Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Brasil passa por empobrecimento de sua
sociabilidade
Diversos episódios de violência contra
pessoas indefesas e frágeis revelam um aspecto problemático da realidade social
brasileira. São aqueles casos que poderiam ter sido evitados se tomados alguns
cuidados autoprotetivos em relação às vítimas potenciais. Se uma desconfiada
prudência fosse adotada pelas famílias em face dos perigos da modernidade.
A falta desses cuidados revela-nos uma
sociedade ignorante em relação ao que é o mundo moderno. Por isso destituída de
uma consciência crítica imprescindível para viver e sobreviver
participativamente nos dias de hoje.
Quanto a isso, nos países civilizados as
ciências humanas são decisivas na formação da personalidade tanto dos pais
quanto dos filhos. Principalmente quanto à consciência social em relação ao que
é a sociedade que nos forma e nos conforma.
O mundo atual é o mundo que perdeu ou está perdendo de modo socialmente desigual os valores sociais da tradição e das identidades coletivas e a consciência dos limites e condições do que é e não é possível ser e fazer. O Brasil é um país que passa por acentuado empobrecimento de sua sociabilidade, o que se evidencia nas manifestações de violência autodestrutiva daí decorrente.
Demoramos na resposta à crise social, na
elaboração e difusão de uma cultura substitutiva de identificação, localização
do risco às vítimas potenciais das situações de distanciamento social invisível
no interior dos grupos tradicionalmente de proximidade, como a família e a
vizinhança.
Amplia-se uma patológica sociabilidade de
pessoas reduzidas à condição de indivíduos, mediada por sua coisificação.
Regride e encolhe a historicamente e decisiva sociabilidade comunitária, que,
mesmo com a modernização, é socialmente decisiva no equilíbrio das relações
sociais. A sociedade está em perigo, ameaçada pela anomia e pela anulação sem
inovação das normas sociais.
Essas transformações, na vida cotidiana e
interativa, se manifestam na concreta ameaça aos frágeis, como crianças,
adolescentes, velhos e, não raro, a mulheres. São as situações em que a vítima
e o algoz vivem juntos ou próximos, mas separados pelo desconhecimento da
hierarquia social própria da diferença de idade, de posição social e até de
gênero, uma questão cultural que facilita sua vitimação.
Vítima e algoz não só estão em tempos
desencontrados. A vítima está no lugar errado e na hora errada, em face de
pessoas erradas. Não raro de modo permanente, como nos casos de estupro de
filhas por pais e padrastos, cada vez mais frequentes entre nós como causa de
linchamentos. São situações de convivência marcadas pela banalização do outro e
pela supressão da responsabilidade social de cada um quanto aos demais.
Em artigo recente, analisei o caso do jovem
negro, pobre e quilombola que, numa cidade interiorana do Rio Grande do Norte,
foi amarrado, surrado e pisoteado por um comerciante branco, já envolvido em
episódio precedente de racismo. O autor da violência ainda pautado por valores
depreciativos da pessoa próprios do regime de escravidão.
Em 2014, Fabiane Maria de Jesus, uma mãe de
família, foi brutalmente linchada num bairro em que morava no Guarujá, SP. Fora
confundida com a imagem forjada de suposta sequestradora de crianças, divulgada
pelas redes sociais. A multidão foi atiçada por uma mulher que dera o grito de
que ela estava tentando sequestrar uma criança.
Na verdade, ela estava saindo de uma
frutaria e, vendo o menino chorar na calçada, deu-lhe uma fruta. Em poucos
minutos, mais de mil pessoas estavam arrastando-a pela rua. Apedrejada,
derrubada e espancada, foi morta como se não fosse um ser humano.
Em 2003, num sítio abandonado de
Embu-Guaçu, um casal de adolescentes de um colégio de São Paulo acampava quando
foi rendido por um pequeno grupo de roceiros liderado por Champinha, menor de
idade, morador na região. Durante cinco dias, foram prisioneiros do grupo,
seviciados, a moça foi violentada e acabaram mortos.
É possível fazer uma leitura antropológica
do que ocorreu. Os jovens de classe média urbana estavam fazendo algo que no
mundo rústico dos agressores significava apenas que eram pessoas disponíveis
para a violência que as vitimaria. Pessoas supostamente desumanizadas pela liberdade
de fazer o que contrariava a cultura repressiva de grupos atrasados.
A própria concepção de vizinhança está
substancialmente alterada em relação ao que ela era na geração de nossos avós.
Uma indicação nesse sentido é que os linchamentos, forma violenta e não raro
cruenta de justiçar alguém, até por motivos banais, ocorrem cada vez mais nos
bairros. E pelas mãos dos moradores, que definem como perigo e inimigo o
estranho, o recém-chegado, o arredio, o diferente.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).
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