terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Murillo Camarotto - Cloroquina com leite condensado

- Valor Econômico


Anvisa atestou a importância de uma sociedade vigilante


Esta última, realizada há duas semanas, tem um simbolismo importante. Durante meses, os servidores de carreira do órgão conviveram com uma inédita desconfiança por uma boa fatia da sociedade. Motivos não faltavam. O principal era a guerra declarada pelo presidente da República contra a vacina que a agência viria a analisar.


Nos primeiros dias da pandemia, Jair Bolsonaro foi à porta do Palácio do Planalto saudar fãs que pediam um novo golpe militar. Estava acompanhado do atual presidente da Anvisa, o almirante Antônio Barra Torres, cuja participação no ato gerou apreensão com a influência do negacionismo sobre o trabalho da agência reguladora.


Internamente, os servidores insistiam que a análise das vacinas seria técnica e independente, mas não negavam o temor de uma possível interferência. A desconfiança chegou ao nível máximo em novembro, quando a Anvisa interrompeu os testes com a Coronavac, vacina demonizada pelo presidente da República.


A opinião pública exigiu uma explicação imediata da agência. Cientistas, médicos, jornalistas, magistrados e empresários passaram a acompanhar o caso de perto, receosos com uma suposta má vontade do órgão para com a “vachina” patrocinada pelo governo paulista. Em menos de 24 horas, os testes foram retomados.


No histórico domingo da aprovação das vacinas, os técnicos aproveitaram os holofotes e espalharam recados. Criticaram, de um lado, a demora no envio dos dados necessários e ressaltaram que, em um cenário de normalidade, haveria subsídios para não liberar os imunizantes. De outro, saíram em defesa da ciência e atacaram o curandeirismo potencialmente criminoso do governo federal.

A Anvisa ainda será colocada à prova algumas vezes nessa pandemia infinita. A pressão do momento é pela aprovação da vacina russa, que está longe de reunir os requisitos mínimos para ser usada no país. Bolsonaro ainda indicou para a diretoria da agência um tenente negacionista que já fez ataques públicos à Coronavac e tentou distorcer a contabilização de mortos. Ironicamente, ele está internado há semanas com covid-19.


Pelo menos até aqui, é importante reconhecer que a Anvisa conseguiu sair sem arranhões em sua reputação, graças à responsabilidade de seus técnicos e à vigilância da sociedade. Ressalva às generosas liberações de agrotóxicos proibidos há décadas no mundo civilizado, mas isso é assunto para outra coluna.


O acervo de barbaridades cometidas pelo governo federal também se multiplica com rapidez. Nesse cenário, o exemplo da Anvisa pode ser inspirador a quem tem interesse por instituições funcionais. O foco, agora, subiu da agência sanitária para o Ministério da Saúde, mais diretamente para a figura do general Pazuello.


Poucos dias antes de brasileiros começarem a morrer sufocados no Amazonas, Pazuello - que passou parte da infância em Manaus - tratou assim do apagão de oxigênio: “Quando cheguei na minha casa ontem, estava a minha cunhada. O irmão não tinha oxigênio nem para passar o dia. ‘O que você vai fazer?’ Nada! Você e todo mundo vai esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”.


Logo em seguida, o ministro atacou profissionais de saúde que reivindicavam melhores condições de trabalho, classificando o ato de “extorsão”. Também falou grosso com as autoridades locais, prometendo visitar as unidades de saúde para verificar a quantas andava o tratamento precoce da covid, sobre o qual sua gestão despejou centenas de milhões de reais.


“A medicação pode e deve começar antes dos exames complementares. Caso o exame, lá na frente, dê negativo, ele reduz a medicação e tá ótimo. Não vai matar ninguém, pelo contrário, salvará no caso da covid”, disse Pazuello no dia 11 de janeiro. “Essa vai ser a nossa retórica. Se eu puder rodar UBS por UBS, eu vou rodar”, ameaçou.


As ordens do ministro se materializaram no aplicativo TrateCov, lançado pela pasta com o suposto objetivo de orientar profissionais de saúde sobre o tratamento precoce. A ferramenta indicava cloroquina até para bebês com diarreia.


Menos de uma semana depois, o jogo virou. No dia 17, a Anvisa aprovou o uso emergencial de duas vacinas e o governo de São Paulo começou a imunização. Os sufocamentos do Amazonas chocaram o país. A classe médica e a imprensa identificaram e denunciaram o absurdo aplicativo, que desapareceu num piscar de olhos. Pazuello baixou o tom e seu chefe, também. A hora é de dar satisfação.


A mobilização da sociedade, mais uma vez, deu frutos. A contragosto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, teve que pedir ao Supremo Tribunal Federal a abertura de inquérito contra o ministro da Saúde. O objetivo é investigar se houve omissão de Pazuello e de sua equipe com o colapso de Manaus.


Em outra frente, o Tribunal de Contas da União quer conhecer as justificativas para os gastos públicos com medicamentos ineficazes. Cálculos apontam que o dinheiro usado na distribuição de cloroquina pelo país seria suficiente para comprar 13 milhões de doses de vacinas. Em Brasília, é quase consenso que a cabeça do general está por um fio. Restará a do capitão.


A coleção de absurdos ditos e praticados pelo presidente da República está refletida na quantidade de pedidos de impeachment que já chegaram ao Congresso Nacional. Alguns poderiam ser descartados por um estagiário, é verdade, mas outros começam a ganhar contornos bem mais consistentes. O patrocínio milionário a medicamentos milagrosos é um caso considerado bastante factível por quem entende do assunto.


Em breve, um grande partido político deverá protocolar um novo pedido de impedimento de Bolsonaro, desta vez focado em questões contábeis, como aconteceu com Dilma Rousseff. Por enquanto, o novo presidente da Câmara dos Deputados tem ignorado solenemente o assunto - ao menos enquanto durar a sua cota de leite condensado.

 

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