Revista Será? (PE) (14/4.2023) – publicado, ontem, por engano, com o nome de outro autor pernambucano. Peço desculpa!
Não vou deixar passar em silêncio um tema
que tanto aprecio: o silêncio. Numa crônica, Umberto Eco profetiza, e vejo, com
inteira razão, que, no futuro, só os ricos terão direito ao silêncio. Mas terão
que comprá-lo. Só que o futuro, como diz a mídia, já começou. Os ricos, quase
que de uma forma atávica, têm a arte de saberem se isolar; que o digam as ilhas
desertas, as propriedades do campo, os recursos tecnológicos, os iates, as
mansões bem afastadas dos vizinhos… Enfim, a classe média e os pobres que se virem
com o barulho, que, aliás, os cerca de todos os lados, o que não é novidade
para ninguém!
O barulho é quase uma definição do que é a
modernidade. O sociólogo e antropólogo David Le Breton, em seu
ensaio “Du silence”, vai ao ponto: “O único silêncio que a utopia da
comunicação conhece é aquele da pane, do desfalecimento da máquina, da parada
de transmissão”. Com efeito, cercados de máquinas, temos que aprender a
suportar seus ruídos, seus resfolegares, seus apitos. A tecnologia ainda não
evoluiu para o silêncio, embora venha tentando.
Curiosamente, há uma máquina cotidiana que Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta, com seu humor e agudeza, logo definiu como “máquina de fazer doido”: a televisão. Certamente, trata-se de uma das maiores inimigas do silêncio, e isso por uma razão muito simples: ela não se cala, é uma tagarela compulsiva; e quando subitamente se cala, somos os primeiros a dizer: “Está com defeito”. É verdade que há o recurso de “tirarmos o som”, mas só o utilizamos em casos excepcionais, tornando a televisão um tanto ridícula ou esvaziada…
Quer silêncio? Vamos à Antártida. Trata-se
do lugar mais silencioso já visitado pelo escritor e explorador norueguês
Erling Kagge, autor do admirável livro “Silêncio na era do ruído”. Kagge nos
lembra que “[…] o som é um fenômeno físico medido em decibéis, mas não [acha]
muito produtivo medir sons usando uma escala numérica. O silêncio se parece
mais com uma ideia, um sentimento […] o silêncio mais interessante é o que
trago dentro de mim”.
Nesse ponto, ele lembra o Riobaldo, de
Guimarães Rosa no “Grande Sertão: veredas”: “O silêncio é a gente mesmo,
demais”. O diabo é que, como diz o norueguês, há uma constante fuga de nós
mesmos. Enfim, não se suporta bem o silêncio, como viu Pascal, que se assustava
com o silêncio eterno dos céus estrelados. Já o barulho é algo que distrai, que
nos leva para longe de nós mesmos… Segundo Kagge, nós precisamos criar o nosso
próprio silêncio. De qualquer forma, “O silêncio [e assim ele faz eco a Eco] é
o novo luxo”.
Do ponto de vista cultural, tanto a Bíblia
quanto os judeus e os árabes têm em alta conta o silêncio. Breton, já citado,
lembra, a propósito, dois provérbios árabes: “Só abras a boca se tiveres
certeza de que o que vais dizer é mais belo que o silêncio” e: “És senhor das
palavras que não pronunciaste e escravo das palavras que te escaparam”. Várias
culturas africanas também vão no mesmo sentido: a de que podemos nos salvar
pelo silêncio.
No mais, o sagrado e o silêncio caminham
juntos na história humana. Sobre esse tema, o historiador britânico Peter
Burke, no livro “A arte da conversação”, define com oportunidade: “O silêncio
religioso é um misto de respeito por uma divindade; uma técnica para abrir o
ouvido interior; e um sentido de inadequação de palavras para descrever as
realidades espirituais”.
As relações do silêncio com as diversas
culturas são de riquíssima palheta. O Japão, dentre outros países, é um caso
emblemático, segundo observa o neurocientista Ivan Izquierdo no seu pequeno
livro “Silêncio, por favor!”. Não obstante ser um país ruidoso, o Japão conta
com “ilhas de silêncio”, jardins ou palácios onde podemos desfrutar de silêncio
e serenidade.
Poder-se-ia perguntar: qual de fato o povo
mais silencioso? Em hipótese alguma será o brasileiro, como bem sabem os povos
que nos visitam ou são por nós visitados… Diz-se que os ingleses são bons de
silêncio. Mas a questão, como registra o inglês anteriormente citado, Peter
Burke, é controversa. Diz ele: “Os ingleses julgam-se falantes normais,
considerando os suecos como sobrenaturalmente silentes, ao passo que os suecos
consideram os finlandeses o povo verdadeiramente silente”.
O brasileiro infelizmente passa longe de
qualquer amor pelo silêncio. O poeta e cronista Paulo Mendes Campos nos diz,
não sem razão, que se queixar de falta de silêncio, ou, noutras palavras, de
barulho, é a reclamação mais desmoralizada!
Verdade gritante! Burocratas ou policiais,
ou um misto dos dois, sempre nos olham surpresos como se a própria palavra
“silêncio” pertencesse a um idioma desconhecido. Por sua vez, Nelson Rodrigues
detonava: “Brasileiro vaia até minuto de silêncio”.
Somos um povo de tagarelas? Sim.
Barulhento? Sim. Reparem: até a Independência precisou de um grito! No mais,
como ironicamente sintetizou Millôr, “Certos silêncios merecem resposta
imediata”!
*Paulo Gustavo, recifense (1957), é Mestre
em Teoria da Literatura pela UFPE, sócio-fundador da Consultexto e membro da
Academia Pernambucana de Letras. Dirigiu por três anos a Editora Massangana, da
Fundação Joaquim Nabuco. Publicou sete livros de poesia (Edições Bagaço) e um
ensaio sobre Marcel Proust intitulado A tartaruga e a borboleta: um caminho
para Proust.
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