domingo, 9 de abril de 2023

Dorrit Harazim - A nau humana

O Globo

Difícil acoplar numa mesma frase quatro crianças que brincavam em roda numa creche e um jovem adulto que lhes tira a vida

Talvez fosse mais honesto nada escrever. Manter este espaço vazio, preenchido apenas por uma mancha preta fazendo as vezes de tarja silenciosa diante do horror. Difícil acoplar numa mesma frase quatro crianças que brincavam em roda numa creche e um jovem adulto que lhes tira a vida a machadadas — adulto este que, há não tanto tempo assim, foi criança.

Por onde começar a reparar o elo civilizatório básico — aquele que permite a fruição plena do ciclo humano, da infância à velhice? Nem as crianças de Blumenau nem a menina Ester, de 9 anos, que morreu na mesma quarta-feira (segundo a polícia, em tiroteio entre criminosos rivais na Zona Norte do Rio), tiveram o direito ou privilégio de florescer. Amanhã ou depois, haverá mais passos infantis interrompidos, dentro, fora ou a caminho de uma escola. Assustada, a nau humana procura brechas para romper a concentração de ódio individual infiltrada na coletividade.

Comparado aos Estados Unidos, onde ocorreram 377 ataques a escolas desde a chacina em Columbine de 1999, o Brasil intensificou sua ostentação de ódio à vida em tempos mais recentes, em paralelo à glorificação bolsonarista da violência. Em duas décadas, entre outubro de 2002 e janeiro de 2022, aconteceram 11 atentados com vítimas em escolas. Nos últimos 14 meses, já são 12. Nos Estados Unidos, somente no ano passado, houve 41 ocorrências fatais — uma litania de culto à morte sem paralelo, exceto para organizações terroristas. Lá, o ataque mais recente data de 13 dias atrás, quando um ex-aluno de uma escola de Nashville matou três colegas e três adultos. Dado complementar que não costuma ser noticiado: havia outras 130 crianças na escola quando ocorreu a matança.

Como o governo americano não tem por norma computar ataques a escolas no país, o jornalismo do Washington Post tomou para si a iniciativa de fazê-lo. Atualizado diariamente, o levantamento contempla não apenas mortos e feridos, como também o conjunto do universo estudantil exposto a esse tipo de crime. O resultado é aterrador: mais de 349 mil crianças americanas já vivenciaram um ataque a suas escolas, esconderam-se onde puderam, conheceram o medo adulto. Com consequências traumáticas que exigirão cuidados múltiplos ao longo da vida.

O Brasil, que desde agosto último já sofria de surtos de violência no ambiente escolar, vê-se agora obrigado a encarar não só o ódio do matador de Blumenau, como as causas e consequências coletivas do ataque. As medidas anunciadas em Brasília no fragor do choque inicial estão longe de abarcar a complexidade do problema, mas é o que temos para hoje — verba de R$ 150 milhões para segurança nas 221 mil escolas do país, 50 policiais para monitorar incentivos ao ódio no esgoto digital, grupos de estudo multidisciplinar e transversal etc. Estranhamente, até a Sexta-Feira da Paixão, nenhum ministro, primeira-dama ou autoridade federal achou necessário levar o abraço do novo governo até as famílias enlutadas. Não que o gesto fosse capaz de diminuir a dor e o luto de toda uma comunidade. Mas um abraço com compaixão sincera e sem pompa oficial — vindo de uma autoridade — serve de alento, como atestam as centenas de famílias americanas abraçadas por Barack Obama e Joe Biden. Além do mais, nada custam, uma vez que demonstrar humanidade é grátis.

Cabe aqui, por inescapável, falar do papel da imprensa em episódios de grande comoção nacional. Algumas premissas já estão estabelecidas, por fartamente estudadas. A curiosidade humana em torno de um assassinato ou suicídio não deve ser alimentada a ponto de satisfazer um público de interesse mórbido e doentio, ávido por detalhes do ato. Também consta do beabá de todo jornalismo responsável não valorizar a figura do perpetrador que busca a notoriedade espetaculosa. Isso porque o “efeito contágio” de um transgressor estampado como celebridade pode servir de gatilho ao próximo anônimo intoxicado de ódio, que busca a fama. A partir do caso de Blumenau, o Grupo Globo e o Estado de S. Paulo assumiram como norma não divulgar sequer o nome ou a imagem do matador. Em contrapartida, o programa “Cidade alerta” da TV Record manteve equipes, helicópteros, drones e um apresentador tonitruante focados no matador. Um horror que escapa à qualificação de jornalismo. No Brasil da violência explícita, não é preciso fuçar na deep web para achar a desinformação perversa.

A necessidade de se mostrar é comum a humanos e animais, ensinou a pensadora magna do século XX, Hannah Arendt.

— Aparecer como prova de ser — escreveu.

Assim como um ator depende do palco, de colegas e dos espectadores para fazer sua entrada em cena, explicou ela, todo ser vivo depende de um mundo, de seus semelhantes e de espectadores que reconheçam sua existência.

Cabe a cada um de nós decidir quem queremos aplaudir no palco da vida e, em conjunto, quem devemos manter à distância por chafurdar no ódio.

 

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