O Globo
Francis Fukuyama profetizou, 30 anos atrás,
no rastro da implosão da URSS, o triunfo final da democracia liberal. O eterno
otimista prevê agora a derrota militar total da Rússia no teatro de guerra da
Ucrânia, a consequente queda de Putin e, “graças aos bravos ucranianos”, o
renascimento do “espírito de 1989” (American Purpose, 10/3). Exceto na hipótese
improvável de que ele acerte na mosca, a guerra de agressão russa anuncia uma
segunda Guerra Fria.
O ex-secretário de Defesa Robert Gates sintetizou o consenso bipartidário que se delineia na superpotência ocidental: “Enfrentamos uma confrontação global de duração indeterminada com duas grandes potências que compartilham o autoritarismo interno e a hostilidade aos EUA” (The Washington Post, 3/3). Seu diagnóstico é um eco nítido do telegrama de 1947, assinado em código por Mr. X, o diplomata George F. Kennan, que inspirou a Doutrina da Contenção.
Diante da URSS stalinista e, depois, da
China maoista, os EUA deveriam jogar no tabuleiro do tempo longo, erguendo
alianças políticas, econômicas e militares destinadas a conter a expansão das
potências comunistas. O Plano Marshall, a Otan, assim como uma intrincada rede
de instituições e acordos, configuraram a muralha da contenção. Hoje, enquanto
as cidades ucranianas são vandalizadas por bombardeios russos, ressurge o
“espírito de 1947”: o sistema internacional inclina-se para a cisão em dois
blocos antagônicos.
Quando deflagrou a invasão da Ucrânia,
Putin almejava tornar a Rússia grande novamente. O que conseguiu de fato foi
oferecer uma segunda vida à Otan. Contudo a nova Guerra Fria distingue-se da
original por duas diferenças cruciais.
Primeiro: a Rússia não é a URSS. A URSS era
um Estado soldado pela cola firme do poder do Partido-Estado, enquanto a Rússia
só tem um regime de camarilha que propaga uma versão atualizada do nacionalismo
chauvinista grão-russo. A Rússia não conta com a esfera de Estados-satélites
soviéticos no Leste Europeu. A URSS assentava-se sobre um sistema econômico
semiautárquico, ao contrário da Rússia, cuja economia integrou-se às da Europa
e da China.
Segundo: o protagonista atual é a China,
potência ascendente, não a Rússia, potência em declínio. O almirante James
Stavridis, ex-comandante geral da Otan, registrou o ponto de vista predominante
nos EUA: “A ameaça tática é Vladimir Putin. O desafio estratégico é a China”
(Der Spiegel, 11/3).
A Guerra Fria original divide-se em duas
etapas. Na segunda, inaugurada com a visita de Nixon à China, exato meio século
atrás, esmaeceu a imagem de um sistema internacional bipartido. A aproximação
sino-americana propiciou a reforma econômica chinesa pós-maoista e, em seguida,
um reordenamento radical da economia global. Entretanto, desde Trump, os EUA
orientam-se por um manual estratégico que descreve a China como principal rival
de longo prazo.
A China contesta cada vez mais claramente a
hegemonia dos EUA e, pouco antes da invasão da Ucrânia, declarou que sua
parceria com a Rússia “não tem limites”. Mas, apesar do que se pensa em
Washington, não está selado seu lugar na ordem mundial.
A guerra na Ucrânia só deixa à Europa a via da ruptura com
Moscou. A Alemanha descartou, em três dias, uma política externa de 30 anos
ancorada na “ponte energética” com a Rússia. Os países europeus da Otan
preparam-se para dobrar seus orçamentos de defesa. Contudo nada disso implica
estender a “contenção” até o Oriente. Os governos europeus, em especial o
alemão, parecem pouco propensos a desistir do intercâmbio econômico com a
China.
A solidariedade chinesa com a Rússia tem
limites: o interesse nacional. A estabilidade da economia da China depende de
sua integração às cadeias produtivas globais — e a estabilidade de seu regime
político depende da continuidade do crescimento econômico. Até agora, Xi
Jinping ofereceu a Moscou declarações de apoio. Coisa diferente seria amparar,
financeira e militarmente, a aventura ucraniana de Putin. No tabuleiro da
segunda Guerra Fria, ainda falta posicionar uma peça central.
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