Como
todo conceito político, também o de revolução, não possui uma leitura unívoca,
sendo reconhecidamente um conceito polêmico. Em função disso, este ensaio tem
como propósito realizar uma reflexão em torno do conceito de revolução, da
mitologia que se formou em torno dele, e da relação nem sempre sincrônica e
consonante que teve com o tema da democracia. Obviamente, não há nenhuma
intenção de esgotar o problema. Mais do que tudo, o que se quer é levantar
alguns elementos relevantes que a literatura a respeito dessa problemática tem
apresentado ao debate.
A
revolução no centro do mundo
Inicialmente
penso ser importante indicar, como já o fizeram diversos analistas do tema, que
o termo revolução deriva das ciências naturais[1] e a sua primeira utilização para qualificar um
acontecimento político ocorre precisamente na Inglaterra, em 1600, para
identificar um processo de restauração política com o fechamento do Parlamento
pela Monarquia. Outros processos de restauração política na Inglaterra até o
estabelecimento da Monarquia Constitucional em 1689 foram ainda qualificados de
revolução. Mas somente com a Revolução Francesa de 1789 é que o termo passou a
adquirir o sentido e as conotações que lhe atribuímos hoje[2].
Inscrita
na história política e social que abre as portas da modernidade no Ocidente, o
conceito de revolução passou a ser objeto de muitas definições. No entanto, as
tentativas de se precisar um significado definitivo para o que se entendia como
revolução apontou resultados bastante discrepantes. Podemos recolher dessas
tentativas definições descritivas do “fenômeno” que se reportam a “mudanças
violentas”, a episódios de “guerra interna” ou definições mais negativas que
visam qualificar a revolução como o contrário de “evolução” ou “regressão”
histórica. Por fim, o entendimento de que a retomada do monopólio do poder sob
novas formas, como resultado da fratura das instituições estatais, ou a noção
de uma “etapa superior” do desenvolvimento social, conforme uma visão
progressiva da história, configuram-se como caracterizações mais precisas, mas
não por isso deixam de ser bastante abrangentes.
Em virtude da dificuldade de se encontrar uma definição consensual sobre o conceito é importante ter em mente que principalmente os mais notórios defensores da revolução na história contemporânea, dentre eles, Karl Marx, nunca buscaram uma definição axiológica, preferindo descrever e compreender os seus traços históricos mais importantes. Para a discussão que pretendemos fazer aqui uma outra coisa importante que se deve ter em vista é que a discussão em torno da revolução marcou profundamente a esquerda ocidental precisamente porque todos os seus horizontes estiveram ancorados na perspectiva de buscar uma nova sociedade, tendo como seu paradigma fundante a noção de revolução. Mas, ainda assim, é preciso admitir mais amplamente, como o fez F. Furet (1978), que a idéia de revolução passou a estar no “centro das nossas representações políticas” e, por isso, acabou por fixar no pensamento ocidental uma visão mitológica da revolução e do que ela mais se propunha, ou seja, a transformação histórica.
A
Revolução Francesa de 1789 foi, sem dúvida, aquela que forneceu modelarmente à
cultura do Ocidente por 200 anos o combustível imaginário e prático do que é ou
deveria ser uma revolução. A profunda ruptura histórica que ela gerou ou
significou para os homens de fins do século XVIII e início do século XIX acabou
cristalizando a idéia de que toda mudança
radical – e é esse o sentido essencial que revolução passa a ter na
história moderna – só poderia ser entendida como tal se percorresse o traçado
desenhado pelo processo que havia sido aberto na França em 1789 e que, em algum
momento, havia também se concluído, dependendo da leitura deste processo.
Assim,
a partir do discurso vocalizado pelos protagonistas mais eminentes do 89
francês, a revolução pôde construir in
acto a sua leitura da história, de si mesma e do futuro. Esse
discurso auto-referente e legitimador do fato revolucionário acabou por circunscrever,
então, a revolução numa representação mitológica de si mesma. A vida, em sua
integralidade, desde os seus aspectos mais cotidianos, assim como o futuro
passam a ficar retidos no interior dessa representação: aqui, só se vê o
passado pela ótica do fato revolucionário, só se vê o futuro através dos
ditames da consciência revolucionária, elemento que ordena e governa o
presente.
O
mito da revolução
É
incontestável que o século XIX e mesmo o século XX, e em especial, as suas
esquerdas, viveram imersos nesse paradigma. Podemos derivar daí,
conclusivamente, que foram as leituras da Revolução Francesa de 1789, a partir
mesmo dos seus protagonistas, que produziram a matriz do mito da revolução no
mundo contemporâneo. As revoluções que se seguiram, vitoriosas ou fracassadas,
buscaram ou realizaram uma atualização deste mito. A Revolução Russa de 1917,
por exemplo, em outro tempo e contexto históricos, também o refez e conservou
profundamente a sua energia, repondo a fratura do tempo histórico que a visão
mitológica da revolução carregava. Pode-se dizer, assim, que, no nosso tempo, é
o mito que informa a noção de revolução no imaginário das esquerdas. Não por
outra razão o 89 francês e os processos políticos que ele desencadeou não foram
percebidos como o momento fundador da democracia dos contemporâneos. Momento
este que, na política, estabeleceu aquela vocação ao excesso e a sua permanente
neutralização que viriam a marcar a democracia dos contemporâneos de que nos
fala Pietro Barcelona(1989).
Investigar
e refletir sobre esse mito parece-me importante não apenas do ponto de vista
histórico como também em virtude das alterações profundas que se processam nos
referenciais gerais da cultura política da esquerda nas últimas décadas. Agnes
Heller e Ferenc Feher (1985), preocupados em desvendar a “anatomia” da esquerda
no Ocidente, empreenderam uma estimulante análise da morfologia do mito da
revolução. O seu princípio central, dizem estes autores, estrutura-se em torno
da afirmação de que a revolução constitui-se numa “linha divisória entre o
presente (mau) e o futuro (bom)”. A revolução passa a ser entendida como “um
simples ato de máxima decisão” no qual “os poderes de dominação serão
destruídos e o ‘poder’ será tomado por seus atores”. Abre-se, assim, uma nova
fase, “uma corrente de desenvolvimento histórico, radicalmente nova,
diametralmente oposta à anterior”.
Esta
visão mitológica da revolução, que se reproduziu historicamente, acabou por
atingir o coração das construções mais amplas do tempo da história e também do
tempo da política. Em relação ao primeiro, processou-se o nascimento de uma
historiografia (também mitológica) que passou a ler nos acontecimentos do
passado o que mais se aproximava da revolução conformada em mito[3], deixando de relevar acontecimentos ou processos
“revolucionários” que alteraram profundamente a história, mas que não podiam
ser inteiramente descritos ou tomados como “revoluções”. De outro lado,
abordando a revolução pela ótica do mito – e esta supõe uma ruptura visceral da
trama da história pelo fato revolucionário – tal historiografia deixou de
relevar o movimento real das próprias revoluções que, em geral, também
apresentavam elementos de continuidade histórica. Alex de Tocqueville (1979), a
despeito das suas origens aristocráticas e do seu liberalismo antijacobino,
observou, com bastante propriedade, que a Revolução Francesa de 1789
completava, na verdade, a obra de centralização do Estado francês, uma anotação
também feita por Marx e que, em geral, alguns marxistas demonstraram-se
inclinados a esquecê-la quando buscaram definir o conceito de revolução.
Revolução,
política e modernidade
Quando
nos voltamos para o tempo da política, isto é, o tempo da ação política que os
atores sociais definem e vivenciam em sua prática, a visão mitológica da
revolução consegue imprimir um sentido fortemente restritivo – e, por isso,
politicamente bastante complicador – ao conceito de revolução. Não é difícil
observar que, na ação política daqueles que almejam a revolução,
invariavelmente, a própria noção de revolução passa a ganhar uma definição
anterior ao real na medida em que ela aparece como um elemento projetual de
caráter central. As definições projetuais de revolução certamente querem dar
conta de aspectos gerais da realidade histórica e por isso apresentam-se como
visões totalizantes. Invariavelmente, o tempo político aparece, nesta visão, submerso
na fratura do tempo histórico que o mito da revolução impõe.
Vejamos
um exemplo eloqüente disso. O marxista inglês, Perry Anderson (1986),
polemizando com Marshall Berman (1987) sobre as questões da modernidade,
procurou deixar claro a sua definição de revolução. Para Anderson, “revolução é
um termo com sentido preciso: a destruição política, de baixo para cima, de uma
ordem estatal, e sua substituição por outra”. Qualquer ampliação dessa
definição, segundo este autor, configuraria uma “desvalorização irresponsável
do termo”, levando à incompreensões da história, do presente e a incorreções
políticas. A revolução, diz Anderson, é um processo “pontual” e não “permanente”:
“um episódio de transformação política convulsiva, comprimido no tempo e
concentrado no alvo, que tem um início determinado – quando o antigo aparelho
de Estado ainda está intacto – e um final limitado, quando o antigo aparelho é
decisivamente destruído e um outro ergue-se em seu lugar”. Não é difícil
reconhecer aqui a forte presença do 89 francês, bem como tudo o que se
cristalizou no século XIX e na primeira metade do século XX como referente
revolucionário para as forças da esquerda.
Com
esta definição, Perry Anderson pretende expressar a necessidade de distinção
entre a “revolução permanente” do capitalismo em que, como diz Berman,
recorrendo a Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”, e a revolução política
do socialismo. No entanto, uma pergunta se faz indispensável para todos os que
almejam este mesmo objetivo: como se poderá pensar na atual viabilidade de uma
revolução política do socialismo – uma revolução que, de acordo com a esquerda,
abriria as portas do futuro – carregando consigo uma definição basicamente
oitocentista da revolução? Prisioneiro, como está, da visão mitológica da
revolução, Anderson irá advogar a idéia de que a “vocação de uma revolução
socialista não seria nem a de prolongar nem a de realizar a modernidade, mas
sim a de aboli-la”. Ora, precisamente num contexto de modernização vivido pelo
Ocidente – do qual a Revolução Francesa foi, sem dúvida, um fato decisivo, mas
também o foram (e o são) o capitalismo, a industrialização e a democracia
política, todos, marcas indeléveis da modernidade – seria possível a vigência
de uma revolução nos moldes do paradigma oitocentista?
Penso
que hoje tal paradigma aparece como absolutamente desprovido de sentido em
relação aos países que viveram e vivem, de alguma maneira, o percurso da
modernidade. E representa até mesmo uma restrição à noção mais básica de
revolução como mudança
radical. Fica patente que o mito dificulta a compreensão daquilo
que, de fato, pode ser revolucionário, dependendo do contexto, das
determinações e da vontade na ação política transformadora. Ele formaliza a discussão e não
consegue dar conta das profundas alterações por que passaram as sociedades
contemporâneas, precisamente nas três dimensões básicas da modernidade
sumariadas acima. Em relação ao tema do Estado e da democracia, por exemplo,
ainda se permanece trabalhando com a noção estrita do Estado como aparelho de
coerção; por conseguinte, a sua “quebra” pelos “de baixo” é, em si, vista como “boa”.
Voltaremos a isso mais adiante.
Entretanto,
configura-se como um dado da história que tal revolução – a revolução da
abolição da modernidade – não ocorreu após a definitiva instalação do moderno
no Ocidente. A revolução russa de 1917, por exemplo, como nos chama atenção
Vitorio Strada (1989), representa em certa medida “uma antítese da revolução
francesa e com relação às revoluções democráticas traça uma parábola que há
muito tempo tocou seu apogeu”[4]. Constatada esta situação e admitindo-se a
impossibilidade de se “abolir” a modernidade pela revolução, onde buscar, como
pensavam Marx e também Gramsci, a inspiração para a paixão revolucionária? Onde
buscar a poesia do novo século e do novo milênio?
Qual
o problema real que está por trás destas perguntas? Tanto para o analista
quanto para o ator, o problema crucial reside em definir o tempo em que se
vive. Tempo do moderno, do pré-moderno ou do “pós-moderno”? Esta definição do
tempo passou a ser crucial para o pensamento ocidental e até mesmo para os
projetos de revolução, a partir da hipertrofia da modernização e dos desafios
da modernidade para os homens do final do século XIX e do século XX, antepondo
as representações de uma realidade novíssima que se formava à noção de
revolução oitocentista. Mas, como veremos em seguida, invertidamente, o mito da
revolução permaneceu ainda como uma referência demasiado forte.
Para
T. Adorno, o tempo da modernidade contrasta e se interpõe ao tempo da
revolução. Com a afirmação da modernidade, nos lembrava Adorno (1986), a
revolução perdeu o seu momento no Ocidente; escapou-lhe, por assim dizer, o seu
momento maduro, as suas circunstâncias. Desta constatação, sobrevêm então uma
imagem de desesperança motivada
pela condenação ao mundo da modernidade. Este, por sua vez, é visto quase que
exclusivamente como barbárie e desilusão. Conseqüentemente, se a revolução não
conseguiu “impedir” a modernidade, e esta – como também se desvendou – carrega
consigo a marca da fragmentação da realidade, passa-se ao diagnóstico de que
não há possibilidades de se recompor um projeto de revolução que altere o curso
da história…, mesmo porque o seu sentido se esfumaçava ante os olhos dos homens
fraturados pelo moderno. Exaurida, para o pensamento, a possibilidade da
totalidade, ou a revolução se afirma como mito ou ela também estará exaurida. O
resultado que daí se deriva – isto é, desse pensamento também prisioneiro do
mito da revolução – é uma visão do mundo concebida através da formalização de
oposições escatológicas: revolução/redenção versus barbárie/desesperança.
No
Ocidente, a visão mitológica da revolução, diante, então, da hipertrofia do
moderno, encontra-se sem muitas alternativas, restando-lhe a busca do “Oriente” como a hipótese e
possibilidade da sua realização. Heller e Feher, descrevendo a morfologia dessa
visão mitológica, sintetizam essa busca na suposição de que se a revolução
havia se tornado impossível a Ocidente, só lhe restaria, então, os ventos “do
Leste”. Aqui, a geografia ganha um sentido metafórico, literal apenas quando
nos reportamos à Europa. É, assim, a relação entre atraso e moderno que está em questão.
O primeiro como o portador da revolução, já que
o moderno encontra-se pervertido, degenerado. A única viabilidade da revolução
adviria, portanto, dos segmentos sociais “não corrompidos do planeta” e, caso
estes se potencializassem em revolução, poderiam gerar, em processo, a
possibilidade de regeneração dos espaços e setores modernos (Vianna: 1988;
Strada: 1985). Não é necessário muito esforço para se perceber o quanto está
presente neste argumento o tema da revolução vinda do Terceiro Mundo e,
antiteticamente, a problemática da aristocracia operária, que povoaram as
tertúlias da esquerda ocidental, especialmente nas décadas de sessenta e
setenta.
Diante
da complexidade do moderno e do verdadeiro enigma que passou a ser a elaboração
e prática de uma teoria da transformação radical das circunstâncias que ele
introduz, governa e permanentemente atualiza, o mito lança mão do “povo
sagrado”, puro, valorizado no comunitarismo da sua cultura frente aos processos
de individualização que a vida moderna ensejou. O atraso seria, então, a única
possibilidade de redenção da humanidade. Mas, como reivindicar a potencialidade
do atraso em realidades onde o moderno se instalava? Como fazer isso sem
colocar como pauta uma sua interpelação típica, ou seja, uma “revolução
explosiva”? É bastante claro, portanto, que diante do moderno uma tal visão de
revolução só pode ser posta de maneira a ceder ao mito, deslocando da dimensão
analítica e reflexiva os temas complexos derivados da hipertrofia do moderno
que, aliás, gradativa e intensivamente passou a se configurar como processo
mundial.
Revolução
e Democracia
Ocorre
que, de toda forma, o moderno também potencializava revoluções que não eram
percebidas inclusive pelos olhos mais atentos. O reconhecimento desse fato não
foi, por muito tempo, algo permitido frente ao mito da revolução. Por isso, é
preciso enfatizar, como fazem Heller e Feher, que “não há nenhuma razão para
crer, nem nada que apoie a tese de que as revoluções que estalam mudam mais a vida e a
sociedade humanas e de um modo mais radical (e para melhor) que as revoluções
que ocorrem”. Não resta
dúvida que esta última abordagem altera profundamente a forma de ver o
“fenômeno revolucionário” pois que se estrutura tendo como base uma outra noção
de tempo histórico, inteiramente distinto daquele que o mito da revolução
impôs. Esta maneira de ver o problema estrutura-se de forma a anular
integralmente dois outros elementos da visão mitológica da revolução, quais
sejam, o da luta
final e o da violência.
Em relação ao primeiro porque cancela a noção de tempo exaltado na ação
política, como aquele propenso a realizar e conduzir um processo redentorista,
típico de visão apocalíptica da história. Quanto ao segundo, porque retira do
tema da dominação política a chave explicativa de que ela existe única e
exclusivamente baseada na violência, noção que legitima a idéia de que toda
revolução só pode eclodir e se realizar através deste mesmo procedimento. Com
esta abordagem, demonstra-se e explica-se, da mesma forma, a fixação mental que
estabeleceu a justaposição entre reformismo e revolução no interior da
esquerda.
Examinando
esta cristalização conceitual que opôs no universo da esquerda reforma e
revolução, Umberto Cerroni (1989/1990) vai além do tema da violência, afirmando
que a tradição “revolucionária”, de modo similar à liberal – e é preciso que se
frise isso -, “vê na força a
solução fundamental da política”. Em ambas as tradições, diz Cerroni –
indicando por “revolucionária” a tradição socialista do século XIX -, a centralidade da força demonstra
tanto uma “substancial convergência conceitual” como uma “comum inadequação
para explicar teoricamente e para enfrentar praticamente os problemas novos
levantados pela introdução do sufrágio universal, isto é, a passagem ao Estado
Democrático”. A justaposição entre reformismo e revolução representa, então,
uma resistência conceitual a esta tendência forte principalmente onde o moderno
se instalou, revelando-se impregnada de um tempo pretérito, não exercendo senão
uma “função poluidora” na teoria política.
A
passagem ao Estado Democrático, embora recente, ocorreu, no Ocidente, através
de um processo longo e denso de contradições, e não foi assegurada sem que a
revolução figurasse como um dos seus componentes. É possível até mesmo
identificá-la – como indicamos acima, comentando o impacto e o significado da
Revolução Francesa – como parte integrante, em seus momentos iniciais, deste
grande movimento histórico. No entanto, como nos ensina Norberto Bobbio (1986),
nenhuma revolução – e aqui falamos dos momentos revolucionários explosivos -,
por mais democráticas que tenham sido suas tarefas, realizou-se através de
institutos democráticos. A visão mitológica que se estruturou a partir da
compreensão daquele momento inicial de luta contra um Estado desprovido de
elementos de soberania popular trabalhou e trabalha, portanto, com a idéia de
que toda luta insurgente contra o Estado é, por si e independente do caráter
desse Estado, legítima.
Concluí-se daí que, ao deixar de levar em conta as transformações ocorridas com
o avanço da cidadania política, este argumento acaba por encarcerar a ação
revolucionária. Esta, em contraposição à proposição de reformas ou à
estruturação de uma estratégia reformista da revolução, é concebida
exclusivamente como uma ação de caráter ilegal.
Novamente
queremos nos reportar aqui ao trabalho de Heller e Feher para algumas
observações sobre este ponto. Segundo estes autores, o mito da ilegitimidade,
conforme a visão mitológica da revolução, pode ser entendido a partir da noção
de contrato social e do momento de ruptura desse contrato entre soberanos e
súditos. Estamos aqui, evidentemente, no contexto do pensamento político
moderno que subsidiou a ação revolucionária do 89 francês. Este elemento do
mito recoloca o fundamento da lei natural em relação ao tema da revolução nos
seguintes termos: o contexto em que explode e se processa a revolução é
precedido pela quebra do contrato social. A revolução é precedida, portanto,
por um estado de ilegitimidade, por um estado de guerra. De acordo com Heller e
Feher, “a revolução é ilegítima do ponto de vista da lei positiva, mas extrai
sua legitimidade da lei
natural (dos direitos naturais)”. Uma vez desfigurada
pelo antigo regime, o
“povo”, no ato da revolução, visa restabelecer a soberania (o contrato) em
soberania popular.
Para
se sair da formalização do argumento e se pensar mais historicamente, deve-se
considerar, como já enfatizamos, o processo de lutas sociais e políticas que
possibilitou a passagem a um Estado Democrático no Ocidente. Este processo
realizou-se, em grande medida, afirmando a soberania popular através de
instituições crescentemente democráticas, fundadas na legitimação normativa.
Foi um longo processo de luta pela participação cada vez mais acentuada de
massas e de socialização da política e que, de forma alguma, representa uma
ilusão ou algo inautêntico.
A
partir desta perspectiva de análise, poderíamos perguntar: com a soberania
popular estruturada em norma compartilhada por massas de milhões de pessoas,
como pode obter legitimidade revolucionária uma ação política que se quer
ilegítima? Conformada no mito, uma revolução concebida na ilegitimidade passa a
ser, então, em países que se caracterizam pela democracia política, ou uma
idéia sem sentido ou uma idéia reacionária, porque antidemocrática. Obviamente
que, onde houver soberania instituída como norma compartilhada, a possibilidade
dela se transformar em “real” representará algo verdadeiramente radical
(revolucionário), mas isso não pode ocorrer através de uma ação ilegítima.
Não
é sem propósito admitir, portanto, que em países democráticos a soberania já
não pode ser amputada. Por outro lado, não é difícil perceber que, nestes
mesmos países, a soberania popular já não pode ser mais ampliada apenas do
ponto de vista normativo. A sua transformação ou radicalização pode resultar,
inclusive, na emergência de um novo tipo histórico de democracia que contemple
a possibilidade de superação das desigualdades sociais e a expansão do arco das
liberdades, aprofundando o percurso da individualização aberta com o mundo da
modernidade.
Qual
revolução?
Em
relação ao nosso tempo, esta seria uma democracia compreendida, como diz
Cerroni (1989 a e b), como um Estado de Cultura, “na qual a construção de uma
comunidade torna-se um objetivo realista e até necessário”. Em outros termos,
uma “nova ordem”, um “novo Estado”, entendido como uma nova civilitá, que consiga superar a
fratura instalada na comunidade na qual o “Nós” aparece e é vivido como externo
ao “Eu”, assim como a fratura que foi construída no percurso da modernidade que
instituiu um “Eu sem Nós”.
Esta
sim seria a maior revolução que a era da modernidade poderia conhecer. Mas para
isso é certamente necessário esquecer o mito da revolução e reconhecer que esta
visão pode, em muito, auxiliar a formulação de uma nova idéia de solidariedade
e fraternidade. O mundo em que vivemos continua a ser pontilhado por terríveis
injustiças e por uma influência desmedida dos interesses privados das classes
socialmente dominantes em relação às esferas públicas de decisão. Como diz
Norberto Bobbio (1990), “num mundo desses, a idéia de que a esperança de
revolução está esgotada, de que terminou exatamente porque a utopia comunista
fracassou, é fechar os próprios olhos a fim de não ver”.
Deslocado
seu mito, a revolução permanece, desta forma, como uma hipótese instalada, não
apenas na periferia do mundo, mas até mesmo nos países marcadamente modernos e
de estruturação democrática, sempre que a dimensão institucional demonstrar
fragilidade em concertar os conflitos emergentes do tecido social. Porém, é
necessário distinguir a persistência da revolução como um fenômeno histórico
daquilo que a consciência iluminista o concebeu e que acabou se cristalizando
em mito. De forma radical e forte, é fundamental reconhecer que a revolução,
entendida como “ruptura concentrada no tempo” não é mais “o fiat do desenvolvimento
histórico” (Vianna: 1995).
Para
o tempo dos contemporâneos, os desafios da modernidade ainda estão colocados.
Se a revolução no Ocidente construiu-se através da sua identificação com a
idéia de mudança radical, é preciso perguntar-se sempre sobre o seu conteúdo,
valorar as análises e os projetos para que se possa conseguir dar um passo
nesta encruzilhada histórica de final de milênio. Juntamente com este
procedimento, não é difícil admitir que, além da noção de mudança, as idéias
que fundamentam a liberdade e
a vida, o progresso e a democracia sejam ainda fontes
de referência para que a humanidade, como advertia Marx, não esteja condenada à
“mediocridade universal” ou não se enterre na barbárie.
Referências
Bibliográficas
ADORNO,
T. La Dialectica Negativa.
Barcelona: Taurus, 1986.
ANDERSON,
P. “Modernidade e Revolução” In Novos
Estudos Cebrap. n. 14, 1986.
ARENDT,
H. Sobre a Revolução.
Lisboa: Moraes Editores, 1971.
BARCELONA,
P. “O tempo da democracia” In Sophia,
n. 01, UNESP:Franca, Nov. 1989.
BERMAN,
M. “Os sinais das ruas: uma resposta a Perry Anderson”. Presença. n. 09, 1987.
BOBBIO,
N. “A Utopia” In Lua
Nova. São Paulo: Cedec, n. 21, 1990, p. 143-144.
BOBBIO,
N. O futuro da democracia.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
CERRONI,
U. “Discurso sobre a moral e o direito”. Presença. n.13, 1989 b.
CERRONI,
U. Regole e valore nella
democrazia – Stato di diritto, Stato Sociale, Stato di Cultura.
Roma: Riuniti, 1989 a.
CERRONI,
U. “Verso un nuovo pensiero político” In Bosetti, Giancarlo (org.) Socialismo Liberale: il diálogo con Bobbio
oggi. Roma: Ed. L’Unitá, 1989 (tradução brasileira: “Liberalismo e
Socialismo” In Novos
Rumos. n.18/19, São Paulo, Novos Rumos, 1990).
FURET,
F. “No centro das nossas representações” in FURET, F. Ensaios sobre a Revolução Francesa.
Lisboa: Regra do Jogo, 1978.
HELLER,
A. e FEHER, F. Anatomia
de la Izquierda Occidental. Barcelona: Peninsula, 1985.
STRADA,
V. “Francia e Russia: analogie rivoluzionare” In FURET, F. (org.). L’Eredita della Rivoluzione Francese.
Milano: Laterza, 1989.
STRADA,
V. “Lenin e Trotski e Knei-Paz, Baruch, Trotski: revolução permanente e
revolução do atraso” In HOBSBAWM, E. J. (org.). História do Marxismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, vol. 5, 1985.
TOCQUEVILLE,
Alex de. O Antigo Regime e a Revolução.
Brasília: UNB, 1979.
VIANNA,
L. W. “O ator e os fatos:
a revolução passiva e o americanismo em Gramsci” In Dados. Rio de Janeiro: Iuperj.
vol. 38, n. 02, 1995, p. 181-235.
VIANNA,
L. W. “Vantagens do Moderno, Vantagens do Atraso” In Presença. n. 12, julho de 1988.
[1] O termo revolução foi trabalhado por Copérnico
para identificar o movimento circular dos corpos celestes.
[2] Para uma descrição do percurso do termo revolução
na história contemporânea ver especialmente capitulo 1 de ARENDT, 1971.
[3] Não é por outra razão, observa Furet, que os
acontecimentos ingleses de 1689 serão também descritos como revolução, e mais
precisamente, como a “revolução burguesa” na Inglaterra.
[4] É bastante interessante a observação de Strada
sobre o que, de fato, se apresenta como problema aberto na relação entre a
revolução soviética e o Ocidente: “Se, e como, ocorrerá a reabsorção deste
desvio parabólico, num novo arranjo planetário, sem que se anulem efeitos e
resultados, é o segredo de uma história onde toda ‘anomalia’ existe somente em
relação a uma ‘norma’ puramente hipotética e relativa. Ninguém pode dizer,
racionalmente, se as mais elevadas idéias da civilização européia –
Fraternidade cristã, Liberdade burguesa, Igualdade socialista – pertencem à
ordem de uma ‘norma’ para o futuro ou ao contrário, elas pertençam àquela de
uma ‘anomalia’ incomparável”.
(Depois
de publicado, em versões preliminares, num Caderno Especial do jornal Voz da Unidade e na
revista Política Democrática,
essa versão faz parte do volume Uma
nova cultura política. Brasilia: FAP, 2008, p. 52-65)
*Alberto Aggio, Professor Titular de História da UNESP-Franca-SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário