
o poder dos governadores e estabelecendo uma forma de coordenação nacional, à
revelia das Forças Armadas.
Milícias –
Se o bolsonarismo conseguiu com êxito criar uma milícia digital, não se pode
dizer o mesmo da criação de um partido, cuja tarefa seria a de estruturar seus
adeptos em grupos organizados, que responderiam a vozes de comando
paramilitares. Nota-se uma desorientação do bolsonarismo nesse sentido, visto
que, no afã da família Bolsonaro de tudo controlar, dividiu e fragmentou um
partido eleitoralmente vitorioso, o PSL. Saindo vencedor das últimas eleições,
foi vítima da tentativa bolsonarista de tudo dominar, nem aceitando o
compartilhamento do poder. Sua orientação de extrema direita, sem uma
estratégia correspondente, conseguiu minar a si mesma. O que teria sido um
instrumento seu de poder, terminou sendo seu óbice, com as desorientações
partidárias daí derivadas. Até hoje não sabe o presidente por qual partido se
candidatar em 2022, seu maior, se não o único, objetivo.
Idiotas –
O vídeo de ampla repercussão em que o presidente da República, numa tirada sua
característica, totalmente imprópria para uma figura presidencial, manda a
imprensa pôr uma lata de leite condensado “naquele lugar”, de eliminação
fisiológica do corpo, com odor fétido, exibe em toda a sua “pureza” o desprezo
pela liberdade de imprensa, sua profunda aversão à crítica e ao outro em geral.
Mais surpreendente ainda, contudo, é que, ladeado pelo ministro das Relações
Exteriores, a sua plateia, em delírio, grite: “Mito! Mito!, Mito!”. Enseja
pensar por que um discurso tão tosco e grosseiro ainda encontra quem o acolha,
pois quem assim o faz age como idiota, como se habitasse outro mundo. Talvez
isso explique o comparecimento do chanceler, pois é como se ele estivesse numa
terra estrangeira.
*Professor
de filosofia na UFGRS
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