Ex-porta-voz do petista diz que ele precisa investir nos que têm renda familiar de dois a cinco salários mínimos, vê uma urgência por resultados na atual gestão e avalia que Bolsonaro se isolou após 8 de janeiro
Por Bernardo Mello e Thiago Prado / O
Globo
Porta-voz da Presidência no primeiro
governo Lula (2003-2007) e hoje professor visitante no King’s College London, o
cientista político André Singer analisou, em artigo na revista “New Left
Review” após os ataques de 8 de janeiro, que o petista “assumiu a
responsabilidade de abrir novas perspectivas para os de baixo” em seu terceiro
mandato, sob risco de um “refluxo autocrático” capitaneado por apoiadores do
ex-presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao GLOBO, Singer observa uma
“urgência por resultados” na atual gestão, que faz cem dias amanhã, devido aos
riscos de ruptura democrática.
Primeiro a usar o conceito de “lulismo”
para descrever o crescimento do petista entre os mais pobres com a expansão de
programas sociais, Singer afirma que Bolsonaro perdeu a oportunidade de tentar
uma guinada semelhante. Autor de “O lulismo em crise” (Cia. das Letras, 2018) e
co-autor de “Estado e democracia” (Zahar, 2021) e “O Brasil no inferno global:
capitalismo e democracia fora dos trilhos” (FFLCH, 2022), ele chama atenção
ainda para o estrato acima dos mais pobres e abaixo da classe média, que se
mostrou poroso aos “soldadores ideológicos” bolsonaristas.
Em seu artigo, o senhor nota a força de
Bolsonaro na faixa de dois a cinco salários mínimos de renda familiar, que
inclui o que se chamou de “nova classe C” no governo Lula. Por que esse público
se afastou do PT desde 2018?
Uma das minhas hipóteses é que dois grupos específicos, os evangélicos e os militares, funcionaram como “soldadores ideológicos” do bloco bolsonarista. Criaram uma ideologia que pode estar dialogando com esse setor (de dois a cinco salários), considerando que há no Brasil um problema grave de segurança pública e que o fundamentalismo evangélico diz que, se você se esforçar, vai melhorar. No realinhamento de 2006, o lulismo passou a ser a opção dos mais pobres, mas esse grupo que estou citando é intermediário. O Bolsa Família, por exemplo, não é para eles.
Então a nova virada do lulismo passa por
reconquistar essa faixa salarial?
Lula precisa manter o desempenho na faixa
até dois salários mínimos de renda familiar e melhorar no grupo de dois a cinco
salários, onde Bolsonaro teve nove pontos a mais do que o petista na última
pesquisa Datafolha antes da eleição (52% a 43%). Essa é a chave da distribuição
política e eleitoral do Brasil. Vale destacar que não é possível saber quantas
pessoas daquela nova classe C, que eu chamei à época de nova massa
trabalhadora, continuam fazendo parte desse grupo. Quando se fala em camadas
populares, isso tende a ser muito oscilante. É preciso gerar emprego e renda,
porque a questão material tende a prevalecer no Brasil em relação a questões de
ordem moral e dos costumes, cujo papel é diferente em países com situação geral
de renda e bem-estar mais consolidados.
Além do peso desta agenda econômica, há
algum aceno específico que Lula pode fazer para ampliar sua entrada entre os
“soldadores evangélicos e militares"?
O núcleo mais ideologicamente organizado
tende a ficar onde está. Parte dos evangélicos adotou uma agenda semelhante à
que se vê nos Estados Unidos, de querer um país cristão, o que ameaça uma base
fundamental do Estado brasileiro, a laicidade. Quanto aos militares, tende a
haver uma forte influência do bolsonarismo nesse grupo, que é também muito
numeroso e capilarizado. Muitos, da ativa e da reserva, optaram por participar
de um governo de extrema-direita. A questão militar é muito importante e
difícil, mas precisa ser enfrentada não no sentido de se combatê-la politicamente,
e sim de como equacioná-la com a defesa da democracia. Os indivíduos na reserva
têm direito de ter suas opiniões e participar da cena política, desde que não
comprometam as corporações.
E como Bolsonaro conquistou votos nesse
público?
Em 2018, houve uma reação geral do
eleitorado contra a política, e Bolsonaro foi visto como um sujeito fora do
sistema, embora não fosse. Precisamos entender 2022 de outra forma, e a
hipótese que articulei foi que, através desses soldadores que citei, ele
configurou um bloco ainda mais sólido. Também temos que considerar que
Bolsonaro produziu um ciclo de negócios eleitoral, injetando bilhões na
economia visando um efeito direto nos meses em que o eleitor tomaria sua
decisão. Houve ainda medidas micro, como voucher para taxistas, caminhoneiros e
uma série de apoios para pessoas tipicamente desse estrato que vai de dois a
cinco salários mínimos.
Mesmo assim, não foi suficiente para
vencer...
Na teoria do comportamento eleitoral, o
fenômeno é conhecido como “efeito vingança”. Ele teve uma chance na pandemia
com o auxílio emergencial de R$ 600 para os pobres. Só que retirou o benefício
no pior momento, em 2021. Minha hipótese é que esse eleitor não o perdoou,
porque a pobreza subiu muito depois.
A dificuldade de lidar com o tema da
corrupção é um problema para o PT reconquistar certos eleitores?
É provável que a questão da corrupção seja
ideologicamente importante para os que votaram no Bolsonaro. É um tema que
também funciona como uma espécie de racionalizador, isto é, se a situação da
pessoa piora, ela tende a culpar a corrupção. Não enxergo como algo absoluto.
Diante da polarização, é inviável um
cenário de 80% de aprovação, como Lula obteve em 2010?
Sim, há uma mudança de cenário. No Brasil
de 2010 não havia essa tremenda divisão, o que tornava possível uma grande
aprovação ou desaprovação.
Esse é o elemento principal que diferencia
o Lula do terceiro mandato com o dos primeiro e segundo governos?
Muitas coisas mudaram de 2003 para cá, uma
delas é a existência de uma ameaça à democracia. Isto gera uma espécie de
urgência por resultados, que não havia nos dois primeiros mandatos de Lula.
Como avalia os ataques do dia 8 de janeiro?
Cito o colunista Ross Douthat, do New York
Times, para quem os ataques no Brasil foram uma espécie de show, uma tentativa
de imitar os trumpistas. Eu digo que até teve esse caráter, mas foi mais grave.
Se há pessoas querendo ser trumpistas, e que têm Bolsonaro como intermediário
para isso, estamos diante de um fenômeno novo, capaz de um ato de selvageria a
ponto de arrebentar os prédios mais importantes do sistema político brasileiro.
O recado deixado é que o bolsonarismo não pode ser considerado parte normal do
jogo democrático. Ele é um líder que usa o radicalismo como estratégia. Mas
também joga dentro das instituições, por exemplo, disputando eleições. Isso
precisa ser interrompido.
Quem pode suceder Bolsonaro no campo da
direita?
Creio que não existe o nome ainda.
Bolsonaro possui uma capacidade de comunicação popular. Não vejo isso em
figuras como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema.
A esquerda também tem esse problema...
Sem dúvida. Lula se consolidou como uma
grande liderança popular.
Mesmo sem sucessores claros, acha que a
polarização veio para ficar?
Sim, tende a ficar essa bipolaridade no horizonte. E com pouco espaço para o centro.
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