Elisabeth Roudinesco, biógrafa de Freud e de Lacan, aponta, em novo livro, os perigos da ‘hipertrofia do eu’
Guilherme Evelin, O Estado de S. Paulo / Aliás
Terminologias O identitarismo, acredita a autora, é acompanhado de linguagem que obscurece as situações reais
Elisabeth Roudinesco notabilizou-se como
historiadora da psicanálise, autora de biografias sobre Sigmund Freud e Jacques
Lacan e de um Dicionário de Psicanálise. Com Eu Supremo – Um Ensaio sobre as
Derivas Identitárias, recém-lançado no Brasil (Zahar, 304 págs., R$ 74), ela
faz sua intervenção no debate incandescente sobre a questão identitária. O
livro é um libelo contra as “designações identitárias” que, segundo ela,
reduzem o ser humano a uma experiência específica e tentam acabar com a
natureza do que é distinto. A autoafirmação de si, escreve Roudinesco no
prefácio do livro, leva à hipertrofia do eu, em que “cada um tenta ser si-mesmo
como um rei, e não como um outro” e consolida tendências de isolamento. Em
contraponto, diz ela, é preciso reforçar a existência de uma identidade
universal, que é múltipla e inclui o estrangeiro. No livro, Roudinesco fala com
admiração da obra de Gilberto Freyre, da mestiçagem e da existência de um
“hibridismo barroco” no Brasil.
O ensaio é uma genealogia do que Roudinesco
chama de “derivas identitárias” – a metamorfose de movimentos sociais que, no
começo do século 20, buscavam a emancipação, o progresso e a transformação do
mundo para melhor em movimentos de afirmação de identidade, que buscam exprimir
indignação ou o desejo de visibilidade e reconhecimento. Para ilustrar os
perigos dos sectarismos identitários, Roudinesco evoca sua participação em um
colóquio sobre psicanálise em 2005 no Líbano, país com 17 comunidades
religiosas, cada uma com sua legislação e jurisdições próprias, e habituado a
viver em guerra. Ao ser questionada por um anfitrião se seria cristã ortodoxa,
por causa do sobrenome, Roudinesco teve de responder que seu pai era
judeu-romeno, sua mãe era de uma família protestante de origens alemãs, mas ela
era ateia, sem ser anticlerical, e se identificava apenas como cidadã francesa.
Tempos depois, um dos participantes do colóquio e o filho do anfitrião
morreriam em atentados a bomba em Beirute. Apesar da crítica às “derivas
identitárias”, Roudinesco enfatiza que o maior perigo é o ressurgimento do
identitarismo de extrema direita, ancorado numa tradição de racismo e
antissemitismo com profundas raízes no Ocidente.
A seguir, trechos da entrevista de Roudinesco ao Estadão sobre o livro.
Seu ensaio começa com uma história pessoal
no Líbano, em que a senhora fez questão de se identificar como francesa. Sua
motivação para o livro tem a ver com a defesa dessa condição de cidadã de um
país do Ocidente, tão questionado pelos movimentos identitários?
Ao citar o que ocorreu no Líbano, quis
mostrar que mesmo eu já fui confrontada por uma designação identitária. No
Líbano, houve uma situação extravagante porque foi a primeira vez em que eu
tive que afirmar que era francesa, não por uma questão de identidade, mas por
cidadania. A motivação do livro, porém, foi a de dizer algumas coisas que
precisam ser esclarecidas. Há muito tempo, eu queria escrever algo sobre o que
está acontecendo no mundo intelectual, que é a substituição da busca da
emancipação pela afirmação identitária. Essa transformação se apoia notadamente
em pensadores franceses que eu conheci, sobretudo Michel Foucault e Jacques
Derrida, e que contribuíram para ilustrar o pensamento crítico. A designação
identitária, porém, tem algo fortemente criticável porque ela coloca o sujeito
em apenas um território como se nós fizéssemos parte de uma raça, de um gênero,
de uma religião. É um perigo porque embute a retração dos valores universais de
cada sujeito. Eu não reivindico os valores do Ocidente, mas os valores
universais.
Sua intenção foi então recuperar a obra desses
grandes intelectuais franceses que estariam sendo reinterpretados de uma forma
equivocada?
Não é propriamente o desejo de recuperar,
mas de refletir sobre a transformação da obra deles. A reivindicação
identitária mostra o conjunto do Ocidente como imperialista e colonizador, mas
esquece que houve lutas anticoloniais dentro dos países ocidentais. Jean-Paul
Sartre, que foi de uma geração bem anterior a Foucault e Derrida, encarnou a
luta contra o colonialismo francês, mas foi arrastado para a lama com a tese de
que os anticolonialistas franceses não tinham o direito de ser
anticolonialistas porque eram franceses, ocidentais, brancos. Isso me ofende,
porque sempre fui anticolonialista e venho de uma família anticolonialista.
Além desse ponto de partida, outra motivação para o ensaio é mostrar que houve
passos para trás com várias dessas derivas identitárias. A questão do gênero
foi revolucionária ao introduzir a noção de que ele é uma construção social e
psíquica e não apenas uma diferença anatômica de sexo, mas houve uma guinada no
sentido contrário quando se passou a negar o sexo em detrimento do gênero.
Ambos, sexo e gênero, são necessários.
A senhora considera então que muitas dessas
derivas identitárias estão promovendo retrocessos?
Sim. A noção de “negritude”, por exemplo, passou a ser racializada. Quando Aimé Césaire (poeta de origem martinicana) dizia que era negro e permaneceria sempre negro, ele não afirmava isso do ponto de vista da raça, mas, sim, do sentido do pertencimento a uma história e a uma cultura. Todas essas derivas, além disso, são acompanhadas de uma linguagem obscura. Há uma efervescência de terminologias, como cisgênero, branquitude, interseccionalidade, que obscurecem a situação real. O excesso de jargões é sempre um mau sinal. Um pensador que inova, é claro, inventa conceitos, mas há um certo limite para criar neologismos. Nesse caso, nós chegamos a um ponto de exagero.
Apesar dessa linguagem obscura, e mesmo
sendo minoritários na opinião pública, como a senhora assinala em seu livro, os
movimentos identitários ganharam as ruas e inflamaram o debate público, tanto à
esquerda como à direita. Como tais movimentos ganharam essa dimensão?
Eles são muito ativistas. Além disso, há uma midiatização desse fenômeno. Na França, ganharam também repercussão na sociedade por causa dos debates memoriais sobre a guerra da Argélia. Estamos enfim nos apoderando da verdade de nossa história para reconhecer os crimes cometidos pela colonização. Mas esses movimentos identitários permanecem minoritários e, na minha opinião, não têm futuro. Esse fenômeno não vai durar. As derivas identitárias são sintomas de um mundo que está em transformação. Por isso, são derivas. Não são coisas bem instaladas. Acredito que se trata de uma crise do pós-colonialismo, do pós-comunismo. É uma crise que tem aspectos positivos, viu? As derivas identitárias colocaram o problema das minorias. Mas, no combate da história, estão condenadas porque elas se tornaram punitivas com a cultura do cancelamento, o boicote aos espetáculos e, sobretudo, com a releitura das obras de arte.
A senhora relaciona a eclosão das angústias
identitárias à ascensão de uma cultura do narcisismo. Essa cultura foi
reforçada pelas redes sociais?
Sim. Tomei a expressão “cultura do
narcisismo” de empréstimo de Christopher Lasch (historiador americano) e de
Adorno, da Escola de Frankfurt. Eles – e os psicanalistas também – notaram como
o narcisismo tinha se tornado um fenômeno social muito importante no final do
século 20.
Nós substituímos Édipo por Narciso. Quando
Freud começou com a psicanálise, vivíamos em uma sociedade de frustração, onde
a liberdade sexual não existia. A partir dos anos 60, com a liberação sexual
nas sociedades ocidentais, com o sujeito confrontado a ele mesmo e não mais às
proibições do começo do século 20, percebeu-se que as pessoas passaram a ter
outras patologias: as depressões e os narcisismos.
A senhora escreve que o coração de todo
sistema identitário repousa numa espécie de vergonha de si mesmo. Pode explicar
isso?
A gente vê claramente essa vergonha de si
próprio, que retorna sob uma vontade narcisista, em alguns movimentos
identitários, como o dos indígenas da República (partido político francês que
se descreve como antirracista, antissionista e antiimperalista). É muito
visível em um livro de Houria Bouteldja (porta-voz do partido até 2020, que já
foi acusada de antissemitismo e homofobia, entre outras controvérsias). Ela
expressa vergonha por seus pais, imigrantes argelinos que foram assimilados na
sociedade francesa. A vergonha de suas origens, que retorna sob a forma de um ódio
ao outro, é uma indicação de necessidade de tratamento psíquico. Não se pode
permanecer pelo resto da vida na identificação de uma posição de vítima. É
preciso sair dessa posição vitimista em algum momento. Isso é válido também
para o movimento Me Too.
A senhora diz no livro que o reducionismo
identitário reconstrói tudo o que ele pretende combater. Por essa lógica, pode
haver racismo contra brancos?
O termo “racismo contra brancos” foi usado
pela extrema direita – aqui na França e em toda a parte – para atacar
autênticos militantes antirracistas. Certamente, não estou de acordo com isso.
Mas nós somos obrigados a refletir sobre o que é o racismo. Todas as sociedades
conhecem o racismo em todos os sentidos da palavra. Se pensamos no racismo como
o ódio e a vontade de exterminar o outro, sim, nesse sentido, há movimentos
extremistas negros que são racistas antibranco, como há movimentos extremistas
brancos, como a Ku Klux Klan, nos EUA, que são racistas antinegros. É preciso
pensar o racismo como uma questão universal. Por exemplo, há ódio aos judeus em
países onde não há judeus. Na Europa, há racismo contra negros em lugares onde
não há negros. Então, eu sou favorável a lutar contra todas as formas de
racismo, não importa de onde elas vêm, sabendo que a história do racismo foi,
em primeiro lugar, a dominação dos negros pelos brancos – ou seja, a história
da colonização contra os colonizados. Lutar contra o racismo e o antissemitismo
não deve ser também o apanágio de quem é negro ou judeu. Não é preciso ser negro
ou judeu para lutar contra o antissemitismo ou o racismo. Tem que haver a
mobilização de todo mundo.
A senhora aponta também a emergência do
identitarismo de extrema direita, que brande a defesa do nacionalismo e ganhou
grande força na França, com dois candidatos, Marine Le Pen e Éric Zemmour, com
chances de chegar ao segundo turno das eleições presidenciais em abril. Como
analisa esse fenômeno – em particular, a novidade política representada por
Zemmour, um judeu de origem argelina?
Estamos numa situação em que nós, na Europa
e na França, acordamos velhos demônios. O verdadeiro perigo identitário é esse:
a extrema direita, os populismos, os nacionalismos – é isso que leva às
guerras, como a da Ucrânia, porque Putin é de extrema direita e quer ressuscitar
uma Rússia imperial. Éric Zemmour encarna o pior do pior na França. Zemmour é
adepto da teoria racista da “grande substituição” e diz defender os valores
ditos judaico-cristãos da Europa contra as “invasões islâmicas”. Por trás do
seu racismo contra os árabes há também antissemitismo porque todo racista é
também antissemita. Análises já feitas mostram como Zemmour repete o discurso
de Édouard Drummont (jornalista que protagonizou, durante o caso Dreyfus,
alguns dos mais virulentos ataques aos judeus franceses ). Zemmour,
evidentemente, tem vergonha da judeidade. Ele tenta reabilitar a colaboração do
regime de Vichy na França com o nazismo, com a mentira de que o Marechal Pétain
salvou os judeus franceses. Até Marine Le Pen abandonou essa tese infame.
Outro citado no seu livro é Michel
Houellebecq. Nos anos 70, a senhora fez trabalhos de crítica literária. Como
analisa a obra dele?
Houellebecq faz parte de uma corrente literária muito particular existente na França. Nós a chamamos de literatura de abjeção porque ela tem uma olhar sobre o mundo em que tudo é abjeto, os personagens cultivam a abjeção e um horror de tudo. É uma literatura que se origina da extrema direita. As primeiras obras de Houellebecq eram muito interessantes porque havia uma espécie de crítica muito violenta da sociedade de consumo e da classe média. Mas, nos três últimos livros, a partir de Submissão, fiquei impressionada com o empobrecimento literário, uma redução da literatura a engajamentos ideológicos. Essa é a pior coisa que pode acontecer à literatura. Com um engajamento político muito forte, não se faz boa literatura – e isso vale também para a extrema esquerda. Fazse boa literatura quando se sabe trabalhar com a forma. Eu penso que Houellebecq é cada vez menos um bom escritor. Ele se tornou um ideólogo da extrema direita, que está perdendo seu talento.
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