O Globo
Entre os mitos que a pandemia sepultou,
está aquele segundo o qual, no Brasil, o ano só começa após o carnaval. Janeiro
e fevereiro são meses de férias apenas para afortunados. A exemplo de 2021,
2022 confirma que janeiro dá à luz tormentas. O país virou usina de tempestades
perfeitas.
Há uma conjunção nada cósmica de pandemia
com desastres e uma inércia enraizada de só se mexer com a tragédia consumada.
Os desastres são também onde o desmonte ambiental e a negligência na saúde se
encontram, com danos amplificados.
As mais de 850 mil pessoas afetadas pelo
dilúvio na Bahia não têm como se proteger do avanço da variante Ômicron.
Tampouco os moradores das 380 cidades de Minas Gerais que decretaram situação
de emergência devido às chuvas.
Estas vieram com sanha de destruição por
uma combinação de motivos, dentre eles uma La Niña poderosa como a que em 2011
criou as condições que culminaram na tragédia da Serra Fluminense.
Mas uma La Niña sozinha não gera os
desastres de verão. Eles compartilham a marca da ação humana. Ela está nas
supertempestades, cujo aumento de intensidade e frequência se enquadra à
perfeição nos extremos climáticos previstos há três décadas e repetidos à
exaustão pela ciência. Pelo mesmo motivo, a ação humana está nas secas e ondas
de calor no Sul do país.
Combinados a danos ambientais, como desmatamento, ocupação de encostas e margens de rios, os extremos climáticos produzem tragédias nada naturais. Não é da natureza a culpa por gente morrer em cânions que não deveriam estar abertos ao público em dias de chuva intensa, como em Capitólio (MG).
A chuva sozinha não justifica que diques de
barragem de mineração transbordem rejeito de minério e invadam rodovias, como o
da mineradora Vallourec, que bloqueou a BR-040, ligação entre Belo Horizonte e
Rio de Janeiro. Projetos de estruturas potencialmente perigosas, como barragens
de mineração, devem prever situações excepcionais. Ou cabe considerar normal e
aceitável uma onda de rejeito bloquear uma rodovia que liga duas das maiores
cidades do Brasil?
Minas se tornou tristemente pródiga em
desastres. Sofreu com as chuvas em 2021; 2019 foi marcado para sempre na
história das grandes tragédias, com o rompimento da barragem da Mina de Córrego
do Feijão, da Vale, em Brumadinho, em 25 de janeiro daquele ano. Isso sem falar
da desgraça da barragem da Samarco, em Mariana, ocorrida na primavera, em 5 de
novembro de 2015, mas enraizada no mesmo terreno pantanoso de licenciamento e
fiscalização, no mínimo, ruins. São desastres não naturais.
Desastres destroem e matam no Brasil há
anos e nada muda para melhor. Ao contrário, piora. O governo federal mata de
inanição a estrutura de proteção do ambiente, e a Câmara dos Deputados aprovou
o PL 2.159/2021, que na prática acaba com a maior parte do licenciamento
ambiental. Ele asfalta o caminho ao desmatamento e facilita a problemática —
lembrem Mariana, Brumadinho e 40 outras barragens em emergência — construção de
barragens de mineração no país.
No país tropical que se considera abençoado
por Deus, autoridades culpam os céus. Maldizem a chuva, os rios e as montanhas.
Fazem vista grossa para gente que vive à beira do abismo. Ignoram os rios que,
por falta de saneamento, são valões obstruídos. Menos ainda olham para
barragens fiscalizadas por “autodeclaração”, ampliadas sem muito estudo, com as
bênçãos de esferas municipal, estadual e federal. E a sociedade se limita a
lamentar, quando já é tarde demais.
No Brasil, não basta olhar para cima. É
preciso enxergar o que está ao lado e abaixo, nos escritórios de burocratas e
políticos, que chancelam ataques ao ambiente e ao bom senso. E para o chão,
instável por maus-tratos.
A cada início de ano, mudam os personagens
e o cenário. Não muda o fim da história, que termina em tragédia. O maior
desastre do Brasil não são as tempestades, é aceitar e naturalizar o risco.
*Repórter especial do GLOBO
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