segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Irapuã Santana - Responsabilidade de Bolsonaro

- O Globo

A liberdade de expressão é um dos princípios mais caros de uma democracia. Houve muita luta da própria sociedade brasileira a fim de que ela fosse estabelecida e respeitada após a ditadura. Descobrir seus limites é ainda um dos grandes desafios do país.

Sendo um verdadeiro campo minado, venho compartilhar uma pequena reflexão sobre até onde poderia ir o discurso do presidente. Uma vez que não é mais deputado, perdendo a imunidade constitucionalmente assegurada, haveria a possibilidade de cometer crime por palavras proferidas no calor do momento para seus apoiadores?

A resposta mais adequada é “depende”. No Brasil, temos os crimes contra a honra, que são a calúnia, a injúria e a difamação, que funcionam como uma restrição à livre manifestação de ideias em nossa sociedade. No entanto, quando entramos na área política, a questão fica um pouco mais delicada. Isso porque existe a Lei nº 1.079/1950 — a Lei dos Crimes de Responsabilidade —, que afunila ainda mais o espaço de atuação do chefe do Executivo federal.

Então, quando Bolsonaro discursou em manifestação a favor da intervenção militar, cometeu crime contra o livre exercício dos poderes constitucionais (art. 6°). Outro exemplo de que a manifestação do presidente poderia ser considerada ilícita é o incentivo ao uso de medicamentos cuja eficácia contra o coronavírus não estava comprovada cientificamente (art. 7°). Na ocasião em que foi criticado pelo modo como tratou a crise ambiental na Amazônia, praticou ato de hostilidade contra nação estrangeira (art. 5°).

De modo um pouco mais abstrato e aberto, há também a incidência do art. 9°, que trata de “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.

John Stuart Mill, filósofo inglês do século XIX, em seu livro “Sobre a liberdade”, tratou do referido direito como um fator importantíssimo, que precisa ser resguardado a qualquer custo, defendendo que a liberdade individual seria o motor do desenvolvimento humano e da sociedade em geral. Com esse raciocínio, poderíamos dizer que as regras previstas na Lei dos Crimes de Responsabilidade são injustas, certo?

Errado. Segundo as lições de Mill, a liberdade individual somente será legitimamente exercida quando não ferir terceiros. É nesse exato ponto que se insere a responsabilidade de um presidente da República. Um chefe de Estado não pode, em hipótese alguma, utilizar seu cargo para incentivar uma coletividade a seguir por um caminho sabidamente equivocado. Não existe um direito de lesar outras pessoas.

Portanto, no momento em que o discurso tem o potencial de gerar ações concretas ou de se transformar efetivamente em ato prejudicial a outrem, deve ser prontamente coibido.

Por esse motivo, quando o presidente Bolsonaro aparece em manifestações de seus apoiadores e profere discursos que incitam a população, comete crime de responsabilidade e não pode alegar que está no uso da liberdade de expressão, não faltando, pois, motivos que possam levá-lo ao impeachment.

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