O Globo
Difícil acoplar numa mesma frase quatro
crianças que brincavam em roda numa creche e um jovem adulto que lhes tira a
vida
Talvez fosse mais honesto nada escrever.
Manter este espaço vazio, preenchido apenas por uma mancha preta fazendo as
vezes de tarja silenciosa diante do horror. Difícil acoplar numa mesma frase
quatro crianças que brincavam em roda numa creche e um jovem adulto que lhes
tira a vida a machadadas — adulto este que, há não tanto tempo assim, foi
criança.
Por onde começar a reparar o elo civilizatório básico — aquele que permite a fruição plena do ciclo humano, da infância à velhice? Nem as crianças de Blumenau nem a menina Ester, de 9 anos, que morreu na mesma quarta-feira (segundo a polícia, em tiroteio entre criminosos rivais na Zona Norte do Rio), tiveram o direito ou privilégio de florescer. Amanhã ou depois, haverá mais passos infantis interrompidos, dentro, fora ou a caminho de uma escola. Assustada, a nau humana procura brechas para romper a concentração de ódio individual infiltrada na coletividade.
Comparado aos Estados
Unidos, onde ocorreram 377 ataques a escolas desde a chacina em
Columbine de 1999, o Brasil intensificou
sua ostentação de ódio à vida em tempos mais recentes, em paralelo à
glorificação bolsonarista da violência. Em duas décadas, entre outubro de 2002
e janeiro de 2022, aconteceram 11 atentados com vítimas em escolas. Nos últimos
14 meses, já são 12. Nos Estados Unidos, somente no ano passado, houve 41
ocorrências fatais — uma litania de culto à morte sem paralelo, exceto para
organizações terroristas. Lá, o ataque mais recente data de 13 dias atrás,
quando um ex-aluno de uma escola de Nashville matou três colegas e três
adultos. Dado complementar que não costuma ser noticiado: havia outras 130
crianças na escola quando ocorreu a matança.
Como o governo americano não tem por norma
computar ataques a escolas no país, o jornalismo do Washington Post tomou para
si a iniciativa de fazê-lo. Atualizado diariamente, o levantamento contempla
não apenas mortos e feridos, como também o conjunto do universo estudantil
exposto a esse tipo de crime. O resultado é aterrador: mais de 349 mil crianças
americanas já vivenciaram um ataque a suas escolas, esconderam-se onde puderam,
conheceram o medo adulto. Com consequências traumáticas que exigirão cuidados
múltiplos ao longo da vida.
O Brasil, que desde agosto último já sofria
de surtos de violência no ambiente escolar, vê-se agora obrigado a encarar não
só o ódio do matador de Blumenau, como as causas e consequências coletivas do
ataque. As medidas anunciadas em Brasília no fragor do choque inicial estão
longe de abarcar a complexidade do problema, mas é o que temos para hoje —
verba de R$ 150 milhões para segurança nas 221 mil escolas do país, 50
policiais para monitorar incentivos ao ódio no esgoto digital, grupos de estudo
multidisciplinar e transversal etc. Estranhamente, até a Sexta-Feira da Paixão,
nenhum ministro, primeira-dama ou autoridade federal achou necessário levar o
abraço do novo governo até as famílias enlutadas. Não que o gesto fosse capaz
de diminuir a dor e o luto de toda uma comunidade. Mas um abraço com compaixão
sincera e sem pompa oficial — vindo de uma autoridade — serve de alento, como
atestam as centenas de famílias americanas abraçadas por Barack Obama e Joe Biden.
Além do mais, nada custam, uma vez que demonstrar humanidade é grátis.
Cabe aqui, por inescapável, falar do papel
da imprensa em episódios de grande comoção nacional. Algumas premissas já estão
estabelecidas, por fartamente estudadas. A curiosidade humana em torno de um
assassinato ou suicídio não deve ser alimentada a ponto de satisfazer um
público de interesse mórbido e doentio, ávido por detalhes do ato. Também
consta do beabá de todo jornalismo responsável não valorizar a figura do
perpetrador que busca a notoriedade espetaculosa. Isso porque o “efeito
contágio” de um transgressor estampado como celebridade pode servir de gatilho
ao próximo anônimo intoxicado de ódio, que busca a fama. A partir do caso de
Blumenau, o Grupo Globo e o Estado de S. Paulo assumiram como norma não
divulgar sequer o nome ou a imagem do matador. Em contrapartida, o programa
“Cidade alerta” da TV Record manteve equipes, helicópteros, drones e um
apresentador tonitruante focados no matador. Um horror que escapa à
qualificação de jornalismo. No Brasil da violência explícita, não é preciso
fuçar na deep web para achar a desinformação perversa.
A necessidade de se mostrar é comum a
humanos e animais, ensinou a pensadora magna do século XX, Hannah Arendt.
— Aparecer como prova de ser — escreveu.
Assim como um ator depende do palco, de
colegas e dos espectadores para fazer sua entrada em cena, explicou ela, todo
ser vivo depende de um mundo, de seus semelhantes e de espectadores que
reconheçam sua existência.
Cabe a cada um de nós decidir quem queremos
aplaudir no palco da vida e, em conjunto, quem devemos manter à distância por
chafurdar no ódio.
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