terça-feira, 18 de abril de 2023

José Alvaro Moisés - Um novo olhar sobre a Democracia

Em 11 de setembro de 2023 se completarão 50 anos do golpe de Estado que derrubou o governo de Salvador Allende do Chile. Esta coletânea reúne doze textos com o objetivo de reavaliar criticamente, meio século depois de sua trágica derrota, o significado do que ficou conhecido como a “experiência chilena”, uma tentativa inédita e única – feita em condições consideradas muito excepcionais –, de abrir caminho para a construção do socialismo a partir das virtudes do funcionamento da democracia. Nada semelhante tinha se verificado antes na história mundial, razão pela qual a “experiência chilena” converteu-se em objeto de amplo e generalizado interesse dos atores políticos que no contexto da Guerra Fria disputavam o poder em suas sociedades, especialmente das diferentes forças de esquerda.

Do ponto de vista comparativo, o Chile vinha sendo palco há décadas de uma das mais estáveis democracias no continente latino-americano, operando com base em instituições republicanas cuidadosamente consolidadas em períodos históricos anteriores. Esse quadro tinha dado oportunidade para o avanço da mobilização das forças populares e foi nesse contexto que Allende, um dos líderes e fundador do Partido Socialista chileno (PS), elegeu-se presidente – embora com uma precária maioria de pouco mais de um terço de votos –, e comprometeu-se a tornar realidade o complexo programa da Unidade Popular (UP), uma coalizão política que reunia, além do PS, o Partido Comunista, os Radicais, a Social Democracia e outros segmentos como os cristãos de esquerda; o programa da coalizão previa, entre outras coisas, o aprofundamento da reforma agrária iniciada pela Democracia Cristã, a nacionalização de empresas privadas, entre as quais algumas norte-americanas, e o efetivo empoderamento dos setores mobilizados por movimentos sociais de perfil bastante combativo. O projeto assegurava papel central para o Estado em todo o processo de mudanças propostas e o governo da UP era visto como o ponto de partida disso.

Allende defendia enfática e quase solitariamente a proposta de que era possível avançar na direção da construção do socialismo com base na efetividade dos meios democráticos e nesse sentido se chocava, não apenas com os setores da direita conservadora e dos liberais que se opunham radicalmente à proposta, mas também com diferentes segmentos de esquerda que viam na sua tentativa um desvio inconsequente, de natureza reformista; esses segmentos, embora tenham ganhado mais protagonismo político a partir da conjuntura política aberta com a eleição da UP em 1970, pretendiam radicalizar o processo para além da via democrática com o objetivo de criar as condições revolucionárias que, segundo sustentavam, deveriam ser mais capazes de tornar efetiva a construção do socialismo.

A divisão das forças de esquerda que debilitava a Unidade Popular começava por segmentos do próprio partido do presidente, o PS, mas envolvia também a Ação Popular Independente, o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e principalmente o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). A contestação desses setores focava principalmente a estratégia geral de Allende que, em que pese argumentar que a transição para o socialismo devia se fazer no quadro das garantias democráticas, sustentava a tese de que o avanço do processo levaria por si só à transformação do Estado e à sua submissão ao poder popular. Havia, contudo, algo de contraditório nessa formulação, pois fundado na legalidade democrática o Estado nacional era referência política de diferentes classes sociais, embora fosse visto pelo líder da UP, ao mesmo tempo, como propulsor de transformações que deveriam colocar um ator específico na condição de protagonista principal da dinâmica política, os setores populares. A expectativa era que os setores de classe média aceitassem os resultados desse processo que deveria ocorrer nos marcos da política democrática, mas pouco se dizia sobre a reação dos setores empresariais e dos proprietários de terra.

Allende não chegou a dar detalhes mais concretos sobre como concebia o processo pelo qual o funcionamento da democracia facilitaria a mudança do Estado em uma direção revolucionária que, além de assumir funções primordiais no campo econômico, deveria tornar efetivo o poder dos setores populares, dando-lhes centralidade no processo de tomada de decisões. Nesse sentido, pode-se especular – levando em conta algumas declarações mencionadas em capítulos desta coletânea – que o líder da UP pensasse que as garantias democráticas – asseguradas as condições de atuação dos diferentes partidos políticos e a preservação do papel do parlamento –, fossem suficientes para garantir que as transformações das estruturas de poder e do tecido social ocorressem em condições que preservassem, ao mesmo tempo, as liberdades democráticas e produzissem as mudanças revolucionárias esperadas pela coalizão de forças de esquerda. Ao que parece os esclarecimentos sobre isso foram escassos durante os mil dias de duração do governo da UP, mesmo se alguns atores externos, como os comunistas italianos, vissem virtudes no processo chileno.

Pelo lado das forças de esquerda, a crítica à posição de Allende estava fundada, ao mesmo tempo, em princípios da concepção marxista dos processos revolucionários e no exemplo da revolução cubana, cujo foco central era o seu caráter insurrecional e não a luta por meios democráticos. Por isso, as exigências que a via democrática defendida por Allende implicava para que o processo de mudanças ocorresse em condições pacíficas eram vistas – e denunciadas – pelas forças de esquerda como fatores limitadores do processo revolucionário que, por essa razão, não deveriam ser respeitados pelo governo da UP. Os conflitos entre esses setores e o presidente Allende se agravaram e tiveram papel importante no processo de gradativo isolamento político a que ele foi submetido no período que antecedeu a sua derrota e – embora a lógica da reação conservadora, da atuação dos Estados Unidos e dos protagonistas do golpe de Estado tenha sido outra – quando a intervenção militar que derrubou o líder da UP ocorreu ele estava quase sozinho. Assinale-se, ademais, que nesse contexto também fracassaram as tentativas de aliança da UP com setores da Democracia Cristã, apesar dos incentivos nesse sentido que vinham da Itália.

Todo esse quadro oferece uma razão importante para que a avaliação da “experiência chilena”, cinquenta anos depois que ela foi destruída, retome – como se faz tão bem nesta coletânea – a questão que se refere ao lugar da democracia nas estratégias de ação das forças de esquerda. Isto tem ainda maior atualidade se levarmos em conta a recente evolução política na América Latina, com a chegada de diferentes alianças de esquerda aos governos de países como Argentina, Peru, Chile, Colômbia e Brasil. Allende reconhecia e valorizava as virtudes do processo democrático, cuja natureza ele sabia que deveria supor a construção de consensos em contextos de diversidade e de pluralismo políticos; mas esse não era o caso de algumas das forças que compunham a coalizão que ele liderava, as quais se conduziam por uma concepção instrumental do regime democrático, ou seja, por uma noção que concebia as garantias de liberdade, império da lei e respeito às instituições republicanas apenas como meios de conquista do poder, e não como um fim em si mesmo. Sem reconhecer tais garantias como um valor universal – que deve ser cuidadosamente construído e preservado –, prevaleceu em muitos casos a noção de que o processo revolucionário só se efetivaria pelo assalto ao poder, e não se realizaria pela vigência do processo democrático em curso. Nesse sentido, a prolongada e controversa visita de Fidel Castro ao Chile, e a sua discussão crítica com Allende sobre o caráter do processo que ocorria no país, funcionou como um signo paradigmático da posição que recusava o valor estratégico do modelo adotado pelo líder da UP.

A rica coletânea de textos reunidos aqui por Alberto Aggio estimula o debate de toda essa situação. Todos os textos tomam um generoso ponto de partida autocrítico para examinar o modo como as forças de esquerda que deram vida à “experiência chilena” participaram dessa situação única. Isso ganha ainda mais importância com a reflexão que Enrico Berlinguer agrega ao apresentar, a partir do caso chileno, a proposta do “compromisso histórico” na Itália. O livro ainda conclui com uma contribuição primorosa de Norbert Lechner sobre a virada que começou a ocorrer, a partir da década de 1980, no pensamento das esquerdas sobre o lugar da democracia nas lutas pela liberdade e pela igualdade. Essa virada ainda não se completou, e, nesse sentido, o livro é um passo importante nessa direção. Oferece um novo olhar sobre a democracia.

*50 anos do Chile de Allende, uma leitura crítica (Paco, 2023), será lançado em 19 de abril de 2023, às 18h, no Auditório Paulo Emílio, da Escola de Comunicações e Arte da USP. Coordena o professor Julio Cesar Suzuki (PROLAM – USP e comentam Edison Ortiz (USACH), José Alvaro Moisés (USP) e Alberto Aggio (UNESP).

Nenhum comentário: