O Estado de S. Paulo
Bolívar Lamounier aposta todas as fichas numa reforma política que inclua a mudança do sistema de governo, com voto distrital misto
Este artigo é sobre um importante livro de
Bolívar Lamounier e toma como título uma ideia de Luis Fernando Veríssimo.
Quando Veríssimo acha que tudo está de pernas para o ar, acrescenta uns
versinhos em sua coluna com o título Poesia numa horas dessas?
Lamounier é um cientista político, de recorte parlamentarista, com grande e longa contribuição ao debate sobre ideias e formas na política brasileira. Desde os anos 1970, sua obsessão benigna tem sido o aprimoramento do sistema político, do ponto de vista institucional – eleições e governo. Coerentemente, em sua trajetória, tem insistido na importância de construir instituições, numa perspectiva que remete a Stuart Mill: boas instituições fazem a boa democracia. Seu livro Da independência a Lula e Bolsonaro, dois séculos de política brasileira (Editora FGV), que abordo aqui, é prova cabal disso. Trata-se de reedição de versão anterior (2005), que acompanhava a trajetória política do Brasil até o governo Lula da Silva. Desta feita, há um acréscimo analítico sobre o governo Bolsonaro apontando para o descalabro a que o País chegou: presidente autoritário, inescrupuloso e beócio, sistema partidário pífio, fisiológico e volátil, sistema eleitoral negligente, ausência de projeto de desenvolvimento político e econômico, País à deriva, população empobrecida descrente das capacidades do governo e ricos cada vez mais ricos. País que se acomodou na tese da renda média – na verdade, a melhor armadilha para o retrocesso.
Debater reformas e instituições remete, no
Brasil, a envolver-se com projetos ideológicos e preferências
político-eleitorais distintas. Parlamentarismo foi, durante a Constituinte de
1987/1988, identificado como tema tucano contra a preferência presidencialista
disseminada em várias correntes, especialmente no PT, e que já havia
predominado no plebiscito de 1963. Mesmo derrotado no plebiscito de 1993, este
é, para Lamounier, tema inegociável. Nosso presidencialismo é, para ele, tiro
no pé, modelo político marcado pela irresponsabilidade da maioria parlamentar
de plantão, que faz do Brasil terreno de
ineficiência e mediocridade.
O conceito “presidencialismo de coalizão”
foi um tábua de salvação, teórica e intelectualmente bem construída pelo
cientista político Sérgio Abranches, durante os debates da Constituinte, que
tornou palatável um arranjo de governo que a princípio tinha tudo para dar
errado. Isso porque o Brasil seria um país presidencialista com um presidente
minoritário no Congresso, em decorrência do nosso sistema eleitoral, mas que
conseguiria governar-se com base em coalizões partidárias parlamentares, tal
como havia ocorrido com a República de 1946.
Com o decorrer dos anos, as coalizões foram
crescendo em razão da maior fragmentação partidária e se tornaram fator de
chantagem mútua entre Legislativo e Executivo. A coalizão sem escrúpulos
tornou-se rotina. O presidente mantém a iniciativa parlamentar e a coalizão
fisiológica faz o preço da barganha para aprovar a pauta do presidente quando
lhe interessa. Para Lamounier, um modelo presidencialista que tinha tudo para
dar errado confirmou a profecia.
A par disso, a polarização política na
sociedade, nomeadamente a partir dos governos do PT, fortaleceu o ímpeto
personalista da política brasileira a que Lamounier chama de plebiscitarismo: a
crença em grandes líderes, modelo instituído por Vargas, que hoje delimita o
horizonte em torno de dois possíveis candidatos salvadores da Pátria, numa
disputa de mútua demolição. E, para Bolívar, aceitar a terceira via seria
coonestar com o status quo institucional.
Temos atualmente, segundo o autor, acordos
políticos baseados em conveniências não republicanas, radicalização política e
ideológica e, nos extremos, monumentos à mediocridade. Este descalabro não é
superado por ordem espontânea, mas sim por uma determinação firme de
reordenamento institucional.
Vários cientistas políticos, analistas,
empresários, intelectuais e representantes sindicais estão cada dia mais
preocupados com como sair deste impasse. Nesse sentido, a palavra reformas vem
sempre à tona, e tanto aparece que acaba desmoralizada. Mas, para Lamounier, é
disso que se trata. O autor tem lado e coerência nesta discussão, e seu livro
mostra bem isso. Aposta todas as fichas na necessidade de uma reforma política
ampla, que inclua, entre outras coisas, a mudança do sistema de governo, de
presidencialismo para parlamentarismo, com voto distrital misto. Uma proposta
pautada pelos tucanos na Constituinte e que, segundo ele, deve ser reeditada
sob o risco de o País não conseguir sair de uma modelagem institucional que o
condena a uma mediocridade econômica exemplar. O salto para a frente dependeria
de obras de engenharia política que alterassem as atuais estruturas anacrônicas
que têm o atraso como projeto.
Deixo claro que este é um livro de combate,
cada capítulo pode ser lido como uma unidade, sempre com ênfase nos sistemas de
representação política em suas conexões com cada período histórico do País, seu
sucesso e recorrentes retrocessos. •
*Professora da PUC-Rio
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