Do ponto de vista comparativo, o Chile vinha sendo palco há décadas de uma das mais estáveis democracias no continente latino-americano, operando com base em instituições republicanas cuidadosamente consolidadas em períodos históricos anteriores. Esse quadro tinha dado oportunidade para o avanço da mobilização das forças populares e foi nesse contexto que Allende, um dos líderes e fundador do Partido Socialista chileno (PS), elegeu-se presidente – embora com uma precária maioria de pouco mais de um terço de votos –, e comprometeu-se a tornar realidade o complexo programa da Unidade Popular (UP), uma coalizão política que reunia, além do PS, o Partido Comunista, os Radicais, a Social Democracia e outros segmentos como os cristãos de esquerda; o programa da coalizão previa, entre outras coisas, o aprofundamento da reforma agrária iniciada pela Democracia Cristã, a nacionalização de empresas privadas, entre as quais algumas norte-americanas, e o efetivo empoderamento dos setores mobilizados por movimentos sociais de perfil bastante combativo. O projeto assegurava papel central para o Estado em todo o processo de mudanças propostas e o governo da UP era visto como o ponto de partida disso.
Allende defendia enfática e quase
solitariamente a proposta de que era possível avançar na direção da construção
do socialismo com base na efetividade dos meios democráticos e nesse sentido se
chocava, não apenas com os setores da direita conservadora e dos liberais que
se opunham radicalmente à proposta, mas também com diferentes segmentos de
esquerda que viam na sua tentativa um desvio inconsequente, de natureza
reformista; esses segmentos, embora tenham ganhado mais protagonismo político a
partir da conjuntura política aberta com a eleição da UP em 1970, pretendiam
radicalizar o processo para além da via democrática com o objetivo de criar as
condições revolucionárias que, segundo sustentavam, deveriam ser mais capazes
de tornar efetiva a construção do socialismo.
A divisão das forças de esquerda que
debilitava a Unidade Popular começava por segmentos do próprio partido do
presidente, o PS, mas envolvia também a Ação Popular Independente, o Movimento
de Ação Popular Unificado (MAPU) e principalmente o Movimiento de
Izquierda Revolucionaria (MIR). A contestação desses setores focava
principalmente a estratégia geral de Allende que, em que pese argumentar que a
transição para o socialismo devia se fazer no quadro das garantias
democráticas, sustentava a tese de que o avanço do processo levaria por si só à
transformação do Estado e à sua submissão ao poder popular. Havia, contudo,
algo de contraditório nessa formulação, pois fundado na legalidade democrática
o Estado nacional era referência política de diferentes classes sociais, embora
fosse visto pelo líder da UP, ao mesmo tempo, como propulsor de transformações
que deveriam colocar um ator específico na condição de protagonista principal
da dinâmica política, os setores populares. A expectativa era que os setores de
classe média aceitassem os resultados desse processo que deveria ocorrer nos
marcos da política democrática, mas pouco se dizia sobre a reação dos setores
empresariais e dos proprietários de terra.
Allende não chegou a dar detalhes mais concretos
sobre como concebia o processo pelo qual o funcionamento da democracia
facilitaria a mudança do Estado em uma direção revolucionária que, além de
assumir funções primordiais no campo econômico, deveria tornar efetivo o poder
dos setores populares, dando-lhes centralidade no processo de tomada de
decisões. Nesse sentido, pode-se especular – levando em conta algumas
declarações mencionadas em capítulos desta coletânea – que o líder da UP
pensasse que as garantias democráticas – asseguradas as condições de atuação
dos diferentes partidos políticos e a preservação do papel do parlamento –,
fossem suficientes para garantir que as transformações das estruturas de poder
e do tecido social ocorressem em condições que preservassem, ao mesmo tempo, as
liberdades democráticas e produzissem as mudanças revolucionárias esperadas
pela coalizão de forças de esquerda. Ao que parece os esclarecimentos sobre
isso foram escassos durante os mil dias de duração do governo da UP, mesmo se
alguns atores externos, como os comunistas italianos, vissem virtudes no
processo chileno.
Pelo lado das forças de esquerda, a crítica
à posição de Allende estava fundada, ao mesmo tempo, em princípios da concepção
marxista dos processos revolucionários e no exemplo da revolução cubana, cujo
foco central era o seu caráter insurrecional e não a luta por meios
democráticos. Por isso, as exigências que a via democrática defendida por
Allende implicava para que o processo de mudanças ocorresse em condições
pacíficas eram vistas – e denunciadas – pelas forças de esquerda como fatores
limitadores do processo revolucionário que, por essa razão, não deveriam ser
respeitados pelo governo da UP. Os conflitos entre esses setores e o presidente
Allende se agravaram e tiveram papel importante no processo de gradativo
isolamento político a que ele foi submetido no período que antecedeu a sua
derrota e – embora a lógica da reação conservadora, da atuação dos Estados
Unidos e dos protagonistas do golpe de Estado tenha sido outra – quando a
intervenção militar que derrubou o líder da UP ocorreu ele estava quase
sozinho. Assinale-se, ademais, que nesse contexto também fracassaram as
tentativas de aliança da UP com setores da Democracia Cristã, apesar dos
incentivos nesse sentido que vinham da Itália.
Todo esse quadro oferece uma razão
importante para que a avaliação da “experiência chilena”, cinquenta anos depois
que ela foi destruída, retome – como se faz tão bem nesta coletânea – a questão
que se refere ao lugar da democracia nas estratégias de ação das forças de
esquerda. Isto tem ainda maior atualidade se levarmos em conta a recente
evolução política na América Latina, com a chegada de diferentes alianças de
esquerda aos governos de países como Argentina, Peru, Chile, Colômbia e Brasil.
Allende reconhecia e valorizava as virtudes do processo democrático, cuja
natureza ele sabia que deveria supor a construção de consensos em contextos de
diversidade e de pluralismo políticos; mas esse não era o caso de algumas das
forças que compunham a coalizão que ele liderava, as quais se conduziam por uma
concepção instrumental do regime democrático, ou seja, por uma noção que
concebia as garantias de liberdade, império da lei e respeito às instituições
republicanas apenas como meios de conquista do poder, e não como um fim em si
mesmo. Sem reconhecer tais garantias como um valor universal – que deve ser
cuidadosamente construído e preservado –, prevaleceu em muitos casos a noção de
que o processo revolucionário só se efetivaria pelo assalto ao poder, e não se
realizaria pela vigência do processo democrático em curso. Nesse sentido, a prolongada
e controversa visita de Fidel Castro ao Chile, e a sua discussão crítica com
Allende sobre o caráter do processo que ocorria no país, funcionou como um
signo paradigmático da posição que recusava o valor estratégico do modelo
adotado pelo líder da UP.
A rica coletânea de textos reunidos aqui
por Alberto Aggio estimula o debate de toda essa situação. Todos os textos
tomam um generoso ponto de partida autocrítico para examinar o modo como as
forças de esquerda que deram vida à “experiência chilena” participaram dessa
situação única. Isso ganha ainda mais importância com a reflexão que Enrico
Berlinguer agrega ao apresentar, a partir do caso chileno, a proposta do
“compromisso histórico” na Itália. O livro ainda conclui com uma contribuição
primorosa de Norbert Lechner sobre a virada que começou a ocorrer, a partir da
década de 1980, no pensamento das esquerdas sobre o lugar da democracia nas
lutas pela liberdade e pela igualdade. Essa virada ainda não se completou, e,
nesse sentido, o livro é um passo importante nessa direção. Oferece um novo
olhar sobre a democracia.
*50 anos do Chile de Allende, uma leitura crítica (Paco, 2023), será lançado em 19 de abril de 2023, às 18h, no Auditório Paulo Emílio, da Escola de Comunicações e Arte da USP. Coordena o professor Julio Cesar Suzuki (PROLAM – USP e comentam Edison Ortiz (USACH), José Alvaro Moisés (USP) e Alberto Aggio (UNESP).
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