Valor Econômico
Aumentos da diversidade deveriam vir apenas
através de melhoras no sistema educacional público
Fundada em 1209, a universidade de
Cambridge é a segunda mais antiga do Reino Unido. Assim como a universidade de
Oxford, é formada por uma confederação que agrega dezenas de colleges, que são
entidades com gestão independente e fazem a admissão dos alunos da graduação.
Os colleges oferecem também os tutoriais, que são discussões em grupos pequenos
dos temas centrais lecionados nas grandes aulas ou seminários, oferecidos de
forma centralizada pela universidade. Os membros de cada college, ou os fellows,
são os acadêmicos que oferecem os tutoriais.
O Trinity College, do qual faço parte, foi fundado em 1546 pelo rei Henrique VIII. É o college mais rico entre todos, tanto de Cambridge quanto de Oxford. O Trinity, muito antes disso virar moda, investiu em startups que nasceram na universidade de Cambridge e criou o primeiro centro de negócios ligado à universidade. No refeitório do Trinity College tem um quadro com o retrato de Henrique VIII e a seguinte mensagem em Latin: Semper Eadem, que significa Sempre o Mesmo.
Apesar de sua arquitetura medieval e
rigidez de normas, o Trinity tem passado por importantes transformações. Uma
das principais mudanças dos últimos 50 anos foi a admissão de mulheres como
estudantes e fellows. A primeira mulher a ser admitida como fellow foi em 1947.
Atualmente, a médica Dame Sally Davis é a Master ou Presidente do Trinity.
Não há a mínima dúvida que essa mudança foi
muito benéfica. Conversando com os fellows mais antigos, alguns com mais de 6
décadas de presença na instituição, é quase uma unanimidade que essa foi uma
das principais mudanças que ocorreu no college nos últimos 50 anos e
considerada sobremaneira positiva.
Tal transformação certamente aumentou a
concorrência na admissão de alunos, melhorando a qualidade média de quem estuda
no college; assim como elevou a concorrência na contratação de novos
acadêmicos. A admissão de mulheres incrementou também a diversidade. Essa
mudança institucional gerou não só uma maior diversidade, como melhorou a
qualidade do corpo discente e docente da instituição.
Os efeitos agregados da queda de barreiras
à participação de mulheres e algumas minorias em certas ocupações ou no mercado
de trabalho em geral são relevantes. Em 1960, 94% dos médicos e advogados nos
Estados Unidos (EUA) eram homens brancos. Não há nada geneticamente intrínseco
nos homens brancos que os tornem mais competentes na medicina, advocacia ou
qualquer outra ocupação. Assim, esse viés em algumas ocupações deve refletir
diferenças na formação de capital humano entre os homens brancos e outros
grupos ou retratar a discriminação de gênero e de raça.
Em 2010, essa fração de homens brancos como
médicos e advogados caiu para 62% nos Estados Unidos. De fato, nos últimos 50
anos, houve uma convergência na participação de diversos grupos em ocupações
antes dominadas por homens brancos naquele país.
Em trabalho influente, professores da
universidade de Chicago e Stanford (Hsieh, Hurst, Jones and Klenow, 2019)
mostram que cerca de 20% a 40% do aumento da produtividade dos EUA nos últimos
50 anos podem ser atribuídos à melhor alocação de talentos com a queda de
barreiras (redução de viés oculto, descriminalização e introdução de ações
afirmativas) quanto à participação de mulheres e grupos marginalizados em
algumas ocupações. Os ganhos de eficiência alocativa foram acompanhados por uma
maior diversidade e não houve contradição entre a meritocracia e a diversidade.
Edson Severnini, professor brasileiro da
Universidade de Carnegie Mellon, com coautores (entre eles o David Card, Nobel
de Economia de 2021) mostram que a diferença de salários no Brasil entre
brancos e negros é também devida à baixa representatividade dos negros em
algumas ocupações de remuneração mais elevadas. E que isso não é apenas
explicado por características observáveis dos indivíduos, como educação e
experiência, e parte significativa pode ser a discriminação de cor e viés
oculto. Ou seja, me parece que, como ocorreu nos EUA, há espaço para que
aumentos de diversidade no Brasil gerados a partir de uma maior participação de
mulheres e demais grupos marginalizados sejam acompanhados com ganhos de
eficiência.
No entanto, em vários fóruns de discussão
que participo, há a visão que podemos estar próximo do limite de aumentos da
diversidade. A maior diversidade viria apenas através de uma queda no mérito,
gerando uma piora na seleção de talentos e assim na produtividade. Haveria,
portanto, uma contradição entre o mérito/eficiência e a diversidade. Aumentos
da diversidade deveriam vir apenas através de melhoras no sistema educacional
público, diminuindo assim as desigualdades de oportunidades. Ações afirmativas,
bolsas para estudantes carentes, bônus em notas para alguns grupos levariam à
piora na eficiência.
É pouco contraditório advogar por melhorias
no sistema educacional público. A pergunta mais difícil de responder é se há
espaço para ações afirmativas ou outras políticas que possam aumentar a
diversidade sem custos de eficiência.
É inegável que o Brasil carrega acentuado
viés oculto contra os afrodescendentes, como detalhou o antropólogo Oracy
Nogueira quando, ainda nos anos 50, criticou nossa democracia racial. A mesma
hipótese foi corroborada recentemente com experimentos controlados
desenvolvidos por Marcos Lima e Jorge Vala e publicados no periódico científico
Psicologia: Teoria e Pesquisa. Nos experimentos, indivíduos brancos avaliaram
um grupo de pessoas negras e um grupo de pessoas brancas (representados por
fotografias) que obtinham sucesso social ou que eram mal sucedidos socialmente.
Os autores mostram que os negros que obtêm sucesso social são percebidos como
mais brancos do que os pretos que fracassam.
É provável que esse viés contra negros
influencie na contratação e promoção dos mesmos em algumas ocupações. Assim,
ações afirmativas teriam não só o papel de permitir a melhor alocação de
talentos evitando que indivíduos fossem discriminados, mas também de mudar esse
viés, já que o aumento da diversidade tende a diminuir o preconceito no longo
prazo. Incentivar o esforço, premiar o talento e a tomada de riscos não devem
ser barreiras à introdução de ações que possam aumentar a representatividade de
grupos marginalizados em ocupações de maior remuneração e liderança gerencial.
*Tiago Cavalcanti economista, é professor da Universidade de Cambridge e da FGV-SP
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