segunda-feira, 10 de abril de 2023

Angela Alonso* - De grão em grão

Folha de S. Paulo

Políticas de efeito lento capturam menos paixões do que contenda por símbolos

celeuma em torno da medalha é mais uma herdada do defunto governo. E não é besta, disputa quem são os heróis nacionais. Bolsonaro mostrou por A + B que símbolo pátrio não é coisa pouca.

Faz toda a diferença para uma criança comemorar a abolição na escola como graça de princesa ou obra de movimento social com lideranças negras —André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama— nas quais se mirar.

No atacadão do passado brasileiro tem de tudo, de plebeus a quase-rainhas, é conforme o lampião que se adota no presente que se iluminam (ou se ensombrecem) um ou outro personagem da mesma história nacional.

Há, assim, uma política dos símbolos, longe de irrelevante. E não é feita apenas de comendas e bandeiras. Está nos livros e nos filmes. Cada vez mais negros escrevem sobre sua experiência, a de seus antepassados e a de seus contemporâneos, diversificando os retratos da sociedade brasileira. Um exemplo notável é "Marte 1", de Gabriel Martins.

O personagem principal recusa a surrada via da ascensão social para os negros, o esporte, e se obstina em seguir uma carreira de elite, a da ciência. Disputa o futuro. Já "Malês", longa de Antônio Pitanga, disputa o passado. "Não faço um filme sobre negros vitimados", disse em entrevista. Nem busca acurácia histórica. Visa criar um panteão de heróis brasileiros negros.

A guerra simbólica importa. Mas não é o único plano no qual campeia o conflito. As políticas de governo são parte dele. As de efeito lento e resultados plenos no longo prazo capturam menos as paixões do que a contenda por símbolos, mas são atos miúdos acumulados numa direção que desenham o futuro.

É o caso da instituição de cotas para o funcionalismo público. O governo atual deu guinada radical em relação ao antecessor. Recriou a Secretaria de Igualdade Racial e pôs nela a irmã de Marielle Franco —ressaltou, assim, mais um símbolo— que montou equipe com pesquisadores, em maioria, negros.

Anielle Franco está sendo reconhecida internacionalmente, inclusive pela Time —outro espaço simbólico—, mas as ações práticas que tem deslanchado não ganharam o mesmo destaque.

E uma delas é potente porque impõe mudança dentro do Estado. Trata-se da reserva de 30% dos postos de confiança da administração pública para negros. De implementação progressiva até dezembro de 2025, significa um salto em relação aos atuais 5% de pretos e pardos que ocupam tais posições.

Se bem-sucedida, dará à máquina estatal uma feição mais parelha com o perfil demográfico dos brasileiros. A presença negra ostensiva afetará o funcionamento do próprio Estado, como afetou o das universidades, impondo o desvelamento da hierarquia racial onde ela antes operava em invisibilidade.

O impacto seria maior se englobasse todo o funcionalismo, porque os governos passam e a burocracia estatal fica. Mas é um grão, e uma grande tendência é feita de muitos grãozinhos.

A política antirracista eficaz opera simultaneamente nos dois planos, o simbólico e o das práticas. Enquanto um produz imagem nova para a sociedade tomar por espelho –goste-se ou não dele–, o outro impõe o princípio de realidade, por meio de políticas que parecem miúdas, mas que, acumuladas, consolidam uma mudança de direção.

O governo comprou a briga antirracista, mas as reações imediatas mostram o quanto o racismo está entranhado na sociedade –a ponto de muitos nem admitirem a existência do racismo. A mudança não virá fácil, nem sem briga.

*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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