Considero que o artigo em questão, pela sua forma e pelo seu conteúdo, não representa bem a consistente reflexão do seu autor sobre questões raciais e suas conexões (de caráter conceitual, ou contextual) com sociedade, cultura e política. Isso mesmo levando em conta que se trata de um texto publicístico e não de um livro ou de um artigo acadêmico. Ao fazer afirmação tão ousada para um quase leigo, aviso que não pretendo ignorar o conselho de pisar em chão tão movediço, a não ser devagarinho. Reivindico, porém, que minha afirmação afoita seja enquadrada, por Risério e pelos seus antagonistas, dentro dos limites do entendimento que seja possível esperar de um não especialista no “campo” e de um não proprietário de “lugar de fala” previamente legitimado por seus zelosos guardiães, que Risério costuma fustigar. Se me permitirem essa licença digo que achei o texto um ponto meio fora da curva ascendente de coisas que já li do autor, as quais, aliás, apesar da relação pessoal que temos, não cobrem a contento o seu grande elenco de obras. Vi que ele focou no problema enunciado no título, que é digno de atenção, mas fez isso isolando-o de questões sociais conexas tanto ao problema geral do racismo como ao tema dos movimentos identitários. Sobre esse último assunto Risério já escreveu bastante, com bem mais profundidade e precisão, mesmo quando assumiu posições fortes e controversas.
Risério tem criticado o conceito de racismo
estrutural como um estratagema para amarrar a luta contra o racismo ao
identitarismo negro. O conceito proporia a raça negra como credora de reparação
estatal pela violência racista (histórica e atual) de que são vítimas os
indivíduos negros. Seus defensores insistem numa demarcação de sentido. Racismo
seria fenômeno sistêmico, logo, distinto de preconceito e de discriminação racial,
ambos referidos mais ao plano de atitudes individuais ou de grupos específicos,
o primeiro reportando-se ao pensamento, a segunda à ação. O foco principal das
críticas mais sérias que vi ao artigo de Risério foi que ele tratou como racismo
(de negros contra brancos) o que teriam sido manifestações pontuais de
discriminação racial, ocorridas em alguns lugares fora do Brasil. Numa das
matérias publicadas na rede li em que consistiria o enunciado do conceito, da
lavra de Silvio de Almeida: "um processo em que condições de
subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se
reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. Avisando
logo que não li o livro de Silvio de Almeida, apresento o pouco que me foi dado
entender até agora sobre a controvérsia que esse conceito suscitou, ou aguçou,
durante a semana passada.
Se Risério apelou à indistinção para travar
o embate frontal, terá cometido um erro intelectual e isso não seria trivial
para um intelectual do seu porte. Mas quem quer criticá-lo por isso deve convir
que esse erro é cometido amiúde, como arma de embate, pelos movimentos identitários,
sujeitos dos quais ele se ocupou nesse texto. Tem-se visto, realmente, no
varejo da cena pública, onde delitos raciais de variados calibres são cometidos
contra negros tanto pela polícia como por clientes de supermercados, atores
desses movimentos quererem enquadrar como racismo - com as implicações penais
que isso hoje, felizmente, traz - toda manifestação de discriminação e mesmo as
de preconceito, que não impliquem em atos. Apagam-se, no calor da luta desigual,
as fronteiras entre preconceito, discriminação e racismo e tal “confusão
conceitual” não passa, em geral, pelo crivo vigilante do campo intelectual que
se liga, cada vez mais organicamente, aos movimentos (ao menos, um crivo não é
visível para alguém que não seja do campo). Tudo muito compreensível no rigor
da vida real. Mas o que não dá é para ser complacente com esses erros
intelectuais "do bem" e xingar de racista quem eventualmente os
comete na mão inversa. Julga-se os mentores intelectuais do movimento pelo
metro da política, em si mais tolerante – e é compreensível que assim o seja; e
julga-se os seus críticos pelo método da ciência, cobrando rigor intelectual em
tempo integral e dedicação exclusiva, como se intelectuais “tradicionais” não
pudessem acessar também, assim como os “orgânicos”, o plano da luta política. Nesse
plano – e aqui já me aproximo da minha praia mais conhecida – o paternalismo de
alguns e o oportunismo ou covardia moral de outros podem estar criando uma rede
de proteção ao obscurantismo. Ainda que se concedesse a seus críticos que
Risério errou na mão e escreveu um texto parcialmente equivocado, no calor da
refrega, é fato que ele escreveu antes, de modo intelectualmente denso e
suficiente, inclusive contra esse desmanche de fronteiras entre racismo,
discriminação e preconceito. Não me consta que ele esteja pedindo que
esqueçamos o que escreveu e nos atenhamos a esse seu recurso eventual ao
panfleto.
Assim como em temas como direitos civis,
reconhecimento, políticas afirmativas e o da tensão entre universalismo e
identidade nacional, também no estudo e discussão do pensamento específico de
um intelectual relevante (Antônio Risério, por exemplo) podem trafegar as
gramáticas atitudinais da concessão e da moderação. Além de algumas críticas
substantivas, como as que mencionei há pouco, o texto gerou, em muito mais
número, reações agressivas, simplificadoras. Até um certo ponto era de esperar,
tanto pelo teor de agito que ele mesmo contém, como por uma atitude política dogmática
que está presente no movimento que ele fustigou, ainda que não se possa, nem se
deva estigmatizar esse ambiente afirmando, superficialmente, ser essa, ali, uma
atitude generalizada. Mas é fato que o “certo ponto” foi de longe ultrapassado
se repararmos nos tipos de ataque de que o autor foi e está sendo alvo. Para
economizar espaço e, também, o tempo dos leitores e ouvintes, não me deterei em
grosserias diversas que grassaram nas redes, algumas alegando (outras nem isso)
que Risério sacou primeiro. Ainda que tal fosse líquido e certo (e não é, pois
o contencioso é antigo) cabe reprovar uma tentativa de incineração intelectual.
Por isso associo-me às manifestações de desagravo que lhe foram dirigidas.
Falei há pouco na possibilidade de
intelectuais visitarem o território da luta política aberta. Penso que Risério
tem feito isso e a legitimidade dessa incursão não pode ser avaliada pelo
critério do quem ele enfrenta, na geografia ideológica da política. Sim, ele
tem enfrentado uma parte da esquerda (e não o conjunto do campo “progressista”,
como li essa semana em algum lugar). Em outros momentos de sua vida viu-se em
embates com o campo ideológico oposto aos dos seus adversários de hoje. É da
natureza de intelectuais independentes essa oscilação, que nada tem de
moléstia. Ao contrário, a pendenga constante com as certezas das ideologias é
um indicador de pensamento são em intelectuais idem.
Também não é critério de legitimidade o como
da intervenção publicística do intelectual ou, em outras palavras, o teor de
agitação e propaganda abrigado em cada palavra ou gesto político seu. Nem
sempre me vejo em paz com os modos de Risério debater um assunto político. Mais
frequente é me inquietar. Ainda nos separam – e creio que assim será para
sempre, sexagenários que somos – as nossas marcas de origem política. O reformismo
prudencial de matriz comunista, no meu caso; o vanguardismo voluntarista, de
matriz libertária, no dele. Mas somos afins. As adversidades de uma ditadura e
os encantos de uma democracia agem como uma língua franca para construir diálogos,
estejam as pessoas em partidos políticos, em organizações sociais, ou em
movimentos por causas efêmeras; dediquem-se elas ao ofício acadêmico
institucionalizado ou se aventurem em trajetória intelectual autônoma. O que no
fim das contas importa mais não é quem enfrentam ou como. O que importa mais é o
que defendem.
Nenhuma palavra falada ou escrita por
Antônio Risério em público tem se afastado de uma decidida defesa da liberdade
de pensamento e de ação para todos. É desse quilate - liberal, participativo e
pluralista - a ideia de democracia com a qual ele se afina. Mas se bem
interpreto seu modo de pensar e suas afinidades mais caras, a democracia é para
ele um artefato que deve se manejar com sinal de alerta ligado para sua
dimensão institucional, de poder político. A nação, mais que as instituições
acima dela, dá sentido à democracia. Por isso, ele é capaz de saudar
insurreições orientadas por temas planetários para os quais julga que o Brasil
tem vocação. Mas ela, a nação, é também o que cuida de fazer dele um
conservador. Tenho a impressão de que ele supõe seu pensamento como um fio
terra, que se instala para a energia que conduz não escapar e produzir choques
elétricos embaixo. Penso que é assim que ele recepciona as questões raciais. Há
formas e formas de pensar o racismo e lutar contra ele. A dele é essa. Nela não
há verdade dogmática (nenhuma verdade desse tipo há, nem precisa haver). Há só
uma visão particular que prospera numa mente treinada para, como dizia Hannah
Arendt, pensar sem corrimão.
Por isso é de uma miséria intelectual e
moral desconcertante assistir, numa hora dessas em que o pensamento livre é
hostilizado pelo poder mais poderoso dos poderes do Estado, trabalhadores da
imprensa se dirigirem a seus patrões para pedirem, em nome de uma ideologia, o
cerceamento do acesso de um intelectual às páginas de um jornal. Não! a vítima
não é Risério, que é uma entre as mentes que podem ser cerceadas se a atitude
obscurantista virar costume. Vítimas seremos todos nós.
* Cientista político
e professor da UFBa
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