O Globo
O ano de 2021 foi salvo única e
exclusivamente pela vacina. Foi ela, chegando finalmente e contra todas as
ações possíveis por parte do governo federal, que nos salvou não só do vírus,
mas de um acometimento ainda mais grave do mal que é Jair Bolsonaro.
Devemos à vacina, de sua elaboração em
tempo recorde à tão esperada aplicação, aos fabricantes, aos cientistas, ao
Butantan, aos governadores — e aí sobretudo ao de São Paulo, João Doria, é
preciso dar a César o que é de César —, aos senadores da CPI da Covid e à
imprensa. Sem esse consórcio atuando em desafio à disposição permanente de
Bolsonaro e de seus ministros em melar a imunização, sabe-se lá a que número de
mortos poderíamos ter chegado.
Mas eis que, mesmo diante da constatação
óbvia até para terraplanistas irrecuperáveis, Bolsonaro segue barbarizando e
espalhando sandices a respeito da imunização contra a Covid-19.
Cheguei a conferir se era a conta mesmo do presidente da República, e não a de um fake, que postara, em resposta a um post do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, que tratava de ferrovias (!), um comentário de um anônimo chamando as vacinas de “porcarias”. Não era um fake. Era Bolsonaro. Claro que era Bolsonaro.
No mesmo dia em que a imprensa cumpria o
dever desconcertante de noticiar mais essa diabrura do chefe de Estado, a
Anvisa finalmente liberava a vacina da Pfizer para aplicação em crianças. Por
que tanta demora? E por que a agência não analisa o pedido reiterado do Butantan
para que também a CoronaVac — desenvolvida a partir da tecnologia de vírus
inativado, comum em imunizantes ministrados em crianças — seja aplicada nessa
faixa etária?
Dois anos de pandemia depois, o Brasil
anda, na vacinação contra a Covid-19, na desesperadora marcha de um passo à
frente a cada dois para trás. Aos trancos e barrancos chegamos a uma cobertura
superior à de países da Europa e de outros em que campeia o negacionismo
criminoso. Mas sempre lutando contra o presidente, seus ministros, seus bocas
de latrina a soldo das redes sociais e de emissoras alinhadas e até, em alguns
casos, a Anvisa, cuja atuação teve altos e baixos ao longo da crise sanitária,
ora agindo de forma técnica, ora titubeando diante da pressão política
explícita exercida por Bolsonaro.
Pois não há explicação para uma agência ter
levado tanto tempo para liberar as vacinas para crianças num cenário em que o
mundo já o fez, os fabricantes já prestaram todas as informações necessárias
acerca da segurança de seus fármacos, uma nova variante, a Ômicron, vai se
espalhando pelo mundo e o verão, com festas e viagens de férias, está se
aproximando no calendário.
Da mesma forma, a demora específica no caso
da CoronaVac cheira a temor da reação de Bolsonaro, desde sempre um detrator da
vacinação que primeiro esteve disponível para começar a proteger profissionais
de saúde, idosos e pessoas com comorbidades, que, não fosse isso, teriam
morrido em número ainda mais intolerável que o que a gente já vergonhosamente
ostenta.
A superação definitiva do trauma de uma
pandemia que se prolonga só se dará se enfiarmos na cabeça que o único caminho
seguro para ela é a vacina.
Desenvolvidas com a pressa que a praga
exigia, as diferentes tecnologias possivelmente terão de ser atualizadas,
revistas, incrementadas. Mas atirar contra sua segurança mesmo diante do dado
óbvio de que elas — diferentemente de medicamentos sem nenhuma eficácia
propagandeados e enfiados goela abaixo da população por Bolsonaro e pelos seus
soldados — funcionam é mais um crime cometido além dos inúmeros já relacionados
no relatório da CPI da Covid. Que, aliás, vai pegando poeira na gaveta de
Augusto Aras, que finge tomar providências preliminares quando está só
empurrando com a barriga mesmo.
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