O Globo
Já se passaram 75 anos desde que W.H.Auden
escreveu o ambicioso poema “A era da ansiedade”, obra com dimensão de livro
(200 e tantas páginas, dependendo da edição) que lhe rendeu o que talvez seja,
até hoje, o Prêmio Pulitzer mais citado e menos lido da história. A obra em
seis partes transcorre num bar nova-iorquino onde quatro desconhecidos
discorrem sobre a vida, suas tormentas, perdas e sonhos. Descrito assim, soa a
leitura fácil. Na verdade, excetuando estudiosos e privilegiados, a maioria de
quem nela mergulha abandona a empreitada já na primeira parte (a signatária
inclusive) — e vai procurar versos menos barrocos, menos alegóricos do poeta.
Talvez, numa nova tentativa...
Mas foi justo com essa obra mamute de 1947,
que versa sobre a teimosia humana em se entender como gente depois da Segunda
Guerra, que Auden cunhou o que nos define hoje. Vivemos uma era da ansiedade
continuada, pandêmica, agarrados ao que éramos sem saber se resta tempo para
mudar. Num dos versos mais cativantes do poema, o personagem Quant diz que o
mundo também precisaria de um bom banho , além de uma semana de descanso, para
se recuperar do que fazemos com ele.
Vivemos aos sobressaltos, alternando espasmos de assombro com as catástrofes da hora. Sequer temos tempo para digerir as várias dores, coletivas ou privadas, que a todo momento disputam nossa atenção. A ansiedade surda, pesada e pegajosa que dá poucos sinais de se dissolver sozinha ora nos coloca em alerta máximo à espera de um Godot, ora nos prostra em estado de sonambulismo cívico para poder digerir o que passou. Isso não é viver, convenhamos.
Merece admiração irrestrita quem consegue
manter o foco e não se dispersa com o jorrar ininterrupto de notícias que se
empilham e nos tapam a visão. Foi muito impactante assistir ao recente
descarrego emocional do coordenador da Agência Humanitária e Ajuda Emergencial
da ONU, Martin Griffiths, durante entrevista concedida ao site Democracy Now.
“Um milhão de crianças sofrendo de desnutrição extrema! Um milhão de
crianças!”, disse Griffiths com indignação incontida. Números são sempre
abstratos quando em escala tão enorme, mas 1 milhão de crianças à beira da
inanição num país de 23 milhões de habitantes nada tinha de abstrato. Ele
referia-se ao alerta de que, a prosseguirem as sanções econômicas dos Estados
Unidos contra o novo regime de Cabul, e a retenção de fundos afegãos pelo Banco
Mundial com a volta do Talibã ao poder, ali poderão morrer, só este ano, mais
civis que durante os 20 anos de guerra.
Menos de cinco meses atrás, estávamos todos
grudados nas imagens do dramático desenrolar do abandono à própria desgraça
daquele povo. Hoje, a pauta é outra. Sempre foi assim, apenas a notícia corria
em ritmo mais lento. Parecia haver uma hecatombe ambiental aqui, um terremoto
devastador acolá, alguma chacina macabra alhures, pensávamos compreender. Foi a
instantaneidade e disseminação planetária do fluxo noticioso que nos
desenraizou do viver de ontem, sem ainda aprendermos a viver no amanhã. Quanto
ao presente, o sentimos em suspenso.
A ensaísta franco-cubano-americana Anaïs
Nin, no primeiro volume do seu “Diário (1931-1934)”, se debruçou sobre outro
tipo de desperdício humano: transitar por um mundo em que você hiberna pensando
estar a viver e onde a ausência de prazer e alegria pode parecer uma doença
inócua. “Milhões vivem assim (ou morrem assim ) sem sabê-lo”, escreveu.
Trabalham em escritórios. Dirigem carros. Passeiam no parque em família. Criam
os filhos. Por vezes, até acordam graças a algum tratamento de choque — o
encontro com alguém, a descoberta de um livro, a mágica de ouvir uma canção —e
são salvos da morte. Mas alguns nunca despertam.
Preâmbulo longo para conclusão telegráfica:
entrou em estado vegetativo terminal o presidente da República que nem piscou
para a despedida da mulher-raiz da alma nacional, Elza Soares. Ela, ao
contrário, deixa uma teimosa sinfonia de permanecer viva para sempre.
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