Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Stanislaw Ponte Preta, heterônimo de Sérgio
Porto, fustigou as arbitrariedades e a estupidez da ditadura militar em seu
célebre Festival de Besteira que Assola o País, sucesso na imprensa e em livros
nos anos 1960. Estivesse vivo, o escritor estaria mais atarefado que nunca
nesses tempos bolsonaristas.
Se dependesse de Sérgio Porto, a
"sua" Copacabana —onde ficavam a casa na rua Leopoldo Miguez em que
nasceu e cresceu e muitas pensões para jovens— jamais mudaria. Não teve jeito:
a casa da infância foi demolida para a construção de um edifício, mesmo destino
das pensões alegres na orla da praia.
Durante
o dia, Sérgio trabalhava no Banco do Brasil. Como cronista da noite, usava
terno e gravata, sapatos lustrosos. Nas peladas da praia, pegava no
gol, e seus cabelos castanhos claros sempre estavam aparados e alinhados. O
melhor jazz era o de Nova Orleans; o melhor samba, o tradicional (ainda não se
dizia "de raiz").
Nascido há quase cem anos, em janeiro de
1923, homem do seu tempo, gentil, inteligente e espirituoso, aos olhos de muita
gente ele era um conservador —na antiga acepção da palavra, não um
"conservador" como conhecemos hoje nas mídias sociais—, cujo
comportamento em nada lembrava o anarquismo de Stanislaw Ponte Preta, seu
famoso heterônimo. Até
que veio o golpe militar de 1964.
Na verdade, Sérgio Porto era um democrata,
a quem aquela história de consertar o Brasil e acabar com o comunismo, botando
tanques na rua para assumir o poder, não cheirava nada bem.
Com
um general na Presidência, o próprio Stanislaw mudaria de tom e conversa,
não abandonando as crônicas e anedotas de humor nem seu alvo preferido de
antes, a classe ociosa das colunas sociais, mas passando a castigar os novos
modos e costumes da "redentora", como ele costumava se referir ao
regime recém-implantado.
No mesmo ano de 1964, Stanislaw Ponte Preta
publica "Garoto Linha Dura", título que já alude ao ambiente pesado
do país, sobretudo à perseguição política, censura e deduragem. "Escolhi
para título a história do garotinho que se deixou influenciar pelo mais recente
método de democratização posto em prática no Brasil", explica o autor na
nota que abre a coletânea.
Pedrinho, o tal garoto linha-dura, para fugir do castigo por ter quebrado uma vidraça jogando futebol na rua, entrega um colega e diz ao pai: "Esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunta nada a ele não. Quando ele vier atender a porta, o senhor vai logo tacando a mão nele".
O texto "Militarização" fecha a
antologia. Nele, um homem sonha que não existe mais emprego ou ocupação para
civis no país. Era um pesadelo, mas ele acorda gargalhando, e a mulher pergunta
o motivo: "É que, no sonho, eu passei em frente de uma boate e tinha um
cartaz na porta escrito: ‘Hoje sensacional strip-tease com o major
Pereira’".
Atuando na imprensa desde 1947 —fez de
tudo, da crítica musical a colunas em que selecionava mulheres de maiô, as
"certinhas"—,
Sérgio Porto preservou a alma de repórter. Algumas de suas melhores crônicas
são flagrantes tirados da rua. Daí ter retratado tão bem aquele tempo
brasileiro atropelado a uma só vez pela modernidade e pelo atraso. Sem falar
nas besteiras.
O Febeapá (Festival de Besteira que Assola
o País) surgiu nas páginas da Última Hora de Samuel Wainer, principal vitrine
de Stanislaw Ponte Preta. Alimentado pelos leitores que enviavam recortes de
jornais e atualizado diariamente, reuniu as façanhas de políticos, militares,
funcionários públicos e demais "cocorocas" que gravitavam em torno do
poder. A
rigor era um relatório, com pequenas histórias absurdas. Hoje, é história do
Brasil.
O material publicado em jornal foi depois
agrupado em livro em três volumes (1966, 1967 e 1968), também com o título
"Febeapá". A mais recente edição, da Companhia das Letras, reuniu
todas as crônicas em um só volume.
Historiador honesto, Stanislaw não sabia
precisar o dia em que tudo começou: "Notei o alastramento do Festival de
Besteira depois que uma inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto
uma senhora de um nível intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que
seu filho tirara zero numa prova de matemática, embora sabendo que o filho era
um debiloide, não vacilou em apontar às autoridades o professor da criança como
perigoso agente comunista".
Se o fato ocorresse hoje, ninguém
estranharia. Em novembro, a Polícia Civil intimou o
diretor da Escola Municipal Getúlio Vargas, em Resende (RJ), a prestar
depoimento, baseando-se em denúncia anônima encaminhada pelo Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Uma pessoa afirmava que os
alunos estariam sendo "expostos a conceitos comunistas" e
"ideologia de gêneros". A anônima inspetora de ensino dos tempos da
ditadura transformou-se na poderosa ministra Damares Alves do governo
Bolsonaro.
Não é preciso arrolar os inúmeros cacos de
burrice explícita do presidente —como ter ido visitar a "Torre de
Pizza" e confundido
o político John Kerry com o humorista Jim Carrey—
nem ressuscitar o
ex-ministro da Educação que não sabia escrever a palavra
"impressionante" (grafava "imprecionante") para
notar as semelhanças de estilo, intenção e gesto dos tempos bolsonaristas com
os da redentora. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não deixa a peteca
cair: "É melhor perder a vida do que perder a liberdade".
Na ditadura, quiseram prender Sófocles (que
morreu por volta de 406 a.C.), autor de peça clássica, "Electra",
considerada subversiva; o filme "Ivan, o Terrível", de Serguei
Eisenstein, que conta a história do czar russo que viveu no século 16, teve sua
exibição proibida em Belém para impedir que o "credo vermelho" fosse
difundido entre nós. É bom ficar só nesses dois exemplos, para não dar munição
ao secretário especial da Cultura, Mario Frias.
Até porque a pasta dele, em matéria de
besteira, não precisa de incentivo. O braço direito de Frias, o capitão da PM
André Porciuncula, ficou revoltado porque a imprensa brasileira repercutiu um
comercial natalino da Posten, os correios da Noruega, que mostra o bom velhinho
beijando um homem na boca.
Escreveu Porciuncula no Twitter:
"Estou verificando cada veículo de mídia que divulgou a cena do São
Nicolau (Papai Noel). O santo é parte integrante da fé cristã e, até onde eu
sei, desrespeitar a fé alheia ainda é crime. Farei uma notícia-crime contra os
envolvidos. A mídia tem de respeitar a fé cristã".
É por isso que, volta e meia, ouvimos em um
papo de bar com amigos ou lemos nas redes sociais:
o que Stanislaw Ponte Preta diria do Brasil sob Bolsonaro? Uma coisa é certa:
ele estaria mais atarefado do que nunca.
Nos seus 45 anos de vida, Sérgio Porto
jamais fugiu do trabalho. Ficcionista, jornalista, radialista, teatrólogo,
humorista, compositor, roteirista e apresentador de televisão, ele tinha sempre
um papel na máquina de escrever, só levantando os olhos dela "para passar
colírio".
Para
dar conta do governo atual, teria de inventar mais uns dez heterônimos e
multiplicar os festivais —das tolices, das asneiras, das bobagens, das
estultices, das parvoíces, das ignorâncias...
A maior diferença em relação ao passado é que o idiota de hoje faz um julgamento elevado de si mesmo, sente-se orgulhoso da própria idiotia. E as besteiras estão carregadas de maldade.
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