Bolsonaro é o autêntico. Assim vai percebido por parcela relevante da população. E não adiantará argumentar que autenticidade não seja qualidade per se. Tampouco explicar que essa autenticidade seja produto — nada novo — de personalismo extremo, ao qual se soma a pregação permanente de polarização para guerra, comando confundido com ser politicamente incorreto. Nem que sua autenticidade tenha a mesma consistência da de um sociopata. Ele é o mito. Muitos anos sob mentalidade autoritária nos trouxeram até aqui.
Bolsonaro
elegeu-se vendendo também a imagem de alguém que quebrava a liturgia de
Brasília. Num país com baixa cultura republicana, e com tradição personalista,
isso é um tesouro para a modalidade de populismo que representa.
Impossível não associar essa concepção de homem público original à maneira como soube explorar as demandas antipolíticas derivadas do lava-jatismo. O sujeito que é autêntico porque nada deveria ao sistema. É desde essa farsa que arma sua carcaça de líder popular — um poderoso que sai do palácio de moto, simulando improviso, para jogar porrinha numa padaria. Porque pode; porque é gente como a gente; porque está limpo.
Isso
é investimento de longo prazo, cujos dividendos são colhidos em eventos como o
recente encontro com artistas numa churrascaria, pouco depois do episódio
“leite condensado”. Bolsonaro estava acuado. E reagiu conforme seu padrão, com
a agressividade revestida de fala do povo — resposta de alguém que se apregoa
como perseguido e que, injustamente caçado, insurge-se dizendo, com coragem, o
que de hábito só se diria em privado. E então cresce.
Ele
é limpo — este, o pressuposto. E, porque limpo, não pode admitir que o queiram
desonrar — daí que estoure. Sua linguagem é recebida como manifestação de homem
difamado, que se defende com indignação — autorizado a tudo. É a vítima e o
mito ao mesmo tempo. Bolsonaro tem o termômetro da acolhida de seus “enfia no
rabo”. É o zap profundo onde circula influentemente. Confrontá-lo nesse campo é
perder de goleada; o terreno em que se sente à vontade, o da briga de rua, e
para o qual sempre quererá levar os críticos. Na rinha, vencerá.
O
Bolsonaro autêntico vencerá também — já está testado — se confrontado somente
com o Bolsonaro nem tão limpo assim; ele próprio gerador de ao menos três décadas
de farto material para evidenciar a constituição da mentira eleita à
Presidência. E daí? O estelionatário eleitoral, presidente a serviço de
corporações, está na vitrine desde 2019, aquele que chamava qualquer negociação
de toma lá dá cá, e que agora governa com o mais despudorado comércio de poder
— e não balança. Aí está, exaurida, sua história de deputado pendurado nas
tetas do Estado, desde onde montou bem-sucedida empresa familiar — e nada.
Não
produz efeito mostrar que chegou a presidente engordando nas mesmas bordas
fartas do sistema que tornaram Arthur Lira um elemento competitivo. Tampouco
explorar a formação de seus gabinetes — aí incluídos os dos filhos. Ou alguém
acha que a máquina para peculato movida no de Flávio, com a adesão de milicianos,
foi invenção do primogênito? Neste caso, com Queiroz e tudo, os abalos, poucos,
só serviram de gatilho para que se blindasse.
O
Bolsonaro autêntico precisa ser enfrentado — com praticidade — na cancha da
pandemia. Ter expostas, com provas, as consequências da forma como cultiva
deliberadamente a peste. O estado de calamidade que tenta perenizar, dependente
que é do caos, sendo o mesmo que lhe desguarnece o flanco.
O
brasileiro tem de ser informado, com dados, de que sua vida está paralisada —
com miséria aos mais pobres — porque o presidente opera para que a pandemia se
prolongue; donde se prolongará o desemprego. Sua presidência é deletéria em
termos objetivos. Está aí a inflação. Isso é o que deve ser dito e ilustrado.
Que, fosse por Bolsonaro, só haveria, em fevereiro de 2021, dois milhões de
doses de vacinas no Brasil; carga comprada à Índia por preço duas vezes maior
que o pago pela União Europeia. Que, por gestão de Bolsonaro, o país não tem
adquirido volume de doses capaz de imunizar a população. Isso se documenta,
inclusive à luz do Código Penal.
A
comunicação desses fatos será ainda mais importante, porque logo estará
restabelecido o auxílio emergencial, e ele passará a colher as popularidades
decorrentes da geração oportunista de dificuldades.
Para
desconstruí-lo é preciso mostrar que o Brasil vacina parcamente os seus porque
o presidente quer; porque se negou, em agosto de 2020, a contratar 70 milhões
de doses do imunizante da Pfizer; porque até agora nem sequer iniciou
tratativas para adquirir a promissora vacina da Janssen.
Para
simplificar: que tal bater na tecla da incompetência de Bolsonaro?
É
claro que se trata de um autocrata golpista. O golpismo, porém, depende de
2022. E ele só não será reeleito se a percepção sobre o autêntico abarcar o que
a autenticidade não exclui: que seja um governante nocivo. Esqueçamos, por ora,
a problematização de sua moralidade. Bolsonaro é um presidente péssimo, cujos
atos pioram a vida dos que sobrevivem à peste que ele não quer erradicar. Isso
é o que deve ser repetido. Sei que não é apenas um incompetente. Mas estou
convencido de que só a exploração política dos efeitos de sua incapacidade
poderá derrotá-lo.
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