domingo, 9 de abril de 2023

Muniz Sodré* - Um nome para o inominável

Folha de S. Paulo

Bolsonaro vem ao encontro do nome que lhe cai como uma luva: cambalacho

Retornando ao país com o fardo escandaloso das muambas sauditas, o inominável vem ao encontro de um nome insólito, mas que lhe cai como uma luva: cambalacho. A história de fundo é musical. Pouco antes da Segunda Guerra, "Cambalache", um tango de Enrique Discépolo na voz de Carlos Gardel, proclamava (em lunfardo, claro, a pitoresca gíria portenha) "que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei".

Cambalacho é o mesmo que embuste, trapaça. Nesse tango, a modernidade liberal é cantada como história da credulidade dos incautos, um "mesmo lodo em que todos metem a mão". Daí "hoje em dia dá no mesmo ser direito que traidor / Ignorante, sábio, besta, pretensioso, afanador / Tudo é igual / Nada é melhor".

Esse faiscante deboche composto para divertir dá muito a pensar sobre fenômenos correntes como a crise da democracia liberal e seus reflexos nada divertidos em países como o Brasil. Para o sul-africano Achile Mbembe, em seu livro "Brutalisme", a grande ameaça está no fato de que "um número crescente de homens e de mulheres não querem mais pensar e julgar por si mesmos. Muitos preferem, como ontem, delegar essas faculdades a outras entidades, até mesmo a máquinas". Daí o paradoxo: quanto menor fica o mundo físico pela tecnologia, mais distante é o horizonte do mundo comum.

Nessa linha, o cerne da crise está na ausência do discurso vivo, isto é, compartilhado no diálogo, centrado no direito, na moralidade e nas ideias de autonomia. A falência da razão crítica abre caminho para o deboche. Junto com a fragmentação acelerada do corpo social, fenecem os poderes de autolimitação e diferenciação das palavras. Como no tango, "tudo é igual".

Paradoxalmente, a morte do vigor da fala é a força da vida digital ativa. O que se compartilha não é mais o substrato do diálogo, e sim a atenção dispensada por homens ou máquinas aos efeitos digitais. O falatório mistificador é tanto efeito de falsificação da língua quanto meio de se embair a boa-fé do interlocutor. É o cambalacho operativo.

Sem o lastro do sentido e das palavras, as ações decorrem de ímpetos sem razão, respeito ou limites. Mas entre fala delirante e atos destrutivos há um fio lógico: a delegação de pensar a Outro, um monstro de milhões de cabeças, que também não pensa: as redes sociais. Este, o espaço tecnológico para o embuste, capaz de eleger dirigentes, como no tango, "problemáticos e febris". É que "na vitrine desrespeitosa dos cambalachos / se misturou a vida", diz a profecia cantada. E assim o inominável, vazio de sentido e pleno de fraudes, se faz nome pelo beato útil do Evangelistão ou pelo freguês iludido. Em lunfardo ou em português, há uma mesma palavra para ambos: otário.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

 

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