- Valor Econômico
Anvisa atestou a importância de uma sociedade vigilante
Esta última, realizada
há duas semanas, tem um simbolismo importante. Durante meses, os servidores de
carreira do órgão conviveram com uma inédita desconfiança por uma boa fatia da
sociedade. Motivos não faltavam. O principal era a guerra declarada pelo
presidente da República contra a vacina que a agência viria a analisar.
Nos
primeiros dias da pandemia, Jair Bolsonaro foi à porta do Palácio do Planalto
saudar fãs que pediam um novo golpe militar. Estava acompanhado do atual
presidente da Anvisa, o almirante Antônio Barra Torres, cuja participação no
ato gerou apreensão com a influência do negacionismo sobre o trabalho da
agência reguladora.
Internamente, os
servidores insistiam que a análise das vacinas seria técnica e independente,
mas não negavam o temor de uma possível interferência. A desconfiança chegou ao
nível máximo em novembro, quando a Anvisa interrompeu os testes com a
Coronavac, vacina demonizada pelo presidente da República.
A opinião pública
exigiu uma explicação imediata da agência. Cientistas, médicos, jornalistas,
magistrados e empresários passaram a acompanhar o caso de perto, receosos com
uma suposta má vontade do órgão para com a “vachina” patrocinada pelo governo
paulista. Em menos de 24 horas, os testes foram retomados.
No histórico domingo
da aprovação das vacinas, os técnicos aproveitaram os holofotes e espalharam
recados. Criticaram, de um lado, a demora no envio dos dados necessários e
ressaltaram que, em um cenário de normalidade, haveria subsídios para não
liberar os imunizantes. De outro, saíram em defesa da ciência e atacaram o
curandeirismo potencialmente criminoso do governo federal.
A Anvisa ainda será
colocada à prova algumas vezes nessa pandemia infinita. A pressão do momento é
pela aprovação da vacina russa, que está longe de reunir os requisitos mínimos
para ser usada no país. Bolsonaro ainda indicou para a diretoria da agência um
tenente negacionista que já fez ataques públicos à Coronavac e tentou distorcer
a contabilização de mortos. Ironicamente, ele está internado há semanas com
covid-19.
Pelo menos até aqui,
é importante reconhecer que a Anvisa conseguiu sair sem arranhões em sua
reputação, graças à responsabilidade de seus técnicos e à vigilância da
sociedade. Ressalva às generosas liberações de agrotóxicos proibidos há décadas
no mundo civilizado, mas isso é assunto para outra coluna.
O acervo de
barbaridades cometidas pelo governo federal também se multiplica com rapidez.
Nesse cenário, o exemplo da Anvisa pode ser inspirador a quem tem interesse por
instituições funcionais. O foco, agora, subiu da agência sanitária para o
Ministério da Saúde, mais diretamente para a figura do general Pazuello.
Poucos dias antes de
brasileiros começarem a morrer sufocados no Amazonas, Pazuello - que passou
parte da infância em Manaus - tratou assim do apagão de oxigênio: “Quando
cheguei na minha casa ontem, estava a minha cunhada. O irmão não tinha oxigênio
nem para passar o dia. ‘O que você vai fazer?’ Nada! Você e todo mundo vai
esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”.
Logo em seguida, o
ministro atacou profissionais de saúde que reivindicavam melhores condições de
trabalho, classificando o ato de “extorsão”. Também falou grosso com as
autoridades locais, prometendo visitar as unidades de saúde para verificar a
quantas andava o tratamento precoce da covid, sobre o qual sua gestão despejou
centenas de milhões de reais.
“A medicação pode e
deve começar antes dos exames complementares. Caso o exame, lá na frente, dê
negativo, ele reduz a medicação e tá ótimo. Não vai matar ninguém, pelo
contrário, salvará no caso da covid”, disse Pazuello no dia 11 de janeiro.
“Essa vai ser a nossa retórica. Se eu puder rodar UBS por UBS, eu vou rodar”,
ameaçou.
As ordens do
ministro se materializaram no aplicativo TrateCov, lançado pela pasta com o
suposto objetivo de orientar profissionais de saúde sobre o tratamento precoce.
A ferramenta indicava cloroquina até para bebês com diarreia.
Menos de uma semana
depois, o jogo virou. No dia 17, a Anvisa aprovou o uso emergencial de duas
vacinas e o governo de São Paulo começou a imunização. Os sufocamentos do
Amazonas chocaram o país. A classe médica e a imprensa identificaram e
denunciaram o absurdo aplicativo, que desapareceu num piscar de olhos. Pazuello
baixou o tom e seu chefe, também. A hora é de dar satisfação.
A mobilização da
sociedade, mais uma vez, deu frutos. A contragosto, o procurador-geral da
República, Augusto Aras, teve que pedir ao Supremo Tribunal Federal a abertura
de inquérito contra o ministro da Saúde. O objetivo é investigar se houve
omissão de Pazuello e de sua equipe com o colapso de Manaus.
Em outra frente, o
Tribunal de Contas da União quer conhecer as justificativas para os gastos
públicos com medicamentos ineficazes. Cálculos apontam que o dinheiro usado na
distribuição de cloroquina pelo país seria suficiente para comprar 13 milhões
de doses de vacinas. Em Brasília, é quase consenso que a cabeça do general está
por um fio. Restará a do capitão.
A coleção de
absurdos ditos e praticados pelo presidente da República está refletida na
quantidade de pedidos de impeachment que já chegaram ao Congresso Nacional.
Alguns poderiam ser descartados por um estagiário, é verdade, mas outros
começam a ganhar contornos bem mais consistentes. O patrocínio milionário a
medicamentos milagrosos é um caso considerado bastante factível por quem
entende do assunto.
Em breve, um grande
partido político deverá protocolar um novo pedido de impedimento de Bolsonaro,
desta vez focado em questões contábeis, como aconteceu com Dilma Rousseff. Por
enquanto, o novo presidente da Câmara dos Deputados tem ignorado solenemente o
assunto - ao menos enquanto durar a sua cota de leite condensado.
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