sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

José de Souza Martins*: Intolerância e violência

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Brasil passa por empobrecimento de sua sociabilidade

Diversos episódios de violência contra pessoas indefesas e frágeis revelam um aspecto problemático da realidade social brasileira. São aqueles casos que poderiam ter sido evitados se tomados alguns cuidados autoprotetivos em relação às vítimas potenciais. Se uma desconfiada prudência fosse adotada pelas famílias em face dos perigos da modernidade.

A falta desses cuidados revela-nos uma sociedade ignorante em relação ao que é o mundo moderno. Por isso destituída de uma consciência crítica imprescindível para viver e sobreviver participativamente nos dias de hoje.

Quanto a isso, nos países civilizados as ciências humanas são decisivas na formação da personalidade tanto dos pais quanto dos filhos. Principalmente quanto à consciência social em relação ao que é a sociedade que nos forma e nos conforma.

O mundo atual é o mundo que perdeu ou está perdendo de modo socialmente desigual os valores sociais da tradição e das identidades coletivas e a consciência dos limites e condições do que é e não é possível ser e fazer. O Brasil é um país que passa por acentuado empobrecimento de sua sociabilidade, o que se evidencia nas manifestações de violência autodestrutiva daí decorrente.

Demoramos na resposta à crise social, na elaboração e difusão de uma cultura substitutiva de identificação, localização do risco às vítimas potenciais das situações de distanciamento social invisível no interior dos grupos tradicionalmente de proximidade, como a família e a vizinhança.

 

Amplia-se uma patológica sociabilidade de pessoas reduzidas à condição de indivíduos, mediada por sua coisificação. Regride e encolhe a historicamente e decisiva sociabilidade comunitária, que, mesmo com a modernização, é socialmente decisiva no equilíbrio das relações sociais. A sociedade está em perigo, ameaçada pela anomia e pela anulação sem inovação das normas sociais.

Essas transformações, na vida cotidiana e interativa, se manifestam na concreta ameaça aos frágeis, como crianças, adolescentes, velhos e, não raro, a mulheres. São as situações em que a vítima e o algoz vivem juntos ou próximos, mas separados pelo desconhecimento da hierarquia social própria da diferença de idade, de posição social e até de gênero, uma questão cultural que facilita sua vitimação.

Vítima e algoz não só estão em tempos desencontrados. A vítima está no lugar errado e na hora errada, em face de pessoas erradas. Não raro de modo permanente, como nos casos de estupro de filhas por pais e padrastos, cada vez mais frequentes entre nós como causa de linchamentos. São situações de convivência marcadas pela banalização do outro e pela supressão da responsabilidade social de cada um quanto aos demais.

Em artigo recente, analisei o caso do jovem negro, pobre e quilombola que, numa cidade interiorana do Rio Grande do Norte, foi amarrado, surrado e pisoteado por um comerciante branco, já envolvido em episódio precedente de racismo. O autor da violência ainda pautado por valores depreciativos da pessoa próprios do regime de escravidão.

Em 2014, Fabiane Maria de Jesus, uma mãe de família, foi brutalmente linchada num bairro em que morava no Guarujá, SP. Fora confundida com a imagem forjada de suposta sequestradora de crianças, divulgada pelas redes sociais. A multidão foi atiçada por uma mulher que dera o grito de que ela estava tentando sequestrar uma criança.

Na verdade, ela estava saindo de uma frutaria e, vendo o menino chorar na calçada, deu-lhe uma fruta. Em poucos minutos, mais de mil pessoas estavam arrastando-a pela rua. Apedrejada, derrubada e espancada, foi morta como se não fosse um ser humano.

Em 2003, num sítio abandonado de Embu-Guaçu, um casal de adolescentes de um colégio de São Paulo acampava quando foi rendido por um pequeno grupo de roceiros liderado por Champinha, menor de idade, morador na região. Durante cinco dias, foram prisioneiros do grupo, seviciados, a moça foi violentada e acabaram mortos.

É possível fazer uma leitura antropológica do que ocorreu. Os jovens de classe média urbana estavam fazendo algo que no mundo rústico dos agressores significava apenas que eram pessoas disponíveis para a violência que as vitimaria. Pessoas supostamente desumanizadas pela liberdade de fazer o que contrariava a cultura repressiva de grupos atrasados.

A própria concepção de vizinhança está substancialmente alterada em relação ao que ela era na geração de nossos avós. Uma indicação nesse sentido é que os linchamentos, forma violenta e não raro cruenta de justiçar alguém, até por motivos banais, ocorrem cada vez mais nos bairros. E pelas mãos dos moradores, que definem como perigo e inimigo o estranho, o recém-chegado, o arredio, o diferente.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp).

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