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Folha de Paulo
O
canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final
Em
novembro último, escrevi duas colunas (5/11 e 9/11)
a respeito de um curió cujo assobio me entrava pela janela toda manhã e me
ajudava a saltar da cama e encarar o Brasil daquele dia —para se ter uma ideia
da beleza do seu canto. O bichinho, segundo meu atento porteiro João, pertencia
a um colega dele, porteiro do prédio em frente, e não era um curió qualquer.
Tinha registro no Ibama e era um dos curiós mais populares do Leblon
—transeuntes paravam sob sua gaiola na árvore para ouvi-lo cantar.
À distância, por causa da quarentena, juntei-me aos seus admiradores. A única
restrição que lhe fazia era a relativa limitação de seu repertório, composto de
um único tema —fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu, tendo como coda
mais um fiu breve e individual. Um ornitólogo me escreveu para dizer que não
era uma limitação, mas o resultado de um longo trabalho do curió para chegar à
perfeição daquela frase melódica. E que, provavelmente, o último fiu lhe tomara
meses de ensaio.
Tudo isso é para dizer que, desde dezembro, deixei de ouvir o concerto matinal
do curió. Hipóteses terríveis me assaltaram. Famoso como era, ele teria sido
sequestrado e seu dono não podia pagar o resgate. Ou seu passe fora comprado
por um milionário chinês que o levara embora. Ou, revoltado com os rumos do
país, ele teria entrado em depressão e se recusava a cantar.
Dei alguns dias, voltei a João e lhe pedi notícias. Ele me tranquilizou: o dono
do curió fora ao Norte ver a família e o deixara aos cuidados de um colega em
Jacarepaguá. Logo estarão de volta ao Leblon.
Vou aguardar. O Brasil não está para que seus cidadãos pulem da cama e encarem
o dia. O país, entregue a canalhas e omissos, à paisana ou fardados, está se
dissolvendo sanitariamente, moralmente, institucionalmente. O canto de um
passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final.
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