O
brasileiro é um crente desesperado na meritocracia
Não deve ser coincidência que um dos países mais desiguais do mundo tem também fé inabalável na meritocracia. Tudo que você quiser você pode alcançar; basta querer.
De
música da Xuxa a palestra motivacional do mundo corporativo, você já ouviu variantes
disso. A promessa do sucesso
baseado unicamente no mérito individual está em toda parte.
Está
na autoajuda vendida por coaches, pelos gurus de finanças com suas fórmulas de
day trade e por vendedores de esquemas de pirâmide, todos prometendo riqueza
fácil. O discurso do mérito individual é o que alimenta as indústrias
aparentemente tão opostas do empreendedorismo (com suas estrelas, livros e
cursos de sucesso) e do mundo concurseiro. "Só não passa quem
desiste", diz um mantra concurseiro. Ou —vale completar— quem morre.
Seja
para montar um negócio brilhante ou para ingressar no paraíso do serviço
público estável, a regra é a mesma: trabalhar e estudar enquanto os outros
dormem, dar tudo de si, sacrificar o que for necessário e, acima de tudo,
acreditar. Esportistas, músicos, blogueiros de Instagram, youtubers; todos
entoam a mesma melodia.
Esse discurso funciona para quem o vende: para o empreendedor cujo empreendimento é ensinar empreendedorismo. Para quem compra, nem tanto. Os esquemas de pirâmide aqui se multiplicam e adotam mil roupagens.
De
shakes dietéticos e produtos de beleza a grupos de espiritualidade feminina. É
um tentando ganhar às custas dos outros, num jogo em que, necessariamente, para
um ganhar, vários têm que perder. E os que terminam por cima ainda escrevem
livro e vendem curso passando adiante suas lições.
Não
é só na vida terrena que a crença na meritocracia nos governa. Ela molda também
nossa relação com o mundo espiritual. Creia em Deus com fé inabalável, doe
bastante dízimo, que Ele lhe recompensará. Fora do espectro cristão a mesma
regra vale: esprema qualquer grupo ou doutrina esotéricos e você descobrirá,
escondida por trás de muitos mistérios, a velha Lei da Atração: o universo lhe
dará aquilo que você deseja ou mentaliza. Se ficou doente ou perdeu o emprego,
bem, talvez você devesse ter atraído energias melhores.
Quem
não ganha dinheiro é vagabundo. Quem morre de doença é fraco. O brasileiro é um
crente desesperado na meritocracia. Quem está por baixo, para manter viva a
esperança de subir. Quem está por cima, para justificar sua própria situação.
Só que isso está nos matando.
Comprar armas
de fogo, não tomar
vacina, não usar máscara, dirigir alucinado pelas estradas, desmatar
e poluir livremente. Se eu quero, eu posso. A segurança pública vai mal? Mais
armas na mão. A educação pública vai mal? Libera o
homeschooling. Consequências sociais negativas, efeitos nocivos de
longo prazo? "E daí, quer que eu faça o quê?" O ganho de curtíssimo
prazo de alguns consome o ganho de longo prazo de todos.
A
crença meritocrática parte de algo positivo: o desejo de criar, de conquistar,
de ir além; a ambição que leva ao crescimento. Competir, dentro de certos
limites, é bom.
A
ambição pessoal é um motor que não deve ser sufocado. Trabalhar, empreender e
criar são marcas nacionais. Mas o excesso está nos matando: uma overdose tóxica
de coaches, blogueiras, pastores, empreendedores de palco e esquemas de
pirâmide que nos pinta, como ideal de sociedade, a lei da selva. Falta alguém
que reconheça o óbvio —não, não é possível todos "chegarem lá"— e
tire as consequência políticas disso.
*Joel Pinheiro da Fonseca, Economista, mestre em filosofia pela USP.
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