domingo, 23 de janeiro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: Antirracismo sem corrimão

Foi um exercício de paciência esperar uma semana pela publicação de mais um artigo dessa coluna para dizer algo sobre o ruído causado em redes sociais e alguns espaços da imprensa pelo artigo de Antônio Risério “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo – FSP/Ilustríssima, 16.01.22)”. O impulso de me solidarizar com um intelectual que admiro, ademais um querido amigo, alvo, durante a semana, de toda sorte de injúrias morais, intelectuais e políticas teve de ceder a uma compreensão de um limite meu. Sou assumidamente ineficaz no manejo de ferramentas e estratégias de discussão em redes sociais, inaptidão e inapetência derivadas da lentidão (pecado capital em tais espaços) com que se processa em mim o circuito recepção-reflexão-opinião toda vez que o tema não faz parte das minhas cogitações rotineiras. Era precisamente esse o caso e só deixou de ser quando o embate resvalou do léxico cada vez mais esotérico que vem marcando o “campo” de estudos e a arena de disputa política em torno de questões raciais para adentrar explicitamente no terreno das práticas da (e contra a) democracia. Aí me sinto em casa, com todas as responsabilidades de alguém que precisa defendê-la. Antes estava certo de que o que eu pudesse dizer não teria outra relevância substantiva, além da moral. Agora o problema transcende Risério de uma forma tal que poderia ser tratado até sem mencioná-lo. Mas ainda assim vou cumprir as etapas, passar primeiro pelo fato gerador, conferindo os devidos créditos, mesmo avisando, a quem lê, sobre a distância entre o fato e os alvos das minhas preocupações.

Considero que o artigo em questão, pela sua forma e pelo seu conteúdo, não representa bem a consistente reflexão do seu autor sobre questões raciais e suas conexões (de caráter conceitual, ou contextual) com sociedade, cultura e política. Isso mesmo levando em conta que se trata de um texto publicístico e não de um livro ou de um artigo acadêmico. Ao fazer afirmação tão ousada para um quase leigo, aviso que não pretendo ignorar o conselho de pisar em chão tão movediço, a não ser devagarinho. Reivindico, porém, que minha afirmação afoita seja enquadrada, por Risério e pelos seus antagonistas, dentro dos limites do entendimento que seja possível esperar de um não especialista no “campo” e de um não proprietário de “lugar de fala” previamente legitimado por seus zelosos guardiães, que Risério costuma fustigar. Se me permitirem essa licença digo que achei o texto um ponto meio fora da curva ascendente de coisas que já li do autor, as quais, aliás, apesar da relação pessoal que temos, não cobrem a contento o seu grande elenco de obras. Vi que ele focou no problema enunciado no título, que é digno de atenção, mas fez isso isolando-o de questões sociais conexas tanto ao problema geral do racismo como ao tema dos movimentos identitários. Sobre esse último assunto Risério já escreveu bastante, com bem mais profundidade e precisão, mesmo quando assumiu posições fortes e controversas.

Risério tem criticado o conceito de racismo estrutural como um estratagema para amarrar a luta contra o racismo ao identitarismo negro. O conceito proporia a raça negra como credora de reparação estatal pela violência racista (histórica e atual) de que são vítimas os indivíduos negros. Seus defensores insistem numa demarcação de sentido. Racismo seria fenômeno sistêmico, logo, distinto de preconceito e de discriminação racial, ambos referidos mais ao plano de atitudes individuais ou de grupos específicos, o primeiro reportando-se ao pensamento, a segunda à ação. O foco principal das críticas mais sérias que vi ao artigo de Risério foi que ele tratou como racismo (de negros contra brancos) o que teriam sido manifestações pontuais de discriminação racial, ocorridas em alguns lugares fora do Brasil. Numa das matérias publicadas na rede li em que consistiria o enunciado do conceito, da lavra de Silvio de Almeida: "um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. Avisando logo que não li o livro de Silvio de Almeida, apresento o pouco que me foi dado entender até agora sobre a controvérsia que esse conceito suscitou, ou aguçou, durante a semana passada.

Se Risério apelou à indistinção para travar o embate frontal, terá cometido um erro intelectual e isso não seria trivial para um intelectual do seu porte. Mas quem quer criticá-lo por isso deve convir que esse erro é cometido amiúde, como arma de embate, pelos movimentos identitários, sujeitos dos quais ele se ocupou nesse texto. Tem-se visto, realmente, no varejo da cena pública, onde delitos raciais de variados calibres são cometidos contra negros tanto pela polícia como por clientes de supermercados, atores desses movimentos quererem enquadrar como racismo - com as implicações penais que isso hoje, felizmente, traz - toda manifestação de discriminação e mesmo as de preconceito, que não impliquem em atos. Apagam-se, no calor da luta desigual, as fronteiras entre preconceito, discriminação e racismo e tal “confusão conceitual” não passa, em geral, pelo crivo vigilante do campo intelectual que se liga, cada vez mais organicamente, aos movimentos (ao menos, um crivo não é visível para alguém que não seja do campo). Tudo muito compreensível no rigor da vida real. Mas o que não dá é para ser complacente com esses erros intelectuais "do bem" e xingar de racista quem eventualmente os comete na mão inversa. Julga-se os mentores intelectuais do movimento pelo metro da política, em si mais tolerante – e é compreensível que assim o seja; e julga-se os seus críticos pelo método da ciência, cobrando rigor intelectual em tempo integral e dedicação exclusiva, como se intelectuais “tradicionais” não pudessem acessar também, assim como os “orgânicos”, o plano da luta política. Nesse plano – e aqui já me aproximo da minha praia mais conhecida – o paternalismo de alguns e o oportunismo ou covardia moral de outros podem estar criando uma rede de proteção ao obscurantismo. Ainda que se concedesse a seus críticos que Risério errou na mão e escreveu um texto parcialmente equivocado, no calor da refrega, é fato que ele escreveu antes, de modo intelectualmente denso e suficiente, inclusive contra esse desmanche de fronteiras entre racismo, discriminação e preconceito. Não me consta que ele esteja pedindo que esqueçamos o que escreveu e nos atenhamos a esse seu recurso eventual ao panfleto.

Assim como em temas como direitos civis, reconhecimento, políticas afirmativas e o da tensão entre universalismo e identidade nacional, também no estudo e discussão do pensamento específico de um intelectual relevante (Antônio Risério, por exemplo) podem trafegar as gramáticas atitudinais da concessão e da moderação. Além de algumas críticas substantivas, como as que mencionei há pouco, o texto gerou, em muito mais número, reações agressivas, simplificadoras. Até um certo ponto era de esperar, tanto pelo teor de agito que ele mesmo contém, como por uma atitude política dogmática que está presente no movimento que ele fustigou, ainda que não se possa, nem se deva estigmatizar esse ambiente afirmando, superficialmente, ser essa, ali, uma atitude generalizada. Mas é fato que o “certo ponto” foi de longe ultrapassado se repararmos nos tipos de ataque de que o autor foi e está sendo alvo. Para economizar espaço e, também, o tempo dos leitores e ouvintes, não me deterei em grosserias diversas que grassaram nas redes, algumas alegando (outras nem isso) que Risério sacou primeiro. Ainda que tal fosse líquido e certo (e não é, pois o contencioso é antigo) cabe reprovar uma tentativa de incineração intelectual. Por isso associo-me às manifestações de desagravo que lhe foram dirigidas.

Falei há pouco na possibilidade de intelectuais visitarem o território da luta política aberta. Penso que Risério tem feito isso e a legitimidade dessa incursão não pode ser avaliada pelo critério do quem ele enfrenta, na geografia ideológica da política. Sim, ele tem enfrentado uma parte da esquerda (e não o conjunto do campo “progressista”, como li essa semana em algum lugar). Em outros momentos de sua vida viu-se em embates com o campo ideológico oposto aos dos seus adversários de hoje. É da natureza de intelectuais independentes essa oscilação, que nada tem de moléstia. Ao contrário, a pendenga constante com as certezas das ideologias é um indicador de pensamento são em intelectuais idem.

Também não é critério de legitimidade o como da intervenção publicística do intelectual ou, em outras palavras, o teor de agitação e propaganda abrigado em cada palavra ou gesto político seu. Nem sempre me vejo em paz com os modos de Risério debater um assunto político. Mais frequente é me inquietar. Ainda nos separam – e creio que assim será para sempre, sexagenários que somos – as nossas marcas de origem política. O reformismo prudencial de matriz comunista, no meu caso; o vanguardismo voluntarista, de matriz libertária, no dele. Mas somos afins. As adversidades de uma ditadura e os encantos de uma democracia agem como uma língua franca para construir diálogos, estejam as pessoas em partidos políticos, em organizações sociais, ou em movimentos por causas efêmeras; dediquem-se elas ao ofício acadêmico institucionalizado ou se aventurem em trajetória intelectual autônoma. O que no fim das contas importa mais não é quem enfrentam ou como. O que importa mais é o que defendem. 

Nenhuma palavra falada ou escrita por Antônio Risério em público tem se afastado de uma decidida defesa da liberdade de pensamento e de ação para todos. É desse quilate - liberal, participativo e pluralista - a ideia de democracia com a qual ele se afina. Mas se bem interpreto seu modo de pensar e suas afinidades mais caras, a democracia é para ele um artefato que deve se manejar com sinal de alerta ligado para sua dimensão institucional, de poder político. A nação, mais que as instituições acima dela, dá sentido à democracia. Por isso, ele é capaz de saudar insurreições orientadas por temas planetários para os quais julga que o Brasil tem vocação. Mas ela, a nação, é também o que cuida de fazer dele um conservador. Tenho a impressão de que ele supõe seu pensamento como um fio terra, que se instala para a energia que conduz não escapar e produzir choques elétricos embaixo. Penso que é assim que ele recepciona as questões raciais. Há formas e formas de pensar o racismo e lutar contra ele. A dele é essa. Nela não há verdade dogmática (nenhuma verdade desse tipo há, nem precisa haver). Há só uma visão particular que prospera numa mente treinada para, como dizia Hannah Arendt, pensar sem corrimão.

Por isso é de uma miséria intelectual e moral desconcertante assistir, numa hora dessas em que o pensamento livre é hostilizado pelo poder mais poderoso dos poderes do Estado, trabalhadores da imprensa se dirigirem a seus patrões para pedirem, em nome de uma ideologia, o cerceamento do acesso de um intelectual às páginas de um jornal. Não! a vítima não é Risério, que é uma entre as mentes que podem ser cerceadas se a atitude obscurantista virar costume. Vítimas seremos todos nós.

* Cientista político e professor da UFBa

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