Nada sugere, é claro, uma aprovação automática. Dúvidas e ressalvas importantes estão presentes e o governo deve saber que lidará com um complexo processo de discussões, pressões e negociações. Ele começou no interior do próprio partido do presidente e no âmbito do governo, tendendo a se espraiar pelos demais partidos, empresariado e sociedade civil, tendo o Congresso como eixo de articulação e de decisão final. É sem dúvida um sinal positivo de novos tempos na política brasileira, os quais se impõem, em ambos os Poderes, às lógicas e escolhas particulares desse ou daquele ator político.
O ministro da Fazenda tem mostrado muita
disposição a tal diálogo e não esconde até mesmo certo contentamento com ele.
Sua postura aberta tem sido amplamente reconhecida fora da área governista,
mesmo quando esse reconhecimento é acompanhado por algum ceticismo –
justificado - quanto à extensão, intensidade e sustentabilidade do aval
presidencial a essa atitude. Exemplo notório dessa recepção basicamente
positiva são os elogios que a atuação do ministro e o próprio conteúdo da
proposta receberam até mesmo do presidente do Banco Central, para frustração de
quem enxerga nele uma permanente fonte de tensão e polarização. Há razões,
portanto, para se esperar que possa surgir uma solução satisfatória, capaz de
combinar prudência fiscal e compromisso com a pauta social que o presidente
apresentou na campanha eleitoral. Essa expectativa não exclui a consideração
realista de que há um longo caminho a percorrer, no âmbito do Poder Legislativo,
o qual se encontra em visível processo de reestruturação institucional e de
realinhamento político.
Tem se especulado sobre o sentido dos movimentos do governo, supostamente na busca de um novo padrão de relacionamento com o Congresso. Há controvérsia sobre se o presidente está, de fato, tentando fixar um padrão definido e estável de relacionamento, parecido com o antigo presidencialismo de coalizão, que já deixou de vigorar, em sua plenitude, há bom tempo. Por vezes parece mais certo que Lula venha tendo papel mais passivo, seja por preferência (por supor que sua influência prevalece jogando parado, com regras frouxas) ou por falta de escolha. Por uma razão ou por outra (ou por ambas), em vez de tentar um caminho, ele pode estar sendo tentado a seguir, simultaneamente, em diferentes direções, por distintos grupos do Legislativo com os quais a iniciativa parece estar, mais do que com o Chefe do Executivo. Tratarei ainda desses possíveis grupos e direções, mas quero, por mais um instante, comentar o que posso entender, até aqui, sobre os movimentos do presidente.
É duvidoso que ele esteja tentando
restabelecer o antigo sistema de relações entre Executivo e Legislativo que, em
meados da última década do século passado, o cientista político Sérgio
Abranches definiu como "presidencialismo de coalizão". Por vezes o
presidente parece imaginar é que pode repetir o que fez a partir de 2004. Ali
começou o desmonte da lógica de coalizão, que realmente orientara as relações
entre Executivo e Legislativo durante os governos FHC até o primeiro ano de
governo do próprio Lula. Desde a inflexão de 2004 o sistema que Abranches
flagrou firmando-se, na década anterior, passou a funcionar como simulacro, à
base de acordos ad hoc, cuja pedra de toque foi o mensalão. Penso que já foi
essa variante improvisada do sistema original que Dilma Rousseff não conseguiu
revalidar, gerando um vale-tudo e, em seguida, o enfraquecimento do Poder
Executivo perante um Legislativo crescentemente balcanizado. A situação crítica
que sucedeu à variante improvisada trouxe-nos até aqui, sem que uma nova
solução estável se firmasse. Vivemos ainda desdobramentos dessa relação
contingente, assistemática e predatória entre os dois poderes, a qual, agora,
algumas forças políticas mais responsáveis do Congresso tentam resolver.
Em artigos futuros pretendo fazer uma
análise mais factual sobre o que sejam atitudes mais ou menos responsáveis (do
ponto de vista republicano) existentes no Legislativo. Será preciso, a seu
tempo, interpelar veredictos peremptórios sobre um suposto absolutismo de uma
convergência corporativa que condenaria aquele Poder a um justo apedrejamento
como se ali houvesse apenas patrimonialismo e fisiologismo. Por enquanto
ficarei apenas no exemplo da formação, que se esboça na Câmara, de um bloco
parlamentar entre o PSD e o MDB, atraindo o Republicanos que, com isso,
distancia-se, em tese, de um eixo de direita mais radical que se formaria a
partir do PL.
Esse movimento é análogo ao que se verifica
entre União Brasil e PP com possibilidades de atrair, segundo a colunista Maria
Cristina Fernandes, o PSB. Ambos os blocos têm em comum a intenção de se
aproximarem mais do governo para negociarem com mais força. O efeito colateral
é isolar o bolsonarismo parlamentar, na contramão de prognósticos de que tais
partidos poderiam gravitar em torno de uma oposição de extrema-direita. Se eles
serão governo ou oposição, a partir das eleições municipais de 2024, ninguém
sabe, mas, por ora, o que se vê é demarcação em relação ao bolsonarismo.
O mais relevante, no entanto, para o tema deste artigo - o ambiente político onde tramitará a proposta de arcabouço fiscal como primeiro teste das relações entre o governo Lula e o Congresso - não são as semelhanças, mas diferenças entre os movimentos do União Brasil/PP e os do PSD/MDB. Nesse segundo bloco está uma possibilidade maior de combinar pragmatismo na relação com o governo e orientação comum sobre a agenda de políticas públicas. Essa segunda dimensão da atitude parlamentar, nas circunstâncias atuais, não contradiz qualquer pragmatismo. Há sentido eleitoral e para relações com agentes econômicos e segmentos sociais em ligar-se a uma agenda de reconstrução e estabilização.
Os presidentes Baleia Rossi (MDB) e
Gilberto Kassab (PSD) têm deixado clara, em seus movimentos (especialmente
Kassab, ao buscar protagonismo propositivo no debate da âncora fiscal), uma
rota mais próxima de uma lógica de coalizão política do que de acordos ad hoc
destinados tão somente a contemplar interesses individuais ou corporativos
sobre o orçamento da União e a ocupação de cargos no governo federal. É por aí
que se pode esperar que a fragmentação da Câmara possa ser resolvida, ou
atenuada, por uma via política distinta da que vem sendo imprimida pelo atual
presidente da Casa, reduzindo assim discrepâncias, hoje evidentes, entre
orientações das cúpulas da Câmara e do Senado. Nunca é demais lembrar que Lira
exerce poder relevante, mas que tende a ser declinante, porque tem prazo de
validade até, no máximo, as eleições municipais de 2024. No fim da linha desse
movimento de placas políticas estruturantes da Câmara está também a eleição do
seu sucessor. Se o movimento desse bloco prosperar, a âncora de Haddad virá
para ficar, a menos que o presidente da república se mova em sentido contrário
e retire do tabuleiro seu até aqui principal jogador.
Para além do debate econômico atual,
discernir joio e trigo nas agregações parlamentares centristas, ora em
formação, é essencial para proteger o país de pautas legislativas bomba, sejam
elas de direitos civis, ambientais, ou culturais, assim como de retrocessos
corporativos e outras formas de política antirrepublicana. Todas essas
possibilidades ameaçam, não necessariamente o governo, mas certamente a
sociedade. Elas podem se impor, como preços compulsórios, na viabilização de
acordos parlamentares, tanto acordos bem sucedidos, mas tímidos (que subestimem
a possibilidade de coalizões progressistas moderadas por reformas relevantes)
como acordos afoitos, que supõem possível impor revogaços e revisionismos progressistas
fortes a congresso e eleitorado conservadores.
São sinais para antenas de partidos e
lideranças politicamente responsáveis, sejam governistas, ou não, inclusive
federações de partidos como, por exemplo, o PSDB/Cidadania, que, como virtual
oposição, distinta do bolsonarismo, terá fragilidades talvez insuperáveis, mas
que tem diante de si, para evitar isolamento, a possibilidade de cooperação
parlamentar com um bloco centrista distinto do centrão.
Quanto a Lula, condutor de um governo
estruturado como um mosaico, não sabemos o que pretende (talvez ele saiba). Mas
é preciso e talvez possível distinguir, dentre as opções que o Congresso
oferece ao presidente, neste momento, as que contribuem para prolongar o
relacionamento instável e predatório, posterior ao presidencialismo de coalizão
e aquelas que, caso prevaleçam, podem ajudar a construção de algo que se possa
chamar de sistema institucional de relações entre os dois poderes.
Posto isso, associo-me à visão de que esse
"algo" (que somente o exercício prático da política poderá desenhar
com eficácia) precisa ser diferente do que foi o presidencialismo de coalizão,
mas com uma funcionalidade análoga à que ele possuía há vinte anos. Aquela
arquitetura não volta mais, a não ser como farsa. Buscar uma nova solução é um
desafio e, ao mesmo tempo, um tributo à experiência de quase duas décadas de
descaminhos atitudinais.
Faz sentido, ao se observar o movimento dos
vários atores, pensar que a palavra decisiva sobre isso caberá ao Poder
Legislativo. Afinal, tem razão o cientista político José Álvaro Moisés, quando
afirma que não se pode atribuir as crises de instabilidade que têm afetado a
política brasileira apenas ao déficit, ou ausência, de capacidade de
coordenação de presidentes. Contam muito também a cultura plebiscitária que
atinge amplas faixas do eleitorado e fatores da própria estrutura do sistema
político. Nesse ponto não creio que se deva criticar o multipartidarismo -
aspecto até, digamos, virtuoso, para a amplitude da representação - mas a
ausência, por muitos anos, de freios institucionais adequados para combinar
representação e governabilidade, o que acabou por conferir poder de veto a uma
multiplicidade análoga de atores, como se representação e poder de veto fossem
condições plenamente equivalentes. As reformas incrementais que vêm sendo
feitas (cláusula de barreira mais rigorosa, fim de coligações em eleições
proporcionais) já produzem efeitos positivos quanto a esses gargalos
estruturais.
O vácuo de coordenação, por parte do
Executivo, ainda é evidente também, como dificuldade paralela. Mas independente
da orientação que prevaleça sobre isso no governo, o Congresso precisa fazer
sua parte, como recentemente fez, em contexto muito mais crítico, durante a
pandemia. É preciso reduzir a quantidade de vetos cruzados, o que passa por
fortalecer direções e lideranças de partidos relevantes, para tentar superar,
tanto o varejo do próprio Congresso (especialmente o da Câmara) quanto o
decisionismo plebiscitário de presidentes. Não à toa o Senado mostra-se arena
mais sensível a esse requerimento de política positiva. Diferentemente da
lógica centrífuga que ainda prevalece na Câmara, no Senado, governo e oposição
estão mais bem delineados e, por isso, levados a disputarem o centro.
Todas essas questões terão, agora, na
discussão e votação do arcabouço fiscal, uma excelente ocasião para começarem a
ser resolvidas. Trata-se de um encontro incontornável, mesmo que o
reagendamento quase instantâneo da viagem presidencial à China leve a nova
protelação dessa pauta, na expectativa de que promessas de investimentos
chineses reduzam o patamar de concessões do governo aos imperativos da
autocontenção fiscal. Pode ser que o ministro Haddad e seus aliados, dentro e
fora do governo, fiquem, algumas semanas a mais, caminhando de novo sobre zinco
quente. Mas congresso e governo acabarão acertando seus relógios e
compreenderão a chegada da hora de parar de adiar os inadiáveis debate e
definição parlamentares sobre o rumo econômico do país.
*Cientista político e professor da UFBa
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