segunda-feira, 10 de abril de 2023

Entrevista | André Singer: ‘Lula precisa reconquistar o que já foi a ‘nova classe C’

Ex-porta-voz do petista diz que ele precisa investir nos que têm renda familiar de dois a cinco salários mínimos, vê uma urgência por resultados na atual gestão e avalia que Bolsonaro se isolou após 8 de janeiro

Por Bernardo Mello e Thiago Prado / O Globo

Porta-voz da Presidência no primeiro governo Lula (2003-2007) e hoje professor visitante no King’s College London, o cientista político André Singer analisou, em artigo na revista “New Left Review” após os ataques de 8 de janeiro, que o petista “assumiu a responsabilidade de abrir novas perspectivas para os de baixo” em seu terceiro mandato, sob risco de um “refluxo autocrático” capitaneado por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao GLOBO, Singer observa uma “urgência por resultados” na atual gestão, que faz cem dias amanhã, devido aos riscos de ruptura democrática.

Primeiro a usar o conceito de “lulismo” para descrever o crescimento do petista entre os mais pobres com a expansão de programas sociais, Singer afirma que Bolsonaro perdeu a oportunidade de tentar uma guinada semelhante. Autor de “O lulismo em crise” (Cia. das Letras, 2018) e co-autor de “Estado e democracia” (Zahar, 2021) e “O Brasil no inferno global: capitalismo e democracia fora dos trilhos” (FFLCH, 2022), ele chama atenção ainda para o estrato acima dos mais pobres e abaixo da classe média, que se mostrou poroso aos “soldadores ideológicos” bolsonaristas.

Em seu artigo, o senhor nota a força de Bolsonaro na faixa de dois a cinco salários mínimos de renda familiar, que inclui o que se chamou de “nova classe C” no governo Lula. Por que esse público se afastou do PT desde 2018?

Uma das minhas hipóteses é que dois grupos específicos, os evangélicos e os militares, funcionaram como “soldadores ideológicos” do bloco bolsonarista. Criaram uma ideologia que pode estar dialogando com esse setor (de dois a cinco salários), considerando que há no Brasil um problema grave de segurança pública e que o fundamentalismo evangélico diz que, se você se esforçar, vai melhorar. No realinhamento de 2006, o lulismo passou a ser a opção dos mais pobres, mas esse grupo que estou citando é intermediário. O Bolsa Família, por exemplo, não é para eles.

Então a nova virada do lulismo passa por reconquistar essa faixa salarial?

Lula precisa manter o desempenho na faixa até dois salários mínimos de renda familiar e melhorar no grupo de dois a cinco salários, onde Bolsonaro teve nove pontos a mais do que o petista na última pesquisa Datafolha antes da eleição (52% a 43%). Essa é a chave da distribuição política e eleitoral do Brasil. Vale destacar que não é possível saber quantas pessoas daquela nova classe C, que eu chamei à época de nova massa trabalhadora, continuam fazendo parte desse grupo. Quando se fala em camadas populares, isso tende a ser muito oscilante. É preciso gerar emprego e renda, porque a questão material tende a prevalecer no Brasil em relação a questões de ordem moral e dos costumes, cujo papel é diferente em países com situação geral de renda e bem-estar mais consolidados.

Além do peso desta agenda econômica, há algum aceno específico que Lula pode fazer para ampliar sua entrada entre os “soldadores evangélicos e militares"?

O núcleo mais ideologicamente organizado tende a ficar onde está. Parte dos evangélicos adotou uma agenda semelhante à que se vê nos Estados Unidos, de querer um país cristão, o que ameaça uma base fundamental do Estado brasileiro, a laicidade. Quanto aos militares, tende a haver uma forte influência do bolsonarismo nesse grupo, que é também muito numeroso e capilarizado. Muitos, da ativa e da reserva, optaram por participar de um governo de extrema-direita. A questão militar é muito importante e difícil, mas precisa ser enfrentada não no sentido de se combatê-la politicamente, e sim de como equacioná-la com a defesa da democracia. Os indivíduos na reserva têm direito de ter suas opiniões e participar da cena política, desde que não comprometam as corporações.

E como Bolsonaro conquistou votos nesse público?

Em 2018, houve uma reação geral do eleitorado contra a política, e Bolsonaro foi visto como um sujeito fora do sistema, embora não fosse. Precisamos entender 2022 de outra forma, e a hipótese que articulei foi que, através desses soldadores que citei, ele configurou um bloco ainda mais sólido. Também temos que considerar que Bolsonaro produziu um ciclo de negócios eleitoral, injetando bilhões na economia visando um efeito direto nos meses em que o eleitor tomaria sua decisão. Houve ainda medidas micro, como voucher para taxistas, caminhoneiros e uma série de apoios para pessoas tipicamente desse estrato que vai de dois a cinco salários mínimos.

Mesmo assim, não foi suficiente para vencer...

Na teoria do comportamento eleitoral, o fenômeno é conhecido como “efeito vingança”. Ele teve uma chance na pandemia com o auxílio emergencial de R$ 600 para os pobres. Só que retirou o benefício no pior momento, em 2021. Minha hipótese é que esse eleitor não o perdoou, porque a pobreza subiu muito depois.

A dificuldade de lidar com o tema da corrupção é um problema para o PT reconquistar certos eleitores?

É provável que a questão da corrupção seja ideologicamente importante para os que votaram no Bolsonaro. É um tema que também funciona como uma espécie de racionalizador, isto é, se a situação da pessoa piora, ela tende a culpar a corrupção. Não enxergo como algo absoluto.

Diante da polarização, é inviável um cenário de 80% de aprovação, como Lula obteve em 2010?

Sim, há uma mudança de cenário. No Brasil de 2010 não havia essa tremenda divisão, o que tornava possível uma grande aprovação ou desaprovação.

Esse é o elemento principal que diferencia o Lula do terceiro mandato com o dos primeiro e segundo governos?

Muitas coisas mudaram de 2003 para cá, uma delas é a existência de uma ameaça à democracia. Isto gera uma espécie de urgência por resultados, que não havia nos dois primeiros mandatos de Lula.

Como avalia os ataques do dia 8 de janeiro?

Cito o colunista Ross Douthat, do New York Times, para quem os ataques no Brasil foram uma espécie de show, uma tentativa de imitar os trumpistas. Eu digo que até teve esse caráter, mas foi mais grave. Se há pessoas querendo ser trumpistas, e que têm Bolsonaro como intermediário para isso, estamos diante de um fenômeno novo, capaz de um ato de selvageria a ponto de arrebentar os prédios mais importantes do sistema político brasileiro. O recado deixado é que o bolsonarismo não pode ser considerado parte normal do jogo democrático. Ele é um líder que usa o radicalismo como estratégia. Mas também joga dentro das instituições, por exemplo, disputando eleições. Isso precisa ser interrompido.

Quem pode suceder Bolsonaro no campo da direita?

Creio que não existe o nome ainda. Bolsonaro possui uma capacidade de comunicação popular. Não vejo isso em figuras como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema.

A esquerda também tem esse problema...

Sem dúvida. Lula se consolidou como uma grande liderança popular.

Mesmo sem sucessores claros, acha que a polarização veio para ficar?

Sim, tende a ficar essa bipolaridade no horizonte. E com pouco espaço para o centro.

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