Correio Braziliense
A mudança
da água para o vinho nas políticas públicas, em comparação com o governo
Bolsonaro, precisa ultrapassar os limites das intenções e ser efetivamente
implementada
“Não ignoro que muitos têm tido e têm a
opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de
forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma
alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas
deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos
tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos
os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas
vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso
livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o
árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra
metade, ou quase.
O 25º capítulo do clássico de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, intitulado De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva resistir (Quantum fortuna in rebus humani possit, et quiomodo illi sit occurrebndun, em Latin), trata fundamentalmente da relação entre a sorte (Fortuna) e as virtudes (Virtù) na política. O florentino alertava: “Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder.”
Maquiavel seria um bom conselheiro para o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que completará amanhã 100 dias de
governo: “Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a
isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja
ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se
consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é
tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em consequência, cai em
ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas,
a sua fortuna não se modificaria”.
A tentativa de golpe de Estado de 8
janeiro, quando a Praça dos Três Poderes foi tomada de assalto e seus palácios
invadidos, foi o episódio mais emblemático das dificuldades do novo governo. A
trégua nunca ocorreu. O fracasso dos golpistas favoreceu momentaneamente o
presidente Lula, que recebeu o apoio do Congresso e do Supremo Tribunal Federal
(STF), da mídia e da opinião pública, porém, esse apoio começa a se desvanecer.
Desde a primeira semana, o governo não teve paz.
Agora, é cobrado a apresentar um projeto
para o país que não é o do PT. Nem poderia ser, porque a frente de esquerda
formada por Lula liderou a oposição no primeiro turno, mas precisou do apoio do
centro, principalmente no segundo, para derrotar Jair Bolsonaro. O sucesso do
governo dependerá do apoio do Legislativo e do acerto de política econômica.
Nesse quesito, ainda deixa a desejar. Os projetos legislativos do novo
arcabouço fiscal e da reforma tributária, pré-condição para a retomada do
crescimento e a viabilidade das políticas sociais do novo governo, ainda não
foram encaminhados ao Congresso, por divergências dentro do próprio governo. E,
sobretudo, desarticulação de sua base parlamentar.
Centro-direita
A mudança da água para o vinho nas
políticas públicas, em comparação com o governo Bolsonaro, precisa ultrapassar
os limites das intenções e ser efetivamente implementada. Sequer suas medidas
provisórias já foram aprovadas no Congresso. Um exemplo de que não bastam as
boas intenções é o recrudescimento do desmatamento na Amazônia e no Cerrado. A
operação de resgate dos ianomâmis ameaçados de genocídio e a expulsão dos
garimpeiros de suas terras, em Roraima, tiveram o mesmo efeito da reação aos
golpistas de 8 de janeiro. Foram muito aplaudidas, o governo ganhou tempo, mas
não bastam para manter as florestas em pé, em todos os biomas. É evidente que
há uma reação de madeireiros, garimpeiros, grileiros e outros setores
bolsonaristas.
A oposição se apresenta principalmente nas
redes sociais. Lula precisa se convencer, seguindo os conselhos de Maquiavel,
de que não pode governar apenas com a sua estrela, nos dois sentidos, e os
louros do passado. As contingências são desfavoráveis. Setores que apoiaram
Lula no segundo turno, alguns até no primeiro, começam a se sentir pouco
representados pelo governo. Além de Bolsonaro ter o engajamento de 30% dos
eleitores, o centro começam a afiar espadas ou mesmo fustigar o novo governo.
Cobram mais ações em sua direção. Começa a se armar uma ampla aliança de
centro-direita em oposição ao governo e ao programa estatizante do PT. Velhos
desafetos e ressentidos que apoiaram Lula por gravidade já rasgaram a fantasia.
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