Folha de S. Paulo
Bolsonaro vem ao encontro do nome que lhe
cai como uma luva: cambalacho
Retornando ao país com o fardo escandaloso
das muambas
sauditas, o inominável vem ao encontro de um nome insólito, mas que
lhe cai como uma luva: cambalacho. A história de fundo é musical. Pouco antes
da Segunda Guerra, "Cambalache", um tango de Enrique Discépolo na voz
de Carlos Gardel, proclamava (em lunfardo, claro, a pitoresca gíria portenha)
"que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei".
Cambalacho é o mesmo que embuste, trapaça.
Nesse tango, a modernidade liberal é cantada como história da credulidade dos
incautos, um "mesmo lodo em que todos metem a mão". Daí "hoje em
dia dá no mesmo ser direito que traidor / Ignorante, sábio, besta, pretensioso,
afanador / Tudo é igual / Nada é melhor".
Esse faiscante deboche composto para divertir dá muito a pensar sobre fenômenos correntes como a crise da democracia liberal e seus reflexos nada divertidos em países como o Brasil. Para o sul-africano Achile Mbembe, em seu livro "Brutalisme", a grande ameaça está no fato de que "um número crescente de homens e de mulheres não querem mais pensar e julgar por si mesmos. Muitos preferem, como ontem, delegar essas faculdades a outras entidades, até mesmo a máquinas". Daí o paradoxo: quanto menor fica o mundo físico pela tecnologia, mais distante é o horizonte do mundo comum.
Nessa linha, o cerne da crise está na
ausência do discurso vivo, isto é, compartilhado no diálogo, centrado no
direito, na moralidade e nas ideias de autonomia. A falência da razão crítica
abre caminho para o deboche. Junto com a fragmentação acelerada do corpo
social, fenecem os poderes de autolimitação e diferenciação das palavras. Como
no tango, "tudo é igual".
Paradoxalmente, a morte do vigor da fala é
a força da vida digital ativa. O que se compartilha não é mais o substrato do
diálogo, e sim a atenção dispensada por homens ou máquinas aos
efeitos digitais. O falatório mistificador é tanto efeito de falsificação
da língua quanto meio de se embair a boa-fé do interlocutor. É o cambalacho
operativo.
Sem o lastro do sentido e das palavras, as
ações decorrem de ímpetos sem razão, respeito ou limites. Mas entre fala
delirante e atos destrutivos há um fio lógico: a delegação de pensar a Outro,
um monstro de milhões de cabeças, que também não pensa: as redes sociais. Este,
o espaço tecnológico para o embuste, capaz de eleger dirigentes, como no tango,
"problemáticos e febris". É que "na vitrine desrespeitosa dos
cambalachos / se misturou a vida", diz a profecia cantada. E assim o
inominável, vazio de sentido e pleno de fraudes, se faz nome pelo beato útil do
Evangelistão ou pelo freguês iludido. Em lunfardo ou em português, há uma mesma
palavra para ambos: otário.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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