sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Maria Cristina Fernandes: Moro e seus mitos americanos

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Livro do ex-ministro revela adesão à versão oficial da história dos EUA, das guerras com o México à eficácia

“Depois da intervenção do presidente, não havia mais por que permanecer. Era a última trincheira, meu Álamo.” Sergio Moro já havia fechado os olhos ao relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Nele, reportavam-se operações suspeitas de lavagem de dinheiro de Flávio Bolsonaro na Alerj, além do cheque de R$ 89 mil depositado na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, por Fabrício Queiroz, o operador das rachadinhas do então deputado estadual.

O ex-ministro também já tinha engolido a transferência do Coaf para a Pasta da Economia, a recusa do presidente em vetar as mudanças do Congresso no seu projeto anticrime e a troca do superintendente da Polícia Federal do Rio. A trincheira, no relato de Moro, caiu quando Jair Bolsonaro avançou sobre a direção-geral da PF.

A analogia usada pelo ex-ministro diz pouco sobre sua saída e muito sobre sua adesão aos 50 tons do ufanismo americano. Estaria livre para propagar o mito, que aglutina da carreira de Lyndon Johnson à ascensão da extrema direita americana, não fosse sua pré-candidatura. A adesão de um postulante à Presidência do Brasil ao mito do Álamo sugere, no mínimo, despreparo para a lida das relações de poder na política internacional.

Em nota de pé de página, o ministro resume a trincheira: “Após um cerco de treze dias, entre 23 de fevereiro e 6 de março de 1836, o exército mexicano conseguiu tomar o Álamo, um antigo posto de missão religiosa no Texas, no qual encontravam-se as tropas rebeldes do Texas que buscavam independência em relação ao México. A maioria dos rebeldes foi morta no cerco e na invasão subsequente. Em 21 de abril de 1836, os rebeldes derrotaram o exército mexicano, o que levou à formação da República do Texas, depois incorporada aos Estados Unidos”.

O texto, sem referência bibliográfica, não erra, mas omite. E ao fazê-lo revela a identificação do pré-candidato do Podemos com um ideário contestado há pelo menos 60 anos nos EUA. Em livro lançado em junho nos Estados Unidos pela Penguin Press, “Forget the Alamo - The Rise and Fall of an American Myth” (“Esqueça o Álamo - ascensão e queda de um mito americano”), ainda sem tradução no Brasil, três autores (Bryan Burrough, Chris Tomlinson e Jason Stanford) se juntaram para recapitular o revisionismo que destruiu o mito cultuado por Moro.

Ao longo de 185 anos o ideário do Álamo tem servido a sucessivas causas da histórica americana formando o que o escritor John Steinbeck um dia chamou de “religião cívica”. Nenhuma das causas desse ideário reconheceu a batalha do Álamo como a trincheira escravocrata que foi.

A iconoclastia dos autores vale-se de uma analogia simples para explicar a história para quem cai de paraquedas nas ruínas da fortificação texana: se os Estados Unidos abrissem o Alasca à colonização e, de repente, houvesse uma invasão de canadenses que se recusassem a seguir as leis americanas e pagar os impostos que lhe são devidos, o que aconteceria?

Depois da independência do império espanhol em 1821, as terras ao norte do Rio Grande ficaram esquecidas e o novo governo mexicano acabaria aceitando a chegada de americanos para povoá-las. Os colonos tinham a expectativa de produzir algodão com escravos.

O México aboliu a escravidão em 1829, 36 anos antes dos EUA e 59 anos antes do Brasil. Pelo menos dois líderes dos rebeldes mortos no Álamo, entre eles um sifilítico que, aos 28 anos, se gabava de já ter tido 56 namoradas, eram comerciantes de escravos.

Os conflitos decorrentes do abolicionismo mexicano e do regime fiscal é que se entrincheiraram no Álamo, e não libertários contra um ditador sanguinário. Os relatos épicos da batalha fomentaram a guerra da independência com uma convocação à vingança: “Lembrem-se do Álamo”.

Os autores não endossam nem descartam o interesse do governo americano no conflito, mas a identificação do líder da guerra, Sam Houston, como pupilo do presidente americano Andrew Jackson dá vazão ao conspiracionismo. A anexação aos Estados Unidos, porém, só aconteceria nove anos depois, com uma nova guerra que levou à perda de muitos outros territórios em partes do que hoje são os estados da Califórnia, Nevada, Utah, Arizona, Novo México, Colorado e Wyoming.

A narrativa heroica dos americanos mortos no Álamo marcou a infância de gerações de texanos de origem mexicana. Aprenderam na escola que seus ancestrais mataram os heróis americanos. O revisionismo nos livros escolares só teve início nos anos 1990.

Até lá o mito serviu à propaganda anticomunista dos anos 1950 e, principalmente, ao ideário da guerra do Vietnã. “Diabos, o Vietnã é como o Álamo. Os americanos estão cercados e precisam de reforço. É isso que estamos fazendo”, apelava Lyndon Johnson. Mais de 58 mil americanos perderam sua vida no “Álamo” vietnamita.

Associaram-se ao culto o músico britânico Phil Collins, cuja coleção de relíquias do Álamo foi o embrião de um museu em San Antonio alusivo à batalha, e o ator John Wayne, que produziu, dirigiu e atuou em “O Álamo” (1960). Foi apenas um da extensa filmografia em torno do mito, ao qual se associou um Walt Disney em guerra contra sindicatos californianos.

Mesmo depois do revisionismo, a visão heroica seguiu como baluarte da extrema direita. Em 2009 o Tea Party fez comícios na praça do Álamo.

Em 2018, o governador do Texas, Greg Abbott, comprou a briga com historiadores: “Parem com o politicamente correto nas escolas. É claro que as crianças texanas devem ser ensinadas que os defensores do Álamo foram heróis”. Abbott, que aderiu ao apelo infrutífero de recontagem dos votos feito pelo ex-presidente americano Donald Trump, é cotado a sucedê-lo na liderança republicana.

O último registro da ocupação política das ruínas é a de 2020, quando o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam) escolheu a praça do Álamo para protestar contra a supremacia branca e a brutalidade racista da polícia americana.

Entrevistado no livro, o historiador deposto do Álamo Bruce Winders conta que chegou a receber nas ruínas da fortificação soldados americanos que lutaram no Afeganistão e no Iraque e lhe mostraram fotos de locais sobre os quais se referiam como seu Álamo.

Foi a essa mitificação que Sergio Moro aderiu ao escolher o Álamo para simbolizar sua passagem pelo governo Bolsonaro. “Não sou um especialista na história do Texas”, justifica-se, “nem tampouco a favor da escravidão, até citei [Abraham] Lincoln em meu discurso de filiação”. Moro incluiu a batalha no livro de ouvir falar.

O Álamo não é o único mito americano de Moro. O ex-ministro cita duas vezes o relatório do Departamento de Comércio americano. Menciona um comunicado do departamento sobre a “corrupção endêmica na cultura brasileira” e diz que a realidade era muito pior do que imaginada pelos burocratas americanos. E assegura a efetividade do arcabouço legal americano anticorrupção conduzido pelo Departamento de Justiça, o DoJ.

Ao idealizar o combate à corrupção nos EUA, ignora que os processos de colarinho branco despencaram nos Estados Unidos em relação aos anos 1980. Em casos decorrentes da crise financeira de 2008, os processos iniciados pelo DoJ contra os dez maiores bancos americanos obtiveram responsabilização individual em apenas 19% dos casos.

Naqueles que seguiram adiante, nenhum executivo de alto escalão foi punido. A SEC (comissão de valores mobiliários) e o DoJ não chegaram nem mesmo a apresentar denúncia contra executivos do Lehman Brothers, que asseguraram a liquidez do banco cinco dias antes da bancarrota.

O apanhado das derrotas na responsabilização de dirigentes de grandes empresas e bancos nos EUA está em “Chickenshit Club: Why the Justice Department Fails to Prosecute” (“O clube da titica de galinha: por que o Departamento de Justiça falha em processar”, em tradução livre do livro de Jesse Eisinger publicado em 2017 pela Simon&Shuster).

Em grande parte, a derrota das instituições de controle se deveu à atuação de escritórios em que trabalhavam muitos daqueles que, anos antes, estavam na linha de frente das investigações. Moro aperfeiçoou a rota, rifando fronteiras, ao deixar o governo e ir trabalhar no escritório americano Alvarez & Marsal, que cuida da recuperação judicial de empresas que processou, como a Odebrecht. Lá foi colega de ex-procuradores e ex-agentes do FBI e da NSA.

Nenhum personagem, porém, é alvo de maior admiração do ex-juiz do que Theodore Roosevelt. As duas páginas que lhe dedica deixam claro que ele é seu modelo. Cita até longo trecho de um discurso em que o 26º presidente americano justifica por que, para ele, o crime mais sério é o da corrupção.

A identificação se estende a quase toda a carreira de Theodore. Foi comissário de polícia em Nova York, fez gestão implacável contra agentes públicos envolvidos em corrupção e adotou leis como o FPCA (sigla em inglês para Ato Contra Práticas Federais Corruptas), que inspiraram Moro na elaboração do desfigurado projeto de lei anticrime.

O ex-ministro ignorou os feitos de seu sobrinho-neto, Franklin Delano Roosevelt, capitão do New Deal, programa com o qual os EUA saíram da recessão dos anos 1930. Indagado por que, Moro disse que o livro é sobre corrupção. Ao longo do lançamento, porém, o ex-juiz participou de eventos em que arriscou propostas como a da “força-tarefa contra a pobreza”.

Como o livro era apenas sobre corrupção, também ficou de fora a incursão de Theodore Roosevelt na Amazônia brasileira, em 1913, depois de perder eleições para voltar à Presidência. Na expedição, que teve a companhia do marechal Cândido Rondon, Roosevelt, segundo depois relataria em livro, correu risco de morrer por causa de uma gangrena tardiamente debelada. Roosevelt deu nome a um rio no Mato Grosso, estado em que estão duas das 17 terras indígenas que Moro, quando ministro, devolveu à Funai sem dar seguimento aos pedidos de demarcação.

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