O Globo
É preciso aumentar a conexão do Bolsa
Família com outras políticas sociais
Chegamos aos cem dias. O horizonte
democrático reestabelecido, ainda que em estado de alerta. O cenário de
crescimento econômico, redução das desigualdades e desenvolvimento sustentável
com expectativas difusas. O caminho de redução da pobreza traçado. Muito a
fazer, mas em rota. Nesta frente, o novo Bolsa Família inaugura uma importante
inflexão em relação a sua deturpada versão, o Auxílio Brasil.
Não obstante várias pesquisas indicassem a
necessidade destes ajustes, o programa retoma as condicionalidades de saúde e
educação, aumenta o adicional por criança e atualiza o valor do benefício com
base no número de integrantes da família. Estamos de volta ao prumo, mas a
maratona é longa, partimos atrasados e precisamos recuperar o tempo perdido em
direção a um novo arranjo social que acelere a redução da pobreza no Brasil
para 55 milhões de beneficiários.
Isso só será possível, em parte, à medida que as famílias adquiram condições de gerar renda a partir do trabalho. Temos evidências de que é possível fazer isso. Por exemplo, estudo publicado neste ano pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) acompanhou uma geração de crianças beneficiadas pelo programa e mostrou que a maioria deixou de depender dele na vida adulta, com alguma mobilidade social. Em outro artigo, do Banco Mundial, Gerard e coautores mostraram em 2021 que a expansão do programa aumentou o emprego formal, ao contrário do que temiam alguns críticos.
Há, no entanto, diferenças relevantes hoje
em relação ao início da implantação do Bolsa Família. Caso persista a tendência
de crescimento da desigualdade verificada nos últimos anos, os mais pobres
podem ser estruturalmente excluídos dos benefícios do crescimento econômico,
que não está restrito somente à renda, mas também à formação de capital humano
e à garantia de seu direito a serviços públicos de qualidade.
Fugir desta armadilha requer aprimorar o
novo Bolsa Família, bem como ajustar as alavancas que garantirão a ascensão
social de forma sustentada e acelerada da população mais pobre. Isso implica
aliviar a pobreza a partir da transferência de renda no curto prazo e,
fortalecida pelas condicionalidades e pela inclusão produtiva, promover no
longo prazo a mobilidade intergeracional da população atendida.
O desafio da gestão do médio prazo para
enfrentamento estrutural da exclusão e desigualdade, que não cabe ao Bolsa
Família, requer uma série de inovações e aprimoramentos normativos,
programáticos e instrumentais. No campo normativo, por exemplo, a construção de
um Marco de Qualificações permitirá que a certificação dos saberes não se
restrinja à educação formal, mas inclua também as habilidades desenvolvidas
pela prática profissional.
Trata-se de mecanismo adotado com sucesso
na Austrália, no Reino Unido, na União Europeia, no Chile, entre outros. Essa
inovação normativa dialoga mais adequadamente com as realidades dinâmicas do
mundo do trabalho e da educação, oferecendo aos não concluintes de seus estudos
formais (que não querem ou podem retomá-los) certificados formalmente
reconhecidos e valorados pelos empregadores.
No campo programático, de pouco adiantará
que os beneficiários do Bolsa Família sejam referenciados para outras políticas
sociais se estas não estiverem disponíveis ou forem de baixa qualidade — temos
que nos dedicar a produzir excelência e alta qualidade na área social. Além
disso, a política econômica não pode impor um quadro perene de baixo
crescimento. Urge, pois, garantir qualidade elevada e efetiva dos serviços da
própria assistência social, mas também das políticas de educação, saúde,
trabalho e emprego etc.
Em termos instrumentais, o que compete à
política de desenvolvimento social nesse esforço multissetorial é aprimorar o
CadÚnico, mantendo-o atualizado e facilmente integrável a outros órgãos
públicos. Ao governo federal, por sua vez, impõe tornar o Cadastro o
instrumento central dessa integração, explorando, como nunca, a capacidade de
conectar beneficiários a programas e equipamentos sociais. Essa mudança
solicita uma abordagem intersetorial e integrada das políticas públicas,
orientada pela ótica virtuosa de aumento da probabilidade de mobilidade social
dos mais vulneráveis.
O Bolsa Família é, reconhecidamente, um
programa eficaz e eficiente no que se propõe. Mas, para avançar na redução da
pobreza de forma sustentada, precisaremos aumentar sua conexão com outras
políticas sociais, investir na qualidade da oferta dessas políticas e
estabelecer uma política econômica sensível à criação de oportunidades e
garantia de direitos aos mais pobres.
*Ricardo Henriques, economista, é superintendente-executivo do Instituto Unibanco e professor associado da Fundação Dom Cabral
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