O Globo
‘Time
is out of joint.’ Essa frase de Hamlet me veio à cabeça quando fui questionado
num almoço sobre a guerra na Ucrânia.
Na penumbra da cozinha, tinha de falar do
tema, sem consultas ou fichas. Apenas com o pouco que aprendi. Parecia um
personagem de Harold Pinter: um andarilho que se abrigou na cozinha de um
grande restaurante, e começaram a fazer pedidos de pratos extravagantes,
enquanto ele tinha apenas um pequeno farnel.
A frase de Shakespeare equivale a dizer que
o mundo está fora do eixo. Mas não é novidade, não explica. Bertolt Brecht
disse uma vez que, no fundo, todos os artistas têm como tema esta frase: “Time
is out of joint”. Assim como no
verso de Caetano Veloso: “Alguma coisa está fora, fora da nova ordem mundial”.
As coisas corriam assim: a China ampliava
sua riqueza e influência no mundo, e os Estados Unidos viviam uma decadência.
Nada indicava que a China, no momento, quisesse algo mais do que ampliar sua
riqueza e influência no mundo.
Mas havia Putin, querendo reescrever o passado. É o movimento mais perigoso. Antigo quadro da KGB em Dresden, não se conformou com a derrocada da União Soviética.
Andei pelos países bálticos quando o
esquema ruiu. Talinn, Riga, Vilnius. Vi um prédio ocupado pela KGB ser
desocupado às pressas, com as gavetas carregadas escada abaixo. Humilhante.
Não vou divagar. Foi uma pausa para passar
o sal. Quando a União Soviética invadiu a Tchecoslováquia na década de 1960,
fui contra. O argumento era simples: o socialismo não se impõe de fora para
dentro, na ponta da baioneta.
O mesmo vale para a democracia e os
princípios liberais. Os americanos gastaram fortunas, perderam muita gente e
hoje parecem cansados de suas aventuras pelo mundo. O problema central foi
muito bem entendido por John Gray quando afirma que a política é uma arte de
acomodação de interesses diferentes, muitas vezes conflitantes.
O perigo não está apenas em reescrever o
passado, como quer Putin. Mas também naqueles que, de certa forma, negam a
política do diálogo em troca da afirmação de princípios universais.
O reconhecimento da autodeterminação dos
povos é o único caminho. Não representa concordância com o que se faz dentro de
um país. Apenas o argumento de que o motor das mudanças é interno.
Tudo isso que disse no almoço é de difícil
digestão quando se fala em política. Como atrair os jovens para o propósito de
encontrar um modus
vivendi entre posições diversas, quando o grande atrativo é
impor a justiça, os direitos, a igualdade e outros grandes princípios?
Mesmo a preservação do meio ambiente e,
consequentemente, a salvação da espécie humana, dependem de concordância. Sem
ela, vamos para o buraco, de qualquer maneira. Os princípios universais são
muito bonitos, mas, às vezes, contribuem para a arrogância ideológica, um viés
religioso que arruína os objetivos políticos.
Putin sonha apenas com a Grande Rússia, restabelecer um
passado ideal com a força das armas, nucleares se necessário.
Mas, no fundo, para chegar à sobremesa,
tudo isso representa uma das muitas tentativas de investir a política com
esperanças transcendentais numa época sem fé.
Putin as investe no passado, os americanos
as investiram nas liberdades democráticas, na construção de nações. A lista dos
que, sob pretexto de fazer política, negam seus fundamentos é bem extensa.
Se pelo menos, neste momento da História
humana, se compreendesse o perigo da sobrevivência. Os próprios cientistas
ucranianos no Painel da ONU estimularam a divulgação do mais recente e
dramático relatório sobre o aquecimento global e suas consequências. Se pelo
menos parássemos de nos matar para, juntos, contornar o perigo da morte da
própria espécie, haveria uma ponta de esperança.
Não importa quão tênue, é preciso se
agarrar a ela, ainda que, no momento, seu nome se reduza apenas a uma esperança
pela paz.
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