Folha de S. Paulo
Políticas de efeito lento capturam menos
paixões do que contenda por símbolos
A celeuma
em torno da medalha é mais uma herdada do defunto governo. E não é
besta, disputa quem são os heróis nacionais. Bolsonaro mostrou por A + B que
símbolo pátrio não é coisa pouca.
Faz toda a diferença para uma criança
comemorar a abolição na escola como graça de princesa ou obra de movimento
social com lideranças negras —André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama—
nas quais se mirar.
No atacadão do passado brasileiro tem de
tudo, de plebeus a quase-rainhas, é conforme o lampião que se adota no presente
que se iluminam (ou se ensombrecem) um ou outro personagem da mesma história
nacional.
Há, assim, uma política dos símbolos, longe de irrelevante. E não é feita apenas de comendas e bandeiras. Está nos livros e nos filmes. Cada vez mais negros escrevem sobre sua experiência, a de seus antepassados e a de seus contemporâneos, diversificando os retratos da sociedade brasileira. Um exemplo notável é "Marte 1", de Gabriel Martins.
O personagem principal recusa a surrada via
da ascensão social para os negros, o esporte, e se obstina em seguir uma
carreira de elite, a da ciência. Disputa o futuro. Já "Malês", longa
de Antônio Pitanga, disputa o passado. "Não faço um filme sobre negros
vitimados", disse em entrevista. Nem busca acurácia histórica. Visa criar
um panteão de heróis brasileiros negros.
A guerra simbólica importa. Mas não é o
único plano no qual campeia o conflito. As políticas de governo são parte dele.
As de efeito lento e resultados plenos no longo prazo capturam menos as paixões
do que a contenda por símbolos, mas são atos miúdos acumulados numa direção que
desenham o futuro.
É o caso da instituição de cotas para o
funcionalismo público. O governo atual deu guinada radical em relação ao
antecessor. Recriou a Secretaria de Igualdade Racial e pôs nela a irmã de Marielle
Franco —ressaltou, assim, mais um símbolo— que montou equipe com
pesquisadores, em maioria, negros.
Anielle
Franco está sendo reconhecida internacionalmente, inclusive pela Time
—outro espaço simbólico—, mas as ações práticas que tem deslanchado não
ganharam o mesmo destaque.
E uma delas é potente porque impõe mudança
dentro do Estado. Trata-se da reserva
de 30% dos postos de confiança da administração pública para negros. De
implementação progressiva até dezembro de 2025, significa um salto em relação
aos atuais 5% de pretos e pardos que ocupam tais posições.
Se bem-sucedida, dará à máquina estatal uma
feição mais parelha com o perfil demográfico dos brasileiros. A presença negra
ostensiva afetará o funcionamento do próprio Estado, como afetou o das
universidades, impondo o desvelamento da hierarquia racial onde ela antes
operava em invisibilidade.
O impacto seria maior se englobasse todo o
funcionalismo, porque os governos passam e a burocracia estatal fica. Mas é um
grão, e uma grande tendência é feita de muitos grãozinhos.
A política antirracista eficaz opera
simultaneamente nos dois planos, o simbólico e o das práticas. Enquanto um
produz imagem nova para a sociedade tomar por espelho –goste-se ou não dele–, o
outro impõe o princípio de realidade, por meio de políticas que parecem miúdas,
mas que, acumuladas, consolidam uma mudança de direção.
O governo comprou a briga antirracista, mas
as reações imediatas mostram o quanto o racismo está
entranhado na sociedade –a ponto de muitos nem admitirem a existência do
racismo. A mudança não virá fácil, nem sem briga.
*Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
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