O Globo
Terminei a semana mais convencido de que
não somos superiores às outras formas de vida
Este artigo foi sacudido pelos
acontecimentos de Blumenau: um homem de 25 anos matando quatro crianças a
machadadas.
No entanto ele começava suave, com
lembranças de Dona Vanna, da Livraria Leonardo da Vinci, no Rio. Ela viajava
sempre e trazia novos livros. Numa das últimas viagens, trouxe, entre outros,
um que me interessou pelo título e pela capa: “Android Epistemology”. É uma
reflexão teórica sobre as máquinas pensantes, e a capa colorida mostrava alguns
recortes da figura humana, entrelaçados por fios coloridos. Nem todos os
artigos são acessíveis a um leigo como eu. Destaquei algumas frases de um deles
e pensava em trabalhar com ela:
— A oposição à teoria dos androides é uma das últimas resistências à demolição científica da ideia da condição única e especial dos humanos e de sua posição no Universo.
Coincidência, pensei. A ecologia que estudo
há alguns anos também coloca em xeque o antropocentrismo, a suposição da
superioridade humana sobre outras espécies. Os seres humanos não são os únicos
para quem o mundo existe. No passado, essa ideia era tão forte que, segundo
ela, o cocô de cavalo não tem cheiro desagradável porque o animal foi desenhado
por Deus para acompanhar os humanos.
O livro trazido por Dona Vanna tinha uma
sátira aos humanos, produzida por uma civilização de máquinas que visitava a
Terra. Elas se perguntavam por que somos tão violentos. E a resposta era porque
toda a nossa evolução foi feita a ferro e fogo, com garras e dentes. E por que
éramos tão perigosos? Somos mortais e, por causa disso, temos pouco a perder.
Estava juntando algumas ideias para tentar
responder a um amigo que me disse que o mundo estava virado. E está sim. Um
sociólogo que morreu em 2015, Ulrich Beck, dizia que o mundo vivia uma
metamorfose, algo diferente de uma revolução, que é intencional. Vivemos
consequências descontroladas da modernização. O país não é mais referência,
porque o mundo está interligado, classes sociais não nos explicam mais, mas
classes de risco diante das ameaças das mudanças climáticas.
Neste mundo de pernas pro ar, creio que o
meio ambiente e o avanço do meio digital de uma certa maneira acabarão por nos
dar uma outra e mais modesta dimensão do humano.
Nada neste artigo poderia explicar o fato
de que um homem matou crianças a machadadas em Blumenau. A globalização,
diferente do colonialismo, que se justifica pela suposta inferioridade do
colonizado, tem pelo menos um horizonte normativo: os direitos humanos.
Mas um crime dessa natureza também nos
obriga a reexaminar o que é o humano. Sou plenamente favorável às restrições
que a imprensa adotou na cobertura de casos como esse. No entanto sou favorável
à discreta busca do conhecimento. Na década de 1970, creio, o FBI (a Polícia
Federal dos Estados Unidos) criou um grupo especial para fazer longas
entrevistas com criminosos em série. Como funcionavam essas mentes, que
gatilhos acionam sua violência extrema? Foi por meio das pesquisas atuais sobre
a influência de contágio de crimes espetaculares que a imprensa se inspirou
para mudar seu comportamento diante deles.
Não sei precisamente a que levaria um
esforço redobrado de conhecimento do tipo de mente criminosa que ataca crianças
em escolas. Já tivemos um caso em Minas; outro em Saudades, Santa Catarina; e
este em Blumenau. Minha esperança é que saiam algumas indicações para uma
política preventiva.
Teremos 50 policiais vigiando redes
sociais, mas precisam ser alimentados por informação adequada. Nem sempre poderão
contar com bons indícios.
Terminei a semana mais convencido de que
não somos superiores às outras formas de vida e, agora, com o livro que Dona
Vanna trouxe, nem de que somos também os mais inteligentes.
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