O Globo
Leonel Brizola era um grande contador de
histórias, mas fugia de depoimentos formais para a posteridade. “Na verdade,
vivo muito mais preocupado com o futuro, com os projetos, do que com o
passado”, justificava-se. Em abril de 1996, ele abriu uma exceção em sua cidade
natal. Falou por mais de quatro horas a pesquisadores de Carazinho (RS), onde
nasceu há cem anos, em 22 de janeiro de 1922.
Inédita até hoje, a conversa tratou da
infância e da juventude do político, que perdeu o pai com 1 ano de idade. O
camponês José Brizola foi morto num dos embates sangrentos entre chimangos e
maragatos. “Eu me criei sob o signo desse fato, a morte do velho”, desabafou.
A mãe, Oniva, convenceu os cinco filhos a não buscarem vingança. “Não sei sinceramente se ele foi fuzilado, naquela época davam um tiro na testa ou na nuca. Ou se foi degolado”, disse Brizola. “Sempre me recusei a encarar esse assunto. Nunca quis que o povo riograndense imaginasse que eu estava querendo me vingar”, explicou.
A vida era dura no interior gaúcho. Até os
7 anos, o guri nunca havia calçado sapatos. Aos 11, foi apresentado a uma
escova de dentes. A família se mudou para Passo Fundo, onde ele batalhou
trocados num açougue. De manhã, ao sair para as entregas, invejava as crianças
de classe média que estudavam num internato particular.
“Um colégio de colunas, muito bonito. Eu
adorava olhar aquilo ali. Às vezes invadia o recinto e me botavam para fora”,
recordou. “Eu ia distribuindo carne, levava aqueles ganchos. E aqueles garotos
bem arrumadinhos, bem abrigados, indo pro colégio”. Um dia, o menino pobre deu
uma topada e foi ridicularizado. “Sangrou, a dor, aquele frio, e o garoto
disse: ‘Se foram os bichos de pé!’. Eu não tive dúvida, fui de carne e gancho
para cima dele.”
Oniva alfabetizou os filhos (“tínhamos dois
livros em casa, passavam de um para outro”), mas insistiu que buscassem
educação formal. “A velha sempre querendo que eu estudasse, ela me botou na
cabeça isso”, contou Brizola. De volta a Carazinho, ele procurou o colégio de
um pastor metodista. Propôs ajudar na faxina em troca de vaga e lugar para
dormir. “Foi um período áureo da minha vida”, lembrou. “Fui me civilizando
ali.”
O guri arrumou novos bicos. Foi engraxate,
carregador de mala, vendedor de jornal. “Depois de mil andanças, acabei indo
para Porto Alegre. Fiquei quase um ano na rua, trabalhando nas piores
condições”, narrou. Aos 14, conseguiu passar para uma escola técnica. Na hora
da matrícula, mais problemas: não tinha certidão de nascimento nem dinheiro
para o enxoval. “Foi uma saga”, resumiu.
Na capital gaúcha, o jovem Brizola trabalhou
como ascensorista, operário e jardineiro. Depois passou para a faculdade de
Engenharia, onde se encantou com o getulismo. Aos 25, elegeu-se deputado
estadual pelo PTB. Era o início de uma carreira política de quase seis décadas,
só interrompida pelos 15 anos no exílio.
Em 1958, o trabalhista chegou ao governo
gaúcho com o lema “Nenhuma criança sem escola”. Construiu seis mil colégios
públicos, as chamadas “brizoletas”. Mais tarde, ergueria 500 Cieps no Rio de
Janeiro. Projetados por Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer, os “brizolões”
ofereciam alimentação, assistência médica e ensino em tempo integral. Depois
seriam sucateados por sucessivos governos fluminenses.
Morto em 2004, Brizola não desperta mais as
críticas apaixonadas do passado. Seu legado é disputado nas urnas, e até
adversários o reconhecem como o político brasileiro mais identificado com a
causa da educação. A luta dos primeiros anos ajuda a entender como tudo
começou.
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