segunda-feira, 10 de abril de 2023

Ricardo Henriques* - Redução sustentável da pobreza no Brasil

O Globo

É preciso aumentar a conexão do Bolsa Família com outras políticas sociais

Chegamos aos cem dias. O horizonte democrático reestabelecido, ainda que em estado de alerta. O cenário de crescimento econômico, redução das desigualdades e desenvolvimento sustentável com expectativas difusas. O caminho de redução da pobreza traçado. Muito a fazer, mas em rota. Nesta frente, o novo Bolsa Família inaugura uma importante inflexão em relação a sua deturpada versão, o Auxílio Brasil.

Não obstante várias pesquisas indicassem a necessidade destes ajustes, o programa retoma as condicionalidades de saúde e educação, aumenta o adicional por criança e atualiza o valor do benefício com base no número de integrantes da família. Estamos de volta ao prumo, mas a maratona é longa, partimos atrasados e precisamos recuperar o tempo perdido em direção a um novo arranjo social que acelere a redução da pobreza no Brasil para 55 milhões de beneficiários.

Isso só será possível, em parte, à medida que as famílias adquiram condições de gerar renda a partir do trabalho. Temos evidências de que é possível fazer isso. Por exemplo, estudo publicado neste ano pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) acompanhou uma geração de crianças beneficiadas pelo programa e mostrou que a maioria deixou de depender dele na vida adulta, com alguma mobilidade social. Em outro artigo, do Banco Mundial, Gerard e coautores mostraram em 2021 que a expansão do programa aumentou o emprego formal, ao contrário do que temiam alguns críticos.

Há, no entanto, diferenças relevantes hoje em relação ao início da implantação do Bolsa Família. Caso persista a tendência de crescimento da desigualdade verificada nos últimos anos, os mais pobres podem ser estruturalmente excluídos dos benefícios do crescimento econômico, que não está restrito somente à renda, mas também à formação de capital humano e à garantia de seu direito a serviços públicos de qualidade.

Fugir desta armadilha requer aprimorar o novo Bolsa Família, bem como ajustar as alavancas que garantirão a ascensão social de forma sustentada e acelerada da população mais pobre. Isso implica aliviar a pobreza a partir da transferência de renda no curto prazo e, fortalecida pelas condicionalidades e pela inclusão produtiva, promover no longo prazo a mobilidade intergeracional da população atendida.

O desafio da gestão do médio prazo para enfrentamento estrutural da exclusão e desigualdade, que não cabe ao Bolsa Família, requer uma série de inovações e aprimoramentos normativos, programáticos e instrumentais. No campo normativo, por exemplo, a construção de um Marco de Qualificações permitirá que a certificação dos saberes não se restrinja à educação formal, mas inclua também as habilidades desenvolvidas pela prática profissional.

Trata-se de mecanismo adotado com sucesso na Austrália, no Reino Unido, na União Europeia, no Chile, entre outros. Essa inovação normativa dialoga mais adequadamente com as realidades dinâmicas do mundo do trabalho e da educação, oferecendo aos não concluintes de seus estudos formais (que não querem ou podem retomá-los) certificados formalmente reconhecidos e valorados pelos empregadores.

No campo programático, de pouco adiantará que os beneficiários do Bolsa Família sejam referenciados para outras políticas sociais se estas não estiverem disponíveis ou forem de baixa qualidade — temos que nos dedicar a produzir excelência e alta qualidade na área social. Além disso, a política econômica não pode impor um quadro perene de baixo crescimento. Urge, pois, garantir qualidade elevada e efetiva dos serviços da própria assistência social, mas também das políticas de educação, saúde, trabalho e emprego etc.

Em termos instrumentais, o que compete à política de desenvolvimento social nesse esforço multissetorial é aprimorar o CadÚnico, mantendo-o atualizado e facilmente integrável a outros órgãos públicos. Ao governo federal, por sua vez, impõe tornar o Cadastro o instrumento central dessa integração, explorando, como nunca, a capacidade de conectar beneficiários a programas e equipamentos sociais. Essa mudança solicita uma abordagem intersetorial e integrada das políticas públicas, orientada pela ótica virtuosa de aumento da probabilidade de mobilidade social dos mais vulneráveis.

O Bolsa Família é, reconhecidamente, um programa eficaz e eficiente no que se propõe. Mas, para avançar na redução da pobreza de forma sustentada, precisaremos aumentar sua conexão com outras políticas sociais, investir na qualidade da oferta dessas políticas e estabelecer uma política econômica sensível à criação de oportunidades e garantia de direitos aos mais pobres.

*Ricardo Henriques, economista, é superintendente-executivo do Instituto Unibanco e professor associado da Fundação Dom Cabral

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