O Globo
A interferência de Jair Bolsonaro no Iphan
resume num episódio quatro faces de seu governo: desprezo à lei, desmonte das
instituições, orgulho da ignorância, crença na impunidade.
Na quarta-feira, o presidente narrou um caso
ocorrido no fim de 2019. O empresário Luciano Hang, bolsonarista de
carteirinha, reclamou de um contratempo nos negócios. Teve que interromper a
construção de uma loja em Rio Grande (RS) após a descoberta de um sítio
arqueológico.
“Apareceu um pedaço de azulejo durante as
escavações. Chegou o Iphan e interditou a obra”, disse Bolsonaro. “Liguei para
o ministro da pasta: ‘Que trem é esse?’, porque não sou tão inteligente como
meus ministros. ‘O que é Iphan, com ph?’”, prosseguiu.
“Explicaram para mim, tomei conhecimento, ripei todo mundo do Iphan. Botei outro cara lá. O Iphan não dá mais dor de cabeça pra gente”, gabou-se o presidente. A fala foi aplaudida por empresários que se aglomeravam para ouvi-lo na Fiesp.
Sem corar, Bolsonaro admitiu que usou o poder
do cargo para favorecer um amigo. Pisoteou os princípios da impessoalidade e da
moralidade, que a Constituição impõe a todo agente público.
O capitão também reconheceu o aparelhamento
do Iphan. Para liberar a obra, demitiu toda a cúpula do instituto, incluindo a
presidente Kátia Bogéa. Ela foi substituída pela blogueira e turismóloga
Larissa Peixoto, cuja nomeação chegou a ser suspensa pela Justiça por não
preencher os requisitos legais.
Bolsonaro sorriu ao contar que desconhecia
a existência do Iphan, criado há 84 anos para proteger o patrimônio histórico e
artístico nacional. Sua apologia do despreparo fez escola. O general Eduardo
Pazuello disse ter assumido o Ministério da Saúde sem saber o que era o SUS.
Para o Ministério Público Federal, o relato
presidencial equivale a uma confissão. Bolsonaro admitiu “os motivos
antirrepublicanos e a finalidade privada dos atos administrativos”, escreveu
ontem o procurador Sergio Suiama. Ele pediu à Justiça Federal que anule a
“ripa” e reconduza os servidores afastados por cumprir seu dever.
Na célebre reunião ministerial de abril de
2020, o capitão já havia esbravejado que o Iphan “para qualquer obra no Brasil,
como para a do Luciano Hang”. Na Fiesp, ele escancarou o uso da máquina pública
para beneficiar o dono da Havan.
A desfaçatez revela um governante que se
considera acima da lei. Ao fornecer provas contra si mesmo, Bolsonaro se
candidatou a uma condenação pelo crime de advocacia administrativa. Mas ele
sabe que não será incomodado enquanto contar com a cumplicidade de Augusto
Aras.
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