segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Miguel de Almeida - A má literatura brasileira

- O Globo

O escritor Carlos Heitor Cony, em 2004, colocou em livro a inspiradora teoria conspiratória segundo a qual os três principais inimigos civis do regime militar haviam sido liquidados pelas forças ditatoriais.

Era uma conversa de botequim, logo transformada em fato terraplanista pela esquerda derrotada pelo Golpe de 64: Jango Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, no espaço de apenas nove meses, morreram, só que assassinados pela denominada Operação Condor.

Chamada Condor porque envolvia outras ditaduras latino-americanas do período, unidas no desejo de eliminar adversários dos regimes de exceção.

Em parceria com Anna Lee, Cony expôs em “O beijo da morte” a trama capaz de juntar as três mortes (Jango e Lacerda por ataques cardíacos; Juscelino em acidente na Dutra) sob um manto de assassinato político. Uau, lavava a alma: coisa de Primeiro Mundo.

Anos depois, o cineasta Paulo Fontenelle escandiu a tese ao enfocar “Dossiê Jango” apenas na morte de João Goulart. Vista como uma conspiração de calibre russa (Stálin e Putin) ou chinesa (onde andará Jack Ma?). Até hoje a teoria é encampada por alguns líderes políticos e ainda serve de tema nos bares (agora pelo Zoom).

A ela se somam — em menor quilate — a desconfiança de que o homem não chegou à Lua, e de que Bentinho não tomou chifre de Capitu.

Como a história é sempre irônica, quis a realidade colocar nas ruas a impossibilidade ainda mais palpável de que a teoria conspiratória da esquerda é de fato ficção eternizada na bela prosa de Cony.

Senão, vejamos.

É sabido que a geração militar que deu o golpe em 1964 era técnica e intelectualmente bem preparada (e boa de marketing: com apenas um canhão, fez Jango fugir com as calças na mão). Embora houvesse um Médici e um Costa e Silva, incapazes de amarrar o sapato sem ajuda, havia um Castelo Branco, um Golbery e mesmo um Geisel. Cercados de uma elite civil como Roberto Campos, Guilherme Merquior, Affonso Celso Pastore.

E essa turma, quando quis diversificar o serviço sujo das prisões e assassinatos ilegais, pois quando quis fazer algo, digamos mais sofisticado (à Putin), a melhor performance alcançada foi a bomba no Riocentro. Quando a bomba a ser colocada na plateia de um espetáculo de MPB explodiu no colo do militar que iria detoná-la. Morreu o sargento, claro, e deixou vivo o comparsa (um capitão!) para explicar que não era isso que vocês estão pensando…

Passadas algumas décadas, a educação piorou em todos os níveis, e veio à Terra (plana) o general Pazuello, no papel de ministro da Saúde.

(Vamos lembrar que Pazuello chegou a general porque estudou, passou nos testes, foi promovido. Seu chefe, o Bozo, mal conseguiu ser tenente, reprovado quando quis ascender na carreira. Numa linguagem civil, seria alguém com o fundamental incompleto.)

Dar crédito à teoria conspiratória, e à sua afamada eficiência (puxa, matar três caras importantes com tanta destreza), seria esquecer os boçais do Riocentro.

Não devemos. Os trapalhões do Riocentro explicam o paspalhão (também mortífero) do general Pazuello e seu chefe Bozo —a dupla do leite Moça.

A educação no Brasil piorou.

Se antes o sargento acendeu um cigarro (!!!) enquanto segurava a bomba no interior de um Puma (que escola ensina isso?), o general da cloroquina, mesmo avisado pela cunhada (olha só o profissionalismo desse pessoal), não providenciou tubos de oxigênio, numa tentativa de colocar a pasta dental de volta ao tubo.

A dupla Pazuello-Bozo (lembrando que o tenente manda no general, que obedece) se filia militarmente não à turma Ustra de 1964, mas sim a outro fiasco do Exército brasileiro, no caso, às três expedições derrotadas pelos seguidores de Conselheiro.

Em especial, ao coronel Moreira César, o “corta-cabeças”, assim alcunhado por ser violento, e então visto como herói do Exército. Até entrar no Arraial de Canudos. Foi morto e pendurado num poste pelos conselheiristas que lutavam com enxadas, foices e até cabos de panela.

A situação só piorou. Hoje o Brasil, assombrado por Pazuello e Bozo, depende do oxigênio da Venezuela e da vacina do Doria.

Isso é má literatura, caro Cony.

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