terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Ao liberar armas, Bolsonaro impõe uma roleta-russa – Opinião | O Globo

No apagar das luzes de sexta-feira, véspera de um carnaval atípico, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou para promover um escandaloso “liberou geral” no acesso a armas e munições. Em quatro decretos, facilitou ainda mais a compra, a posse e o porte de armamentos. Num dos principais pontos, ampliou de quatro para seis o número de armas permitidas para cada cidadão. Agora, o brasileiro pode manter seu arsenal particular.

Além disso, os decretos “desburocratizam” o acesso às armas. Tradução: afrouxam o controle necessário sobre compra, posse e porte. Para entrar no grupo de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs), o interessado precisa apenas de um laudo assinado por qualquer psicólogo com registro ativo. Antes, exigia-se um credenciado pela Polícia Federal. A compra de armas para os CACs não precisará mais de autorização do Comando do Exército. Agora, ela só será necessária quando o pedido exceder o limite de cada categoria.

A flexibilização posta em prática desde de 2019 já resultara na multiplicação das armas. Em 2020, o número de novos registros na Polícia Federal para cidadãos comuns saltou 91% e foi o maior da série histórica. Não é preciso fazer cálculos complexos para imaginar o que acontecerá agora.

Ao comentar o decreto durante sua folga no litoral Norte de Santa Catarina, Bolsonaro disse que o “povo está vibrando” com a decisão. Ora, é preciso viver noutro mundo para imaginar que o povo esteja vibrando com alguma coisa. Num carnaval com clima de Quarta-Feira de Cinzas, o país assiste a um desfile macabro provocado pela tragédia do novo coronavírus. Faltam oxigênio, leitos de UTI, vacinas e empregos. Mas o cidadão agora pode comprar até seis armas para “se proteger”.

Evidentemente, o aumento do número de armas em circulação não é o único fator que insufla a violência. Nem o principal. Mas será que alguém em sã consciência acredita que a segurança melhorará armando cidadãos até os dentes? Que tal fazer a pergunta às mães de Ághata, Rebecca, Emilly, João Pedro e de tantas outras crianças e adolescentes cujas vidas foram interrompidas por balas perdidas?

Não é difícil entender que mais armas e mais munição significam mais tiros. E mais tiros significam mais mortes, como já demonstraram dúzias de estudos acadêmicos. Ou armas não foram feitas para matar? É ridículo imaginar que elas serão compradas para ficar guardadas só como “proteção”. A tragédia está sempre à espreita.

Bolsonaro, mais do que ninguém, deveria saber que, no cenário real da violência, a arma não protege. Em 1995, quando era deputado federal, ele foi assaltado na Zona Norte do Rio. Ficou sem a moto Honda Sahara 350 e sem a arma (uma pistola Glock 380). Se o porte significasse mais proteção, tantos policiais não morreriam todos os dias — muitos fora do expediente, como cidadãos comuns.

Bolsonaro acaba de fornecer mais pólvora às sangrentas estatísticas de criminalidade. Dados do Monitor da Violência, do G1, mostram que os assassinatos no país aumentaram 5% em 2020, em plena pandemia. Com decretos insanos, feitos sob medida para agradar nichos eleitorais, de olho apenas em 2022, Bolsonaro submete a sociedade brasileira a uma roleta-russa. Tamanha irracionalidade pode até não aparecer de imediato nos índices de violência. Mas o tambor está girando. É só uma questão de tempo.

Decretos da bala – Opinião | Folha de S. Paulo

Bolsonaro põe segurança pública em risco para sustentar populismo armamentista

Com a salva de quatro decretos sobre armas de fogo disparados na sexta-feira (12), Jair Bolsonaro deu nova demonstração de que está disposto a arriscar a segurança pública do país para sustentar um tresloucado discurso populista.

Fiel à promessa temerária de armar a população, o presidente facilitou o acesso a dispositivos, munição e prensas. Diminuiu o controle do Exército sobre o arsenal acumulado por civis e afrouxou normas que permitem rastrear armamento empregado em assassinatos.

Bolsonaro passa ao largo da alta de homicídios em 2020, que põe em xeque a propaganda governista destinada a associar a melhora de 2019 à chegada da linha dura ao poder. Conforme levantamento do portal G1, houve 5% mais assassínios no ano passado, quando ocorreu o registro de 180 mil armas novas, 91% mais que em 2019.

O número de armas em circulação deverá crescer ainda mais, uma vez que cada pessoa poderá comprar até seis delas, e não mais o máximo de quatro. No caso de atiradores, o total permissível passa para 60 peças; no de caçadores registrados, serão 30.

Com a nova regra, portadores de armas registradas, agentes de forças de segurança e membros da magistratura e do Ministério Público poderão abastecer-se anualmente com 5.000 cartuchos. Já a quantidade de projéteis de calibre restrito que podem ser adquiridos a cada ano por atiradores desportivos sobe de 1.000 para 2.000.

Boa parte das armas de fogo compradas legalmente, como se sabe, acaba chegando à mão de criminosos. O próprio Bolsonaro já ficou sem pistola e motocicleta num assalto em 1995. Além disso, mais armas entre cidadãos aumentam os riscos de homicídios por motivo fútil, suicídios e acidentes.

Apesar das consequências previsíveis, Bolsonaro afrouxou ainda os requisitos para aquisições. Atestados antes exigidos de psicólogos credenciados na Polícia Federal poderão ser feitos por profissionais sem tal registro; em alguns casos, bastará “declaração de habitualidade” por clube de tiro, em flagrante conflito de interesses.

O presidente alega que o particular tem direito à legítima defesa, mas são comuns as situações em que este reage e termina baleado, morto ou sem a arma. Bem mais preocupante, porém, é a justificativa de que “o povo armado jamais será escravizado”, proferida por Bolsonaro na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

Felizmente, 72% do eleitorado declarou discordar da sandice perigosa, como mostrou pesquisa do Datafolha. Se as forças políticas souberem ouvir a sociedade e os especialistas no tema, crescerá a chance de que a obsessão armamentista do Planalto seja contida.

O tuíte do general – Opinião | Folha de S. Paulo

Relatada com novos detalhes, ameaça ao STF em 2018 abriu precedente perigoso

Em 3 de abril de 2018, um dia antes de o Supremo Tribunal Federal negar um habeas corpus que pouparia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de 580 dias de cadeia, o Exército resolveu falar do caso.

Na forma de postagem no Twitter do então comandante Eduardo Villas Bôas, a Força admoestou a corte sobre riscos à estabilidade institucional caso livrasse o líder petista, alvo mais graúdo da Lava Jato, da prisão que o esperava.

“ Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”, foi o texto descabido levado a público.

Nada estava dito com todas as letras, mas o recado era claro. O próprio general confirmaria, em entrevista à Folha no fim daquele ano, que tinha agido no limite da responsabilidade institucional.

O episódio voltou à tona com novas nuances, por iniciativa do próprio militar, com a publicação de um registro de história oral por parte do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas. Nele, VB, como o general é conhecido, não fica nada bem.

Ele repete a argumentação de 2018, segundo a qual não havia ameaça, e sim alerta pelo que considerava risco de agitação golpista por parte da população caso Lula fosse mantido livre.

O relato se adensa quando o general sugere que o temor era o da volta da esquerda ao poder. Lula, porém, estaria inelegível —como segue hoje, mesmo fora do cárcere.

Também é reveladora do quadro de então a descrição sobre como os fardados se entusiasmaram com a ascensão da candidatura presidencial do capitão reformado Jair Bolsonaro, até então mal visto devido a seu histórico de indisciplina.

Mais perturbador é saber que integrantes da atual cúpula da República participaram da discussão sobre tal nota na qualidade de membros do Alto-Comando do Exército —e que o teor inicial da mensagem era ainda mais duro.

Não que isso denote pendores golpistas. Tudo indica que a manifestação de Villas Bôas ficou circunscrita àquele episódio, apesar das idas e vindas de militares durante a crise institucional ensaiada por Bolsonaro ao longo de 2020.

O próprio general busca apaziguar espíritos ao dizer que respeitaria qualquer resultado da eleição. Nesse caso, mesmo o que é óbvio ululante precisa ser reiterado.

Uma PEC cada dia mais emergencial – Opinião | O Estado de S. Paulo

A PEC que segura a erosão fiscal crônica está encalhada no Congresso. Só no primeiro ano, a economia seria de R$ 25 bilhões

Enquanto governo e Congresso batem cabeça para encontrar a quadratura do círculo, e investir em programas sociais sem aumentar impostos ou se endividar, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/19, dita da “Emergência Fiscal”, está há mais de um ano encalhada no Congresso. A PEC nada tem a ver com a covid-19: ela foi desenhada para conter a erosão fiscal crônica quando atinge a fase aguda, enquanto o poder público não promove reformas que restituam a funcionalidade orçamentária da máquina administrativa. Mas, com a pandemia, ela se tornou mais “emergencial”. Uma Nota Técnica do Centro de Liderança Pública (CLP) mostra isso com didatismo.

Entre 2008 e 2018, o setor público aumentou em quase 10% o número de empregados. Entre 2002 e 2017, enquanto a remuneração mensal média dos funcionários públicos aumentou de R$ 3 mil para mais de R$ 4,2 mil (cerca de 40%), no setor privado passou de R$ 2 mil para menos de R$ 2,4 mil (20%). Isso sem contar uma pletora de privilégios (“penduricalhos”), sobretudo para o alto escalão, notadamente no Judiciário. Se o setor público não tivesse tido aumentos superiores aos do privado, teria tido um espaço fiscal de 1,3% do PIB (quase R$ 90 bilhões) – 3 vezes o orçamento do Bolsa Família e mais que o déficit primário de 2019.

“Com elevações reais dos salários maiores do que no setor privado em ‘bons tempos’ econômicos, junto à impossibilidade de redução salarial nominal em períodos de necessidade de austeridade, a folha de pagamentos do setor público tem elevado progressivamente seu peso nas contas públicas, criando fortes dificuldades para a gestão pública, especialmente de Estados e municípios, que, ao contrário da União, não podem emitir títulos de dívida pública”, explica o CLP.

Não havendo mecanismos para controlar os gastos obrigatórios (previdência e salários), os discricionários (investimentos e programas sociais) são sacrificados. Em 2019, o Brasil teve um investimento líquido negativo de 0,4% do PIB, o pior da série iniciada em 2010. O orçamento do Bolsa Família para 2021 é 6% menor do que o de 2014. Inúmeros programas sociais subnacionais foram reduzidos ou extintos.

Em 2020, o governo federal fechou o ano com um déficit primário de 10,9% do PIB, e não há horizonte para o retorno do superávit primário (estimava-se que em 2030 o déficit chegaria a 0,78%). A dívida pública saltou de 56,2% do PIB em 2014 para 93% em 2020, patamar perigoso para um país emergente.

Dos 27 Estados, 21 já rompem o limite de gastos com pessoal da Lei de Responsabilidade Fiscal, alocando mais de 54% das suas receitas líquidas para custear o funcionalismo; 15 rompem também o limite prudencial, gastando mais de 57%; e 10 ultrapassaram a linha vermelha de 60%. Só seis Estados não desrespeitam os limites da lei. A situação dos municípios é similar, especialmente no Norte e Nordeste.

A PEC prevê uma série de gatilhos, acionados automaticamente, caso a “regra de ouro” (endividamento maior que os gastos com investimentos) seja rompida, como proibição de reajustes salariais, concursos para contratação de pessoal, reestruturação de carreiras, criação de cargos e promoções, além da redução de 25% da jornada de trabalho com redução proporcional da remuneração. Também prevê, a partir de 2026, mecanismos de bloqueio para a criação, ampliação ou renovação de benefícios tributários, além da reavaliação periódica dos subsídios existentes.

No caso dos entes subnacionais, pelos cálculos do CLP, se esses gatilhos fossem aplicados, em 10 anos se economizariam R$ 75 bilhões. Ou seja, nos 10 anos de vigência da PEC, a economia seria superior a 2 anos do Bolsa Família. Só a redução dos reajustes já levaria a uma economia de R$ 35 bilhões a R$ 41 bilhões. Para a União, prevê-se uma economia de R$ 50 bilhões em 10 anos.

Só no primeiro ano, a economia seria de quase R$ 25 bilhões (R$ 12,5 bilhões para Estados e municípios e R$ 12 bilhões para a União). Como se vê, embora a PEC Emergencial nada tivesse a ver com a pandemia, só se tornou mais, não menos urgente com ela. 

Enfim, emancipação do BC – Opinião | O Estado de S. Paulo

Atenção ao emprego já está na pauta do BC. Não era preciso copiar a lei do Fed

O Brasil fica mais moderno, mais organizado e um pouco menos sujeito ao populismo com a aprovação da autonomia do Banco Central (BC), assunto discutido há décadas. Conter a inflação continuará sendo sua missão principal, a mais importante para o bem-estar das famílias e para o bom funcionamento da economia. Será menor o risco de palpites e interferências políticas nas decisões sobre juros e condições de crédito. Com mandatos de quatro anos, os diretores só serão demissíveis em condições definidas na lei. Além disso, seus mandatos nunca serão coincidentes com o do presidente da República. Dito isso, é preciso reconhecer um detalhe prosaico e certamente positivo: na prática, a política monetária já vem sendo conduzida de forma autônoma, há anos, e seus critérios e prioridades devem ser mantidos, talvez para surpresa de muitos parlamentares e escândalo de outros.

Defender o poder de compra da moeda e garantir um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo sempre foi missão do BC, definida na Lei 4.595, de dezembro de 1964. Mas outros objetivos foram normalmente considerados na elaboração da política monetária. Ao mexer nos juros, nas condições do crédito e, de modo geral, na criação de moeda, os formuladores sempre levaram em conta os efeitos de suas decisões na atividade econômica e no emprego. Sempre avaliaram, portanto, o custo econômico e social de cada ação destinada a estabilizar os preços.

Não há nada surpreendente nesse procedimento. Comparar benefícios e custos de cada medida é mero exercício de racionalidade. Más decisões, muito frouxas ou muito severas, podem ter sido tomadas, no Brasil e em quaisquer outros países, mas isso é parte da vida normal. De qualquer forma, nenhum diretor de banco central é um robô programado para decidir com base em apenas um objetivo.

A política do BC tem sido conduzida, no Brasil, de forma bastante aberta. As decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) são informadas e explicadas, em seus aspectos essenciais, logo depois de toda reunião deliberativa. Uma ata com mais detalhes é divulgada na semana seguinte. Se lessem esses documentos, ou pelo menos o noticiário neles baseado, parlamentares teriam produzido um debate mais informado e mais inteligente durante a tramitação do projeto recém-aprovado. Se entendessem um pouco mais do assunto, ou se procurassem ajuda de pessoas competentes, teriam dito menos tolices e proposto, talvez, emendas mais úteis.

Sem surpresa, portanto, prevaleceu a ideia, defendida há muitos anos por alguns parlamentares, de incluir a atenção ao pleno-emprego entre as funções do BC, ampliando seu mandato legal. Com a explicitação desse ponto, copiou-se a legislação dos Estados Unidos. O Federal Reserve (Fed, o banco central americano) foi criado em 1913 com o mandato de “promover com eficiência os objetivos de máximo emprego, preços estáveis e juros de longo prazo moderados”.

Na prática, passou-se a procurar o máximo emprego compatível com preços estáveis, sendo estes, portanto, a referência principal. Essa é a política básica seguida até hoje, apesar das diferenças entre dirigentes mais propensos ao aperto ou ao afrouxamento monetário. Vários políticos brasileiros entusiasmados com o modelo do Fed parecem jamais haver entendido esses detalhes.

De toda forma, a lei recém-aprovada inclui a atenção à atividade econômica e ao pleno-emprego no mandato do BC, mas em posição secundária. Há nesse detalhe uma aparência de bom senso, mas a política de crescimento envolve muito mais que juros baixos e crédito amplo. Além disso, a inovação legal, embora nada acrescente aos critérios normalmente seguidos pelo BC, pode estimular pressões injustificadas e geradoras de insegurança econômica e financeira. Parte dos congressistas defende a subordinação da política monetária ao Executivo. A última experiência desse tipo, entre 2011 e 2013, resultou em forte aumento da inflação e em desmoralização do BC. O conserto foi demorado e custoso. Melhor é evitar experiências desse tipo.

A grande estratégia chinesa – Opinião | O Estado de S. Paulo

Democracias liberais têm muito o que discutir em termos de coalizões internacionais

Alavancada pelo desempenho econômico mais extraordinário da história recente e provocada pelas tensões comerciais com os EUA, as demandas pelo desenvolvimento social da população e a pandemia, a China está acelerando sua grande estratégia de evolução interna e externa, política e econômica. Esta estratégia foi tema de um seminário promovido pelo Centro Empresarial Brasil-China com o historiador Jonathan Fenby.

“Duas facetas da estratégia chinesa são projetadas para se encaixar: o desenvolvimento econômico e o controle político em casa e fora”, resumiu Fenby. A China deve consolidar seu papel como economia que mais cresce – 5% em média pelos próximos 15 anos –, mas com a crescente ambição de influenciar a política externa e fortalecer o domínio do Partido Comunista na política interna.

Os pilares econômicos vêm sendo consolidados nos oito anos em que Xi Jinping está no poder: “Fortalecer a economia doméstica; impulsionar o consumo; encorajar tecnologias avançadas; remodelar as cadeias de valor; e reduzir os riscos gerados pelo padrão do crescimento do passado”. Já no exterior, “a China promoverá seus interesses tanto regionalmente quanto globalmente, buscando mais voz em organizações internacionais”.

Esta estratégia será implementada em um novo contexto: a cooperação com o Ocidente e o Japão, que marcou a trajetória da China desde os anos 70, foi em parte substituída pela rivalidade, por sua vez amplificada durante a administração de Donald Trump, em atritos que tocam a economia, a política, a sociedade e a tecnologia. Com Joe Biden, pode-se esperar mudanças de estilo – “com uma agenda mais coesa e, sobretudo, com mais consultas a seus aliados” –, mas não de orientação.

A comparação com a guerra fria é tentadora, mas tende mais a eludir do que a esclarecer. “A área de cooperação entre EUA e China é bem maior do que os pontos de desacordo.” De resto, a China é um adversário muito mais poderoso do que a URSS, com um mercado e uma tecnologia mais dinâmicos, um governo mais competente e uma economia mais integrada internacionalmente. A maioria dos países deseja manter boas relações tanto com os EUA como com a China.

Como parte de sua estratégia, a China deve facilitar o acesso ao mercado para empresas estrangeiras. Além de projetar uma “Nova Rota da Seda”, o país fechou no fim de 2020 um acordo de investimentos com a União Europeia e um acordo comercial com 14 países da Ásia-Pacífico. O mercado chinês desperta cada dia mais o apetite de empresas americanas e precisará reassegurar uma cadeia estável de fornecimento de commodities – algumas particularmente importantes para o Brasil, como o ferro, a soja e outros produtos agrícolas. Assim, China e EUA, bem como as demais democracias liberais, “têm muito a perder engajando-se em uma guerra fria”, afirmou Fenby.

As possibilidades de transações econômicas e de cooperação geopolítica – notadamente no combate às mudanças climáticas ou à pandemia – são promissoras. Contudo, se o seminário com Fenby, tendo sido pautado por um centro empresarial, pode ser escusado por não abordar questões políticas prementes – como as violências praticadas pelo Partido Comunista contra Hong Kong ou os muçulmanos de Xinjiang; seu desprezo pelos direitos humanos e acordos internacionais; ou as ameaças a Taiwan e aos países do Mar do Sul –, as lideranças políticas democráticas não podem se dar o direito de ignorá-las.

Ante o despotismo chinês, as democracias liberais têm muito o que discutir em termos de coalizões internacionais. Mas, até para que sejam efetivas, há muito trabalho interno a fazer. Isso implica revigorar suas economias, proteger sua autonomia tecnológica e impulsionar sua produção científica. Mas, mais importante, antes de considerar qualquer estratégia de contenção direta, o mundo democrático precisará revitalizar convincentemente suas instituições liberais e focar em valores humanos fundamentais para confrontar o despotismo “pelo poder do seu exemplo”, como disse Joe Biden, “e não pelo exemplo do seu poder”.

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