quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Tiago Cavalcanti* - A meritocracia inclui a diversidade?

Valor Econômico

Aumentos da diversidade deveriam vir apenas através de melhoras no sistema educacional público

Fundada em 1209, a universidade de Cambridge é a segunda mais antiga do Reino Unido. Assim como a universidade de Oxford, é formada por uma confederação que agrega dezenas de colleges, que são entidades com gestão independente e fazem a admissão dos alunos da graduação. Os colleges oferecem também os tutoriais, que são discussões em grupos pequenos dos temas centrais lecionados nas grandes aulas ou seminários, oferecidos de forma centralizada pela universidade. Os membros de cada college, ou os fellows, são os acadêmicos que oferecem os tutoriais.

O Trinity College, do qual faço parte, foi fundado em 1546 pelo rei Henrique VIII. É o college mais rico entre todos, tanto de Cambridge quanto de Oxford. O Trinity, muito antes disso virar moda, investiu em startups que nasceram na universidade de Cambridge e criou o primeiro centro de negócios ligado à universidade. No refeitório do Trinity College tem um quadro com o retrato de Henrique VIII e a seguinte mensagem em Latin: Semper Eadem, que significa Sempre o Mesmo.

Apesar de sua arquitetura medieval e rigidez de normas, o Trinity tem passado por importantes transformações. Uma das principais mudanças dos últimos 50 anos foi a admissão de mulheres como estudantes e fellows. A primeira mulher a ser admitida como fellow foi em 1947. Atualmente, a médica Dame Sally Davis é a Master ou Presidente do Trinity.

Não há a mínima dúvida que essa mudança foi muito benéfica. Conversando com os fellows mais antigos, alguns com mais de 6 décadas de presença na instituição, é quase uma unanimidade que essa foi uma das principais mudanças que ocorreu no college nos últimos 50 anos e considerada sobremaneira positiva.

Tal transformação certamente aumentou a concorrência na admissão de alunos, melhorando a qualidade média de quem estuda no college; assim como elevou a concorrência na contratação de novos acadêmicos. A admissão de mulheres incrementou também a diversidade. Essa mudança institucional gerou não só uma maior diversidade, como melhorou a qualidade do corpo discente e docente da instituição.

Os efeitos agregados da queda de barreiras à participação de mulheres e algumas minorias em certas ocupações ou no mercado de trabalho em geral são relevantes. Em 1960, 94% dos médicos e advogados nos Estados Unidos (EUA) eram homens brancos. Não há nada geneticamente intrínseco nos homens brancos que os tornem mais competentes na medicina, advocacia ou qualquer outra ocupação. Assim, esse viés em algumas ocupações deve refletir diferenças na formação de capital humano entre os homens brancos e outros grupos ou retratar a discriminação de gênero e de raça.

Em 2010, essa fração de homens brancos como médicos e advogados caiu para 62% nos Estados Unidos. De fato, nos últimos 50 anos, houve uma convergência na participação de diversos grupos em ocupações antes dominadas por homens brancos naquele país.

Em trabalho influente, professores da universidade de Chicago e Stanford (Hsieh, Hurst, Jones and Klenow, 2019) mostram que cerca de 20% a 40% do aumento da produtividade dos EUA nos últimos 50 anos podem ser atribuídos à melhor alocação de talentos com a queda de barreiras (redução de viés oculto, descriminalização e introdução de ações afirmativas) quanto à participação de mulheres e grupos marginalizados em algumas ocupações. Os ganhos de eficiência alocativa foram acompanhados por uma maior diversidade e não houve contradição entre a meritocracia e a diversidade.

Edson Severnini, professor brasileiro da Universidade de Carnegie Mellon, com coautores (entre eles o David Card, Nobel de Economia de 2021) mostram que a diferença de salários no Brasil entre brancos e negros é também devida à baixa representatividade dos negros em algumas ocupações de remuneração mais elevadas. E que isso não é apenas explicado por características observáveis dos indivíduos, como educação e experiência, e parte significativa pode ser a discriminação de cor e viés oculto. Ou seja, me parece que, como ocorreu nos EUA, há espaço para que aumentos de diversidade no Brasil gerados a partir de uma maior participação de mulheres e demais grupos marginalizados sejam acompanhados com ganhos de eficiência.

No entanto, em vários fóruns de discussão que participo, há a visão que podemos estar próximo do limite de aumentos da diversidade. A maior diversidade viria apenas através de uma queda no mérito, gerando uma piora na seleção de talentos e assim na produtividade. Haveria, portanto, uma contradição entre o mérito/eficiência e a diversidade. Aumentos da diversidade deveriam vir apenas através de melhoras no sistema educacional público, diminuindo assim as desigualdades de oportunidades. Ações afirmativas, bolsas para estudantes carentes, bônus em notas para alguns grupos levariam à piora na eficiência.

É pouco contraditório advogar por melhorias no sistema educacional público. A pergunta mais difícil de responder é se há espaço para ações afirmativas ou outras políticas que possam aumentar a diversidade sem custos de eficiência.

É inegável que o Brasil carrega acentuado viés oculto contra os afrodescendentes, como detalhou o antropólogo Oracy Nogueira quando, ainda nos anos 50, criticou nossa democracia racial. A mesma hipótese foi corroborada recentemente com experimentos controlados desenvolvidos por Marcos Lima e Jorge Vala e publicados no periódico científico Psicologia: Teoria e Pesquisa. Nos experimentos, indivíduos brancos avaliaram um grupo de pessoas negras e um grupo de pessoas brancas (representados por fotografias) que obtinham sucesso social ou que eram mal sucedidos socialmente. Os autores mostram que os negros que obtêm sucesso social são percebidos como mais brancos do que os pretos que fracassam.

É provável que esse viés contra negros influencie na contratação e promoção dos mesmos em algumas ocupações. Assim, ações afirmativas teriam não só o papel de permitir a melhor alocação de talentos evitando que indivíduos fossem discriminados, mas também de mudar esse viés, já que o aumento da diversidade tende a diminuir o preconceito no longo prazo. Incentivar o esforço, premiar o talento e a tomada de riscos não devem ser barreiras à introdução de ações que possam aumentar a representatividade de grupos marginalizados em ocupações de maior remuneração e liderança gerencial.

*Tiago Cavalcanti economista, é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP

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