O Globo
Quatro anos depois, Brasil volta a entidade
que Bolsonaro abandonou por birra ideológica
Na noite em que Jair Bolsonaro foi eleito,
Paulo Guedes deu uma amostra do que os novos ocupantes do poder pensavam sobre
a América do Sul. Ele festejava a vitória num hotel da Barra da Tijuca, a
poucos metros da casa do presidente eleito.
Ao ouvir uma pergunta sobre o Mercosul, o
futuro ministro acusou o bloco de ser dominado por “inclinações bolivarianas”.
Em seguida, engrossou com uma repórter do jornal argentino Clarín. “O Mercosul
não será prioridade. Era isso que você queria ouvir?”.
Por birra ideológica, o bolsonarismo torpedeou décadas de esforços pela integração regional. Hostilizou países vizinhos, esvaziou a cooperação econômica e ressuscitou a velha política de alinhamento automático aos Estados Unidos.
Em abril de 2019, o capitão anunciou pelo Twitter que o Brasil sairia da União de Nações Sul-Americanas, a Unasul. Depois de quatro anos, o presidente Lula acaba de formalizar o retorno à entidade.
Apesar de terem muito em comum, os países
da região levaram quase dois séculos para dividirem a mesma mesa. A primeira
reunião dos 12 presidentes sul-americanos só aconteceu em 2000, por iniciativa
de Fernando Henrique Cardoso.
Oito anos depois, Lula assinaria o tratado
de criação da Unasul. O subcontinente vivia uma maré de governos de
centro-esquerda, mas a entidade estava longe de ser monolítica. Entre seus
fundadores, figuravam o colombiano Alvaro Uribe e o paraguaio Nicanor Duarte.
Apesar da presença de conservadores, a
direita brasileira estrilou. Olavo de Carvalho escreveu que a Unasul teria
“poderes para impor o socialismo a todo o continente”. O guru do bolsonarismo
morreu, mas seus delírios continuam na praça.
Nesta sexta, o deputado Kim Kataguiri
definiu a Unasul como uma “associação de países de regime socialistas (sic),
todos extremamente autoritários”. “Não se sabe se o órgão agirá como uma união
soviética latina ou um fórum de ditadores do narcotráfico”, emendou o deputado
Luiz Philippe de Orleans e Bragança.
Na última edição dos “Cadernos de Política
Exterior”, a embaixadora Eugênia Barthelmess lançou a pergunta: “Quem tem medo
da integração da América do Sul?”. A diplomata anotou que os 12 países da
região têm PIB conjunto de US$ 3,6 trilhões. Unidos, representariam a quinta
economia do mundo, atrás da Alemanha e à frente da Índia.
O potencial da cooperação não se limita à
esfera comercial. Ao somar forças, os sul-americanos podem ampliar sua voz em
negociações de temas como defesa, desenvolvimento, saúde e combate às mudanças
climáticas. O Brasil é quem tem mais a ganhar com a atuação conjunta. O país
concentra quase a metade do território, da população e da economia do
subcontinente.
A Unasul tem defeitos a serem corrigidos,
mas abandoná-la foi uma atitude contrária ao interesse nacional. Para a
embaixadora Barthelmess, a medida significou uma “abdicação de liderança
brasileira”. “Em nome de rancores cultivados na esfera da política doméstica,
sacrificaram-se princípios tradicionais de política exterior do país”, resumiu.
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