O Estado de S. Paulo
Apesar dos seus cem dias, o novo governo ainda não disse a que veio, e já procura responsabilizar o ‘outro’ pelos seus malfeitos
Bolsonaro tem o seu duplo na figura do
presidente Lula, ambos obcecados por encontrarem um inimigo que explique os
seus fracassos e suas respectivas incapacidades de governarem para além de suas
perpétuas campanhas eleitorais. Não importa, a este efeito, que o inimigo seja
real ou imaginário, o que conta é que ele se imponha à percepção dos cidadãos
que, então, se encontram ludibriados. As redes sociais, em particular,
prestam-se muito bem a esse tipo de objetivo.
Tirante essa mesma matriz comum, de cunho autoritário, baseada na ideia da exclusão e da desconsideração do outro, em que qualquer opinião divergente deve ser silenciada, o primeiro escolheu entre os seus alvos a destruição das instituições democráticas, o aviltamento de qualquer opositor, enquanto o segundo tem mais propriamente um espírito anticapitalista, antieconomia de mercado, temperado por uma extrema complacência em relação à corrupção, sobretudo a de seus camaradas.
É bem verdade que o presidente Lula foi
muito favorecido pela frustrada tentativa dos bolsonaristas de, tardiamente,
tentarem incitar militares para sua empreitada do dia 8 de janeiro, embora os
militares constitucionalistas já tivessem abortado qualquer ensaio golpista
semanas antes. Naquele dia, de fato, presenciamos uma espécie de ressaca do
golpe, sem nenhuma chance de sucesso. Contudo, o atual presidente bem
aproveitou a oportunidade para se colocar a favor da democracia, apesar de ter
confundido a instituição militar com alguns militares de tendência golpista. De
qualquer maneira, no embate das narrativas, Lula saiu como defensor da
democracia e Bolsonaro, como o seu algoz.
Entretanto, Lula e o PT não souberam colher
os frutos dessa oportunidade única, partindo para uma luta incessante contra os
inimigos que estariam sabotando o seu projeto – se é que projeto há, pois o
candidato petista foi eleito por uma exígua margem, além de ter contado com o
apoio de uma expressiva parcela de seu eleitorado que disse não ao
bolsonarismo, sem que isso signifique um sim ao petismo. Partiram de um
diagnóstico político equivocado.
Há, aqui, uma espécie de justificativa
ideológica, que teria a função de antecipar um possível fracasso futuro.
Considerando que o novo governo, apesar dos seus cem dias, não disse ainda a
que veio, incapaz de equilibrar as finanças públicas, não apresentando um plano
crível de melhoria das condições econômicas, fiscais e financeiras da sociedade
e do Estado, ele já procura responsabilizar o outro pelos seus malfeitos.
Foram sucessivas figuras do inimigo que se
foram apresentando, segundo o sabor da conjuntura e das conveniências
políticas. Entre outras, foi a Operação Lava Jato e, em particular, o ex-juiz e
agora senador Sérgio Moro, escolhido como alvo preferencial. Não se pode
confundir eventuais erros formais de julgamento com absolvição, inocência ou,
ainda pior, com atestado de idoneidade moral do PT. A corrupção, sim, existiu,
as provas são fartas, dinheiro foi ressarcido aos cofres públicos e o mensalão
e o petrolão são os seus símbolos. À custa de brigar com a realidade, esses
ideólogos procuram apagar a história, como se fatos pudessem ser, simplesmente,
considerados como não existentes. Ademais, Lula ainda arguiu recentemente que
essa operação estava em conluio com autoridades dos EUA, a fim de prejudicar as
empreiteiras brasileiras.
Outra figura que merece ser destacada é a
do ex-presidente Michel Temer, elaborando o partido a estapafúrdia narrativa de
que o impeachment teria sido um “golpe”, quando nada mais foi do que a
aplicação de um dispositivo constitucional, seguindo todas as regras previstas.
A mentira procura apresentar-se travestida de verdade. Todavia, mais
interessante ainda é que o ex-presidente Temer personifica para eles uma
economia de mercado, preocupado com a modernização das relações sociais e
trabalhistas. Eis por que o alvo foi a reforma trabalhista, que alterou uma
arcaica legislação, colocando-a em diapasão com o espírito dos novos tempos. E
imediatamente após a Lei do Teto de Gastos.
Segundo essa mesma narrativa de cunho
anticapitalista, procuram Lula e o PT minar os alicerces de uma economia de
livre mercado, escolhendo como alvo o presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto. Em sua peculiar linguagem, alheia à realidade, Lula procura
desresponsabilizar-se do que faz, afirmando que todo gasto seria
“investimento”, como se num passe de mágica todos os problemas do País pudessem
ser resolvidos. As palavras perdem o seu significado. Como se não bastasse,
numa de suas primeiras medidas, o novo governo conseguiu aprovar uma Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) corretamente denominada “da gastança”, enquanto
agora procura, sem muito êxito, atenuar as suas consequências mais nefastas.
Num típico procedimento petista, procura-se
apenas aumentar as receitas, sem nenhuma avaliação ou redução dos gastos, como
se estes estivessem por si sós justificados. O inimigo torna-se, assim, o
espírito do capitalismo.
*É professor de Filosofia na Ufrgs.
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