domingo, 23 de janeiro de 2022

Dorrit Harazim: Ficamos nós

O Globo

Já se passaram 75 anos desde que W.H.Auden escreveu o ambicioso poema “A era da ansiedade”, obra com dimensão de livro (200 e tantas páginas, dependendo da edição) que lhe rendeu o que talvez seja, até hoje, o Prêmio Pulitzer mais citado e menos lido da história. A obra em seis partes transcorre num bar nova-iorquino onde quatro desconhecidos discorrem sobre a vida, suas tormentas, perdas e sonhos. Descrito assim, soa a leitura fácil. Na verdade, excetuando estudiosos e privilegiados, a maioria de quem nela mergulha abandona a empreitada já na primeira parte (a signatária inclusive) — e vai procurar versos menos barrocos, menos alegóricos do poeta. Talvez, numa nova tentativa...

Mas foi justo com essa obra mamute de 1947, que versa sobre a teimosia humana em se entender como gente depois da Segunda Guerra, que Auden cunhou o que nos define hoje. Vivemos uma era da ansiedade continuada, pandêmica, agarrados ao que éramos sem saber se resta tempo para mudar. Num dos versos mais cativantes do poema, o personagem Quant diz que o mundo também precisaria de um bom banho , além de uma semana de descanso, para se recuperar do que fazemos com ele.

Vivemos aos sobressaltos, alternando espasmos de assombro com as catástrofes da hora. Sequer temos tempo para digerir as várias dores, coletivas ou privadas, que a todo momento disputam nossa atenção. A ansiedade surda, pesada e pegajosa que dá poucos sinais de se dissolver sozinha ora nos coloca em alerta máximo à espera de um Godot, ora nos prostra em estado de sonambulismo cívico para poder digerir o que passou. Isso não é viver, convenhamos.

Merece admiração irrestrita quem consegue manter o foco e não se dispersa com o jorrar ininterrupto de notícias que se empilham e nos tapam a visão. Foi muito impactante assistir ao recente descarrego emocional do coordenador da Agência Humanitária e Ajuda Emergencial da ONU, Martin Griffiths, durante entrevista concedida ao site Democracy Now. “Um milhão de crianças sofrendo de desnutrição extrema! Um milhão de crianças!”, disse Griffiths com indignação incontida. Números são sempre abstratos quando em escala tão enorme, mas 1 milhão de crianças à beira da inanição num país de 23 milhões de habitantes nada tinha de abstrato. Ele referia-se ao alerta de que, a prosseguirem as sanções econômicas dos Estados Unidos contra o novo regime de Cabul, e a retenção de fundos afegãos pelo Banco Mundial com a volta do Talibã ao poder, ali poderão morrer, só este ano, mais civis que durante os 20 anos de guerra.

Menos de cinco meses atrás, estávamos todos grudados nas imagens do dramático desenrolar do abandono à própria desgraça daquele povo. Hoje, a pauta é outra. Sempre foi assim, apenas a notícia corria em ritmo mais lento. Parecia haver uma hecatombe ambiental aqui, um terremoto devastador acolá, alguma chacina macabra alhures, pensávamos compreender. Foi a instantaneidade e disseminação planetária do fluxo noticioso que nos desenraizou do viver de ontem, sem ainda aprendermos a viver no amanhã. Quanto ao presente, o sentimos em suspenso.

A ensaísta franco-cubano-americana Anaïs Nin, no primeiro volume do seu “Diário (1931-1934)”, se debruçou sobre outro tipo de desperdício humano: transitar por um mundo em que você hiberna pensando estar a viver e onde a ausência de prazer e alegria pode parecer uma doença inócua. “Milhões vivem assim (ou morrem assim ) sem sabê-lo”, escreveu. Trabalham em escritórios. Dirigem carros. Passeiam no parque em família. Criam os filhos. Por vezes, até acordam graças a algum tratamento de choque — o encontro com alguém, a descoberta de um livro, a mágica de ouvir uma canção —e são salvos da morte. Mas alguns nunca despertam.

Preâmbulo longo para conclusão telegráfica: entrou em estado vegetativo terminal o presidente da República que nem piscou para a despedida da mulher-raiz da alma nacional, Elza Soares. Ela, ao contrário, deixa uma teimosa sinfonia de permanecer viva para sempre.

 

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