segunda-feira, 21 de março de 2022

Demétrio Magnoli: Guerra Fria, mas outra

O Globo

Francis Fukuyama profetizou, 30 anos atrás, no rastro da implosão da URSS, o triunfo final da democracia liberal. O eterno otimista prevê agora a derrota militar total da Rússia no teatro de guerra da Ucrânia, a consequente queda de Putin e, “graças aos bravos ucranianos”, o renascimento do “espírito de 1989” (American Purpose, 10/3). Exceto na hipótese improvável de que ele acerte na mosca, a guerra de agressão russa anuncia uma segunda Guerra Fria.

O ex-secretário de Defesa Robert Gates sintetizou o consenso bipartidário que se delineia na superpotência ocidental: “Enfrentamos uma confrontação global de duração indeterminada com duas grandes potências que compartilham o autoritarismo interno e a hostilidade aos EUA” (The Washington Post, 3/3). Seu diagnóstico é um eco nítido do telegrama de 1947, assinado em código por Mr. X, o diplomata George F. Kennan, que inspirou a Doutrina da Contenção.

Diante da URSS stalinista e, depois, da China maoista, os EUA deveriam jogar no tabuleiro do tempo longo, erguendo alianças políticas, econômicas e militares destinadas a conter a expansão das potências comunistas. O Plano Marshall, a Otan, assim como uma intrincada rede de instituições e acordos, configuraram a muralha da contenção. Hoje, enquanto as cidades ucranianas são vandalizadas por bombardeios russos, ressurge o “espírito de 1947”: o sistema internacional inclina-se para a cisão em dois blocos antagônicos.

Quando deflagrou a invasão da Ucrânia, Putin almejava tornar a Rússia grande novamente. O que conseguiu de fato foi oferecer uma segunda vida à Otan. Contudo a nova Guerra Fria distingue-se da original por duas diferenças cruciais.

Primeiro: a Rússia não é a URSS. A URSS era um Estado soldado pela cola firme do poder do Partido-Estado, enquanto a Rússia só tem um regime de camarilha que propaga uma versão atualizada do nacionalismo chauvinista grão-russo. A Rússia não conta com a esfera de Estados-satélites soviéticos no Leste Europeu. A URSS assentava-se sobre um sistema econômico semiautárquico, ao contrário da Rússia, cuja economia integrou-se às da Europa e da China.

Segundo: o protagonista atual é a China, potência ascendente, não a Rússia, potência em declínio. O almirante James Stavridis, ex-comandante geral da Otan, registrou o ponto de vista predominante nos EUA: “A ameaça tática é Vladimir Putin. O desafio estratégico é a China” (Der Spiegel, 11/3).

A Guerra Fria original divide-se em duas etapas. Na segunda, inaugurada com a visita de Nixon à China, exato meio século atrás, esmaeceu a imagem de um sistema internacional bipartido. A aproximação sino-americana propiciou a reforma econômica chinesa pós-maoista e, em seguida, um reordenamento radical da economia global. Entretanto, desde Trump, os EUA orientam-se por um manual estratégico que descreve a China como principal rival de longo prazo.

A China contesta cada vez mais claramente a hegemonia dos EUA e, pouco antes da invasão da Ucrânia, declarou que sua parceria com a Rússia “não tem limites”. Mas, apesar do que se pensa em Washington, não está selado seu lugar na ordem mundial.

guerra na Ucrânia só deixa à Europa a via da ruptura com Moscou. A Alemanha descartou, em três dias, uma política externa de 30 anos ancorada na “ponte energética” com a Rússia. Os países europeus da Otan preparam-se para dobrar seus orçamentos de defesa. Contudo nada disso implica estender a “contenção” até o Oriente. Os governos europeus, em especial o alemão, parecem pouco propensos a desistir do intercâmbio econômico com a China.

A solidariedade chinesa com a Rússia tem limites: o interesse nacional. A estabilidade da economia da China depende de sua integração às cadeias produtivas globais — e a estabilidade de seu regime político depende da continuidade do crescimento econômico. Até agora, Xi Jinping ofereceu a Moscou declarações de apoio. Coisa diferente seria amparar, financeira e militarmente, a aventura ucraniana de Putin. No tabuleiro da segunda Guerra Fria, ainda falta posicionar uma peça central.

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