Além
do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo, voltar a tomar as
ruas
O
início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise
enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa espécie
anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação. Infelizmente, no
Brasil, nós nos deparamos hoje é com o gigantismo da estupidez guiando a
desordem e provocando instabilidades.
Não
há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um governo
para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê eleitoral. No lugar
de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em churrascarias e cenas
grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é alto e permanecerá sendo
pago em largas prestações.
Após
meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é
essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer alívio,
o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao
povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais
de 220 mil brasileiros.
Há,
porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à vacinação.
Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais incompetentes e a
pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de implantação de um sistema de
gestão do programa de imunização. E assim seguimos patinando, com consequências
graves para a vida de todos os brasileiros e também para a economia.
As piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado, políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do caos político do governo Bolsonaro.
Criar
uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais pobres e
vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais como Thomas
Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman. Indiscutível do ponto de
vista social, essa necessidade ilumina um problema crônico e estrutural do
Estado brasileiro: apesar de consumir 40% da riqueza nacional todos os anos com
um orçamento trilionário, nosso poder público, engessado em despesas
obrigatórias, não foi capaz de construir uma proteção minimamente robusta para
os mais vulneráveis. Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações
políticas.
Neste
momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no presente, sem
lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a covid-19 não pode
perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da economia e do mundo que
herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tivermos a
capacidade de implementar políticas públicas que sejam fruto da urgência, mas
não se contaminem pelo desespero. Não apenas é possível, como necessário, aliar
sensibilidade social à responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a
eficiência do Estado brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social –
elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no
movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em busca de
mais efetividade.
Em
direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições para
ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente
promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento de prazos das medidas
provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a injustificável menção a decreto
de estado de defesa pelo procurador-geral da República e a ameaça aberta de
insurreição antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na
invasão dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso
assegurar que não vamos retroceder.
O
alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do que
nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil pública para
convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que ele reiteradamente
alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em 2018. Não há espaço para
omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é pilar da legitimidade da
democracia liberal. Utilizar o prestígio da Presidência da República para minar
as bases da democracia é um atentado à Constituição. Em meio a uma pandemia,
faltam até palavras para classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o
vírus do autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que
possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos, o
prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de defendê-la.
*Analista político, especialista pela universidade de Georgetown (Washington, D.C), é Diretor Executivo do Movimento Liberal Livres.
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