terça-feira, 18 de abril de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Políticas de forno e de fogão

Precisamos deixar de ver a política brasileira atual, exclusiva ou mesmo prioritariamente, a partir de um ponto de observação pelo qual o governo é o foco central e tudo o mais é acessório. O diagnóstico quase consensual de que o Congresso se converteu, de fato, num polo relevante e independente de poder legítimo requer que se abram as lentes analíticas em sua direção, com equitativa atenção.

Os movimentos relevantes mais visíveis no âmbito do Poder Legislativo, feitos não só pelos presidentes Artur Lira e Rodrigo Pacheco, mas por quadros da direita na Câmara, como Ciro Nogueira (PP), Marcos Pereira (Republicanos), Elmar Nascimento (União Brasil) e também por efeito de articulação de chefes partidários do centro como Gilberto Kassab (PSD) e Baleia Rossi (MDB) têm ido todos na direção de se distinguir do bolsonarismo, aumentando seu isolamento e virando a página da política polarizadora que ocupou o Planalto durante os últimos quatro anos. Em termos estritos de alinhamento de bancadas legislativas, isso vale tanto para um novo bloco de centro que se forma a partir do PSD, MDB e Republicanos, como para a parte “lirista” do antigo centrão, sediada no PP, com fortes laços no União Brasil e mesmo no PL, onde divide teto com o “bolsonarismo-raiz”. Nesse plano específico da formação de blocos parlamentares que facilitem ocupação de postos legislativos chave para acesso ao Orçamento e decisões sobre matérias de interesse do governo, são catalisadores naturais o interesse de deputados e senadores no pleito municipal de 2024 e o horizonte de sucessões nas mesas diretoras das duas Casas.

Mas também em termos da reorganização geral do sistema partidário – com movimentos de federação e fusão de partidos para além da específica legislatura – há um sentido reestruturante do campo da centro-direita, apontando para ainda maior organicidade da influência difusa que esse campo político vem conquistando após seguidas eleições, inclusive as de outubro último. Nesse plano mais geral a conquista de governos estaduais importantes por políticos desse campo, aspirantes a um protagonismo nacional, é um catalisador lógico, como é também a própria competição entre partidos para formarem bancadas numerosas e, portanto, eficazes, antes de tudo, para captação de maiores cotas dos fundos partidário e eleitoral, mas também, a depender do caso, para ocupar postos no Executivo. Três dos quatro catalisadores mencionados (eleições municipais, sucessão nas mesas diretoras e eventuais projetos nacionais de governadores) induzem a realinhamentos políticos que alteram os de 2022.

O movimento contrário (de sustentação da polarização antiga) também existe, mas não parte do congresso e sim do presidente, quando procura reverberar, de fora pra dentro do legislativo, temas da agenda eleitoral que ele e seu governo precisam agir para preservar mesmo ao custo de solavancos. Nisso Lula tem contado com a bancada de esquerda, mas mesmo assim não com toda ela, porque mesmo na do PT há sinais de que, ao contrário do que ocorre com suas alas mais ideológicas e também com a bancada do PSOL, a virada de página é uma imposição do novo ambiente parlamentar, o que aconselha a adoção de outra partitura política. Quanto ao PSB e PDT, a interação com a nova partitura parlamentar ensaiada pelos blocos centristas é ainda maior, chegando mesmo à integração no bloco de Lira, emprestando-lhe um adereço de centro-esquerda, ao tempo em que especialmente o PSB, partido do vice-presidente e de mais dois ministros, funcionam como agentes atrativos de deputados e partidos de dentro e de fora da antiga base governista, desejosos de se aproximar do novo governo. Um ponto a observar à parte é a escolha dos dois partidos – assim como a da federação PSDB/Cidadania – pelo guarda-chuva de Lira em vez do eixo Kassab-Baleia. Se as digitais de Lula podem ser supostas no caso do PSB e do PDT, a hipótese não vale para a federação que os tucanos lideram, sendo a confluência de governistas e oposicionistas num mesmo bloco de centro mais um sinal de que os realinhamentos em curso obedecem, em muitos casos, a uma lógica interna à Câmara, que é autônoma face ao governismo.

A nova partitura ainda não orienta – nem se sabe se um dia chegará a orientar - o conjunto do governo. Problemas de coordenação se mostram ali tão ou mais acentuados do que no próprio Legislativo, onde sempre se espera mais dificuldades para uma ação coletiva. Um bom avanço encontra-se esboçado na atitude de uma parte dos ministros, com destaque para os da área econômica, que até aqui trabalham coesos sob a liderança da Fazenda. O nível do forno em que o arcabouço fiscal vem sendo preparado é exemplar dessa conexão entre a banda econômica do governo e a atual realidade do Poder Legislativo. Outro exemplo de sintonia entre os poderes é a conduta discreta e eficaz do ministro da Defesa na reconfiguração da relação do governo com os militares, tema a ser tratado sem pressa no outro Poder. Nada disso se faria, é óbvio, sem encomenda, ou ao menos, consentimento do presidente, a quem se deve reconhecer também a responsabilidade pelo que aqui se apresenta como méritos.

As coisas estão se processando de tal modo no âmbito da Câmara – assim como já se processaram para formar uma bancada centrista moderada que dá, até aqui, as cartas no Senado – que o presidente Lula encontra eco também quando se remete ao golpismo e ao desmonte institucional bolsonaristas, que legitimam posições de censura e rejeição agudas desse legado negativo por parte não apenas do governo como de um espectro amplo de políticos do campo democrático. Mas Lula entra em modo solo quando adota um discurso mais partidário e agressivo, que atinge alvos fora da extrema-direita. É o que tem ocorrido quando a retórica do presidente e seu partido mira outros alvos, como o BC e os militares e traz a público temas que causam estranhamentos e distanciamentos no interior da chamada “frente ampla”. São exemplos a recorrente narrativa do “golpe” de 2016 como meio de reescrever a história dos anos de governo Dilma Rousseff, enfatizar que a herança negativa teria começado logo após a sua queda e assim justificar propostas de “revogaços”. Nesses momentos, como é ainda relativamente alto o teor de complacência e boa vontade com o novo governo após o trauma da experiência bolsonarista, as reações, em geral, oscilam entre críticas cautelosas, embora crescentes e tentativas de minimização ou de interpretações benignas de posições polêmicas do presidente. Numa palavra, ainda não está em cena uma nova oposição, mas é cada vez mais evidente que partes relevantes do meio político, assim como da imprensa, não terão atitude caudatária diante de posições imoderadas.

Essa observação vale para o rescaldo, que já se evidencia, de palavras e gestos de Lula na visita à China, para uns ousados e para outros – inclusive este que escreve –, excessivos e até imprudentes. Após o impacto de adesões ruidosas à gramática da diplomacia chinesa e fustigações gratuitas aos EUA, durante essa recente viagem, logo na sequência cá esteve o ministro russo das Relações Exteriores, Sergey Lavrov que, após reunir com o seu par brasileiro, partiu deixando uma declaração, até aqui não problematizada pelo Itamarati, sobre uma suposta similaridade das posições dos dois países a respeito daquilo que o comunicado conjunto sino-brasileiro chamara, dias antes, de “crise” da Ucrânia. Cabe a suposição de que, nessa semana que começa, a política externa fez as partituras do governo e do Congresso ficaram a uma distância inédita, desde janeiro. A ver.

A cena política atual tem esses dois lados, ou essas duas cozinhas políticas onde se prepara o que será servido ao país assim que comece a temporada de votações cruciais no Congresso. O presidente alternando, diretamente ou através de seus ministros, fogo alto e fogo baixo em panelas que podem escaldar e frigideiras que podem fritar, ou não, pessoas, partidos e valores políticos. De outro lado, lideranças parlamentares preferindo o forno, no qual não há labaredas a anunciar imediatamente ao público quando a temperatura sobe, mas ela deixa seus efeitos sobre o que está sendo assado e logo será servido. Sim, é para uma competição que os dois poderes se organizam, cada qual no intuito de prevalecer. Enquanto a parte engajada do público torce por um dos lados, a plateia em geral ganhará mais se houver um empate. Claro que até o momento o governo se comunica melhor embaixo, pelo recall da eleição e, por isso, sai na frente na venda do seu peixe. Mas o poder real que emana do congresso detém instrumentos de peso apreciável para reverter essa vantagem a médio prazo. Exatamente por isso ele não será mero sancionador de decisões sobre economia, política interna ou externa, assim como não necessariamente imporá ao presidente uma pauta de costumes ou tributos. Só a pauta social é ponto de convergência indiscutível nesse jogo, o sal e a cebola de ambas as cozinhas.

Penso que o fato da bifurcação do poder não deve ser encarado como herança patológica do período bolsonarista, ou mesmo como restabelecimento do padrão Eduardo Cunha de fazer política. Insisto de há muito, nesta coluna, que no ambiente legislativo há tendências distintas. Todas, é claro, trabalharão pela conservação e, se possível, pela ampliação do espaço de poder da instituição e dos seus membros e se o Executivo tentar reduzi-lo enfrentará uma coalizão de veto. Até aqui não o fez, felizmente. Mas está deixando a coisa correr sem se aproximar preferencialmente, como creio que devia fazer, de lideranças que se organizam na Câmara para contrabalançar o poder de Artur Lira. Com esse alheamento aparentemente hábil, o Poder Executivo pode estar selando definitivamente a sua coadjuvância no jogo institucional. Espera-se dos líderes do governo na Câmara fazerem um movimento senão idêntico, ao menos próximo, ao que, no Senado, ajudou muito a fortalecer e consolidar a liderança de Rodrigo Pacheco. Aliás, o Senado está sendo um exemplo de como se pode lidar com uma maioria de centro-direita de modo a aproximá-la de esquerda e centro e encarar com unidade a articulação bolsonarista. Ali ela é mais efetiva do que a da Câmara (onde impera um karaokê) mas é detida por um cordão sanitário eficaz, que Pacheco lidera. Poderia haver gesto semelhante na Câmara, apostando num cenário de não continuidade, a médio prazo, do esquema de Lira, cujo poder pessoal tende a declinar à medida em que seu mandato avance no tempo. O governo, ao contrário, terá quatro anos e precisaria se conectar com o que pode ser um novo eixo de poder daqui a um ano e meio. Poder mais estruturado na dinâmica dos partidos (das bancadas, mas também das suas direções) do que reprodutor da fragmentação que atualmente serve a um mando imperial. Normal que Lira, para aproveitar o tempo de poder que lhe resta, insinue ameaças, como a de se aliar ao bolsonarismo, em caso de desafio ao seu esquema pessoal. Seu poder de chantagem não é pequeno, mas tende (ou pode ser levado) a esbarrar na lógica reestruturante da dinâmica parlamentar e do sistema de partidos, que mencionei acima.

A centro-direita está vendo Bolsonaro ser expelido e vendo também para onde Lula está querendo e pode ir com o instinto político que o levou à China. Embora não deixe de costear sempre o alambrado do palácio que hoje Lula ocupa, ela sabe que depois de 2024 é que se definirá o quadro eleitoral de 2026. Até lá uma maioria congressual permanente tende a se formar em torno de uma agenda própria e reagirá, seletivamente, à do Executivo. Não está escrito que reagirá cooperativamente, ou competitivamente. Facilidades e hostilidades surgirão a depender da recíproca aceitação, ou não, de uma realidade de poder compartilhado. Hoje não há lugar para revival bolsonarista, nem outros flertes autocráticos. A extrema-direita não foi vencida por uma vontade política demiúrgica. Foi vencida por uma ação defensiva, dentro das regras eleitorais, porque o sistema a ejetou. E o Congresso é sistema.

Então temos de passar a compreender e avaliar, não apenas - como no passado - as supostas estratégias do presidente para "obter" apoio congressual para uma pauta sua, como também diferentes articulações no Legislativo para estabilizar regras que balizem e institucionalizem o compartilhamento do poder com o presidente. Não é difícil distinguir as que buscam conservar o domínio atual de Artur Lira, através da sagração de um sucessor, daquelas que querem fazer alterações na cúpula do Poder. Mais dia, menos dia, o governo terá que entrar em campo na Câmara, como entrou no Senado, isto é, entrar não para impor sua própria fórmula, mas para optar por uma, dentro do cardápio disponível.

O cientista político Marcos Melo interpreta em artigo (“O governo derrapa”, FSP, 17.04.2023) que o presidente vem adotando uma estratégia que combina ampla delegação de poder ao congresso em política interna, com grande protagonismo da figura presidencial em política externa. A lógica seria blindar-se de desgastes eleitorais com as previsíveis dificuldades econômicas e construir reputação de estadista mundial através da pauta ambiental. Ainda de acordo com o articulista ela está malogrando. Talvez Lula precise mesmo revê-la em razão de vasos comunicantes entre os dois palcos de atuação política. Os ministros Fernando Haddad, Simone Tebet, Geraldo Alckmin, José Mucio, Marina Silva, ou mesmo Camilo Santana ou Nísia Trindade precisam de ambiente arejado para negociar suas pautas no Congresso. Caso se consolide, no plano internacional, as imagens do nosso país como aliado, ainda que dissimulado, da Rússia e como cabeça de ponte da expansão chinesa na América, o campo de manobra bolsonarista aumentará, inclusive no Congresso e a consequência disso será a rarefação do ar sob o qual se discutirá as pautas do Executivo. Ainda que alinhamentos súbitos de Lula fossem apenas suposições enfatizadas por inimigos, é bom se reparar que não se está falando dos russos, com quem Bolsonaro flertava, mas do Ocidente e dos EUA, o demônio que continua a assombrar a esquerda anti-imperialista do nosso continente, enquanto Lavrov embarca, ileso e espaçoso, do Brasil para Cuba, Venezuela e Nicarágua. Ninguém precisa ensinar ao presidente Lula a importância de simbolismos em política. Se está consentindo na difusão dessas imagens, ou fomentando-as, há uma esfinge a decifrar.

Da mesma forma que a política externa concentrada no tema ambiental pode ajudar eleitoralmente o presidente e quem ele vier a apoiar no futuro, os efeitos de suas hesitações no compromisso de alinhamento político prático com os valores da democracia no plano internacional podem mobilizar de novo, como em 2022, mas dessa vez contra ele, fatores externos de persuasão política capazes de influir no posicionamento de importantes pilares da democracia brasileira, Congresso incluído. Nesses termos é de uma imprudência espantosa colocar entre parênteses a bandeira da democracia num momento mundial em que valores têm contado muito e servido de biombos para a ascensão de extremismos. Antes e depois da vitória da democracia nas urnas no Brasil havia uma pista pavimentada lá fora para que o novo presidente brasileiro eleito trafegasse livre e ganhasse fôlego para a dureza das batalhas internas. Após os ruídos da última semana há no mundo mais radares atentos ao que se passará aqui.

O Congresso sabe disso e também não precisa de lições sobre como agir quando um presidente derrapa. Vácuo não combina com política, mister da instituição, portanto, sempre haverá pneus novos a oferecer a quem derrapa, ou um corrimão para quem ficar mal das pernas. Mas dádivas não fazem parte do jogo.

*Cientista político e professor da UFBa.

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