Há
conflito permanente entre as regras do jogo e a compulsão dos possuidores de
riqueza para transgredi-las
Jornalista
de um prestigioso matutino entregou-se a entrevistas com gentes dos mercados na
tentativa de desvendar as razões do episódio GameStop protagonizado por
pequenos investidores. A empresa de games estava em situação crítica, prestes a
solicitar acolhimento no Chapter Eleven que regulamenta falências no
ordenamento jurídico americano.
Os
parrudos Hedge Funds estavam “vendidos” em GameStop, provavelmente com a mesma
convicção que animou o personagem de Christian Bale a ficar “short” nas Asset
Backed Securities, conforme narrativa do filme “A Grande Aposta”. O personagem
de Bale se deu bem em seu Big Short, enquanto os Hedge Funds que “shortavam”
GameStop se deram mal diante da avalanche de ordens de compra disparadas pelos
investidores “amadores”, mediante a utilização de um aplicativo. As ações da
periclitante GameStop dispararam.
O
jovem periodista abriu uma das entrevistas sapecando: “É um absurdo, a
regulação não deveria ter deixado uma empresa quebrada subir tanto. Estava
errado. Aquele valor não era o justo!!”
O
entrevistado respondeu ironicamente que o valor das coisas é o valor que a
gente atribui às coisas. O rapaz ficou indignado: “Então não tem uma conta para
determinar o preço correto da empresa?
O
entrevistado: “Não é desesperadora essa liberdade negativa, enquanto ausência
de determinação?”
Silêncio
no mundo das positividades. Liberdade negativa, ausência de determinação? Que
diabo é isso? Veremos adiante.
Certamente
nosso entrevistador aquietou suas angústias quando outro entrevistado
proclamou: “Os preços das ações são determinados por fundamentos! Esse tipo de
movimentação é uma anomalia que afasta o investidor”.
Nas últimas décadas o valor das ações escapou desesperadamente dos ditos fundamentos, critérios de “valuation papai- mamãe” que usam o fluxo de caixa livre descontado a uma TMA, “taxa mínima de atratividade”, associada ao prêmio de risco do setor. Faz sentido, dinheiro agora vale mais que dinheiro daqui a cinco anos. Sendo assim, é preciso usar a taxa de desconto setorial para trazer esse fluxo longo para “precificar” o valor presente do ativo e torná-lo comparável com os demais.
Faz
sentido, mas o comportamento do mercado de ações nas últimas décadas manifesta
persistente discordância com tal critério. Piketty utiliza uma equação que, em
sua simplicidade, vasculha as profundezas das economias contemporâneas
“financeirizadas”. Piketty apresenta uma relação simples para exprimir a
dinâmica no Capitalismo do Século XXI: r > g, onde r é riqueza e g a renda.
As
proezas de r - a riqueza - nos dias de hoje ensejaram uma matéria do Financial
Times de 21 de janeiro de 2021 que reproduz as opiniões do guru de
investimentos em ativos financeiros, Seth Klarman. Em carta aos investidores,
ele diz que o Federal Reserve desfigurou o mercado de ações. “Quando se trata
do valor dos fluxos de caixa, o futuro vasto e ilimitado, ainda a se
desenrolar, ganhou terreno firme no presente mais ancorado”.
Fundador
do fundo de hedge Baupost Group, Seth Klarman disse aos clientes que as
políticas do banco central e os estímulos governamentais convenceram os
investidores de que o risco “simplesmente desapareceu”, deixando o mercado
incapaz de cumprir seu papel como um mecanismo de detecção de preços.
Klarman
criticou o Federal Reserve por reduzir as taxas de juro e inundar o sistema
financeiro com dinheiro desde o início da pandemia do coronavírus, argumentando
que os movimentos do Banco Central dificultaram a avaliação da saúde da
economia dos EUA. “Com tanto estímulo sendo implantado, tentar descobrir se a
economia está em recessão é como tentar avaliar se você teve febre depois de
tomar uma grande dose de aspirina”, escreveu ele. “Mas, como acontece com os sapos
na água que está sendo lentamente aquecido para ferver, os investidores estão
sendo condicionados a não reconhecer o perigo”.
Assistimos
à dissolução das regras convencionais nos territórios da riqueza, ou melhor
dito, nos territórios em que impera o dinheiro como riqueza absoluta. Os
critérios de avaliação dos ativos particulares dobraram os joelhos diante da
potência do Dinheiro. A riqueza infinita no exercício de sua liberdade negativa
absorveu as impotências da riqueza finita, determinada e particular.
Em
tempos de “normalidade”, as danças e contradanças dos mercados financeiros
realizam a precificação dos ativos singulares em cada momento do tempo,
conforme a reputação de cada um, sempre diante de um futuro imaginado como se
fora finito. Nos momentos de ruptura do sistema privado de avaliação e
precificação, nada resta aos mercados senão a esperança angustiada nos poderes
do dinheiro criado do nada, único senhor capaz de impor sua infinitude
dominadora.
A
perplexidade do guru Seth Klarman reconhece, sem conhecer conscientemente, que
a criação monetária pelo sistema de crédito, entendido como a articulação entre
o agente público, o Banco Central e os bancos privados assumiu os contornos de
um processo autorreferencial na esfera financeira e disfuncional na órbita do
emprego e da renda. As crises se sucedem e se agravam após cada intervenção dos
Bancos Centrais e dos Tesouros nacionais. As ações anticíclicas realimentam e
estimulam o divórcio entre a criação de valor na esfera da renda e do emprego e
a valorização dos estoques de ativos financeiros.
Quem
tem um mínimo conhecimento do assunto sabe que, na história da economia
mercantil-capitalista, as incessantes transformações nos regimes monetários e
financeiros resultam do conflito permanente entre as regras do jogo e a
compulsão dos possuidores de riqueza para transgredi-las.
Willem
Buiter recomenda, sem rodeios, em seu blog na internet: as autoridades
monetárias devem abandonar os escrúpulos. Diante das peculiaridades das crises
atuais, marcadas pelo colapso da liquidez nos mercados de securities e,
portanto, pela impossibilidade de os preços servirem de guia para compradores
reticentes e os vendedores desesperados, os bancos centrais devem operar como
market makers de primeira instância e não apenas como prestamistas de última
instância para um sistema de instituições bancárias e nao-bancárias ávidas por
liquidez.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
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