Lei Antiterrorismo deveria incluir motivação política
O Globo
Omissão, resultado de pressão de movimentos
sociais, torna legislação mais branda com a barbárie
Investigações sobre o atentado na Praça dos
Três Poderes na semana passada mostram que o autor premeditou meticulosamente
suas ações. Saiu de Rio do Sul (SC), alugou uma quitinete onde foram
encontrados explosivos, instalou um trailer perto das sedes dos Poderes,
comprou fogos de artifício, anunciou nas redes sociais seu intuito e se
explodiu na frente do prédio do Supremo Tribunal Federal. Em suas redes, foram
encontradas críticas ao Supremo, aos presidentes da República, da Câmara e do
Senado. Foi um ato com todas as características de terrorismo.
Mas não para a legislação brasileira.
O diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, afirma que não há respaldo jurídico para enquadrar o caso como ato terrorista. Isso porque a Lei Antiterrorismo não prevê motivação política ou ideológica. Aprovada pouco antes da Olimpíada do Rio em 2016, ela define terrorismo como prática que visa a atingir um grupo em razão do preconceito de raça, etnia, cor, religião ou xenofobia. “Não se aplica a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe, ou de categoria profissional, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”, diz o texto.
Na época em que a lei foi discutida, no
governo Dilma Rousseff, houve pressão de movimentos políticos, partidos de
esquerda e diferentes corporações para que a motivação política ficasse fora,
sob a justificativa de que a lei serviria para perseguir adversários políticos
ou “criminalizar movimentos sociais”. A alegação não faz sentido. Leis
antiterrorismo de vários países incluem motivação política e em nada prejudicam
os movimentos sociais.
Nos Estados Unidos, a invasão ao Capitólio em
2021 foi enquadrada como “terrorismo doméstico”. A legislação pune “atos
criminais cometidos para promover objetivos ideológicos”. No Reino Unido, a lei
antiterrorismo inclui ações de cunho político. Na França, em casos semelhantes
o Código Penal estabelece punição a quem “perturbar gravemente a ordem pública
por razões políticas, ideológicas ou religiosas”. As leis alemãs também
contemplam a ideologia. A omissão na legislação brasileira beneficia os extremistas.
O atentado na Praça dos Três Poderes
infelizmente não foi o único ato terrorista recente — e nem é preciso discutir
as motivações ideológicas dos golpistas que tomaram de assalto as sedes dos
Poderes no 8 de Janeiro para encontrar outros exemplos. Também em janeiro de
2023, depois da posse de Lula, pelo menos quatro torres de energia foram
derrubadas e outras 16 danificadas em 11 ataques nos estados de São Paulo, Mato
Grosso, Paraná e Rondônia. Às vésperas do Natal de 2022, houve uma tentativa de
explodir um caminhão-tanque perto do Aeroporto de Brasília.
Nesta última, os acusados foram condenados
por crimes como “expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio”;
“causar incêndio em combustível ou inflamável”; “porte ilegal de arma de fogo e
artefato explosivo”. Nada de terrorismo. Se o homem-bomba não tivesse morrido
no atentado da semana passada, provavelmente seria enquadrado nos crimes de
abolição do Estado Democrático de Direito e explosão. Isso resultaria em penas
mais brandas que se condenado por terrorismo. É evidente que a legislação brasileira
precisa de ajustes para se adaptar à escalada do radicalismo e do ódio. O rigor
da lei é uma das condições para que a barbárie não prospere.
Concluir obras de Angra 3 seria a decisão
mais sensata para o país
O Globo
Diante do custo de manter construção parada,
governo não pode mais adiar uma solução
O governo federal decidirá até dezembro se
investirá para concluir as obras de Angra 3, terceira usina nuclear do país. A
análise deve ser feita sem preconceitos, considerando a necessidade da
transição energética imposta pelas mudanças climáticas e os custos financeiros
do projeto. Em vários países, a energia nuclear,
cujo nível de emissões é baixo na comparação com outras fontes, tem saído
vencedora nos debates. A China lidera a expansão, com dois novos reatores
inaugurados em 2022 e quatro outros em construção. No ano passado, a Finlândia
inaugurou a primeira usina na Europa em 15 anos. A França está construindo seis
novas, com a opção de iniciar outras oito. A Índia pretende triplicar sua
geração atômica até 2031.
Os defensores da conclusão de Angra 3
ressaltam que a usina produzirá energia firme e limpa para complementar a
produção crescente de fontes intermitentes. Além de quase não emitir gás
carbônico, a geração nuclear pode ser feita sob demanda diante da necessidade
(como a térmica), sem estar sujeita às variações de sol e vento (como solar e
eólica). Um estudo publicado pelo BNDES em setembro estimou que uma tarifa de
energia de R$ 653 por megawatt-hora, condizente com a geração térmica, tornaria
viável a conclusão das obras.
O que acontece nos Estados Unidos é
sintomático. Com o aumento da disputa pelo desenvolvimento de inteligência
artificial, que consome grande quantidade de eletricidade, gigantes digitais
fecharam nos últimos dois meses contratos de energia atômica. As fontes eólica
e solar foram mantidas, mas era preciso garantir fornecimento nas 24 horas do
dia — e só a energia nuclear assegurava isso sem aumentar a pegada de carbono.
Há duas críticas à geração atômica. A
primeira diz respeito à segurança. Desastres como Three Mile Island (Estados
Unidos), Tchernóbil (Ucrânia) e Fukushima (Japão) mostram que se trata de
questão fundamental. Mas a maioria avassaladora das centrais nucleares em
funcionamento no planeta jamais deu problemas do tipo. A França depende há
várias décadas de energia nuclear sem sobressalto. É possível mitigar os
riscos.
A segunda crítica se concentra nos custos.
Para entrar em operação, Angra 3 consumirá mais R$ 30 bilhões. Atrasos e
estouros no orçamento são recorrentes no setor e, num país como o Brasil,
costumam ganhar proporções maiores. A construção da central começou na década
de 1980 e, mesmo parada, a obra consome R$ 1 bilhão por ano só em manutenção
para evitar deterioração do equipamento. De acordo com o BNDES, desistir da
conclusão custaria R$ 21 bilhões, incluindo os gastos desde 2010, dívidas e
multas. Como parada ela já consome uma fortuna, não dá mais para adiar uma
decisão. Se o governo dispuser de R$ 30 bilhões para investir, a usina
produzirá a energia prometida e poderá pagar quanto foi despendido nela até
agora.
Brasil recua em competitividade digital e
ainda perde talentos
Valor Econômico
O atraso vai cobrar um alto preço de um país com um crônico baixo índice produtividade
O Brasil regrediu no ranking Mundial de
Competitividade Digital. Elaborado pelo suíço Internacional Institute for
Management Development (IMD), em parceria com o Núcleo de Inovação e
Tecnologias Digitais da Fundação Dom Cabral, o mais novo levantamento mostrou
que o país voltou ao patamar em que estava há cinco anos. É péssima sinalização
para o futuro, em um momento em que a inteligência artificial está
revolucionando a vida digital de pessoas, empresas e governos.
Entre 67 países avaliados, o Brasil ficou em
57º lugar. As últimas posições foram ocupadas por Peru, Mongólia, Gana, Nigéria
e Venezuela. Na dianteira estão Cingapura, Suíça, Dinamarca, Estados Unidos e
Suécia.
Nos primeiros rankings, de 2018 e 2019, o
Brasil havia ficado exatamente na 57ª posição. Nos anos da pandemia, o país
surpreendentemente avançou para o 51º lugar em 2020 e 2021 e ficou em 52º em
2022. No ano passado, porém, recuou para o 57º lugar, em que estagnou neste
ano.
Três pontos fundamentam o levantamento:
conhecimento, tecnologia e prontidão para o futuro, que se desdobram em outros
três cada um. O Brasil recuou nos três principais indicadores entre 2022 e este
ano, caindo do 55º lugar para o 56º em tecnologia; do 51º para o 56º em
conhecimento; e do 47º para 53º em prontidão para o futuro.
O relatório aponta alguns pontos positivos do
Brasil, como o total de gastos públicos em educação, produtividade em estudos
de pesquisa e inovação, e políticas de inteligência artificial. Recente
relatório “Education at a Glance 2024”, da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), registra que o Brasil gasta ao redor de 5% do
PIB em educação, patamar semelhante ao de países como a Suécia e a Nova
Zelândia, considerados referência na área. Mas pelo critério mais adequado de
despesas por aluno na educação básica e universidades, os países da OCDE gastam
em média três vezes mais.
Outro destaque é o investimento em
telecomunicações, cujos números captam a implantação do 5G. O setor tem
canalizado R$ 35 bilhões em média anualmente, a maior parte para a
infraestrutura do 5G. Apesar disso, há algum atraso no processo, e dados da
Anatel mostram que a adoção do 5G ainda é incipiente entre as empresas, que
somam 2,2 milhões de conexões.
O elevado uso de smartphone pela população
colocou o Brasil em 14º lugar no ranking do IMD. Pesquisa do IBGE constatou que
96,7% dos domicílios brasileiros tinham telefone celular móvel em 2023 em
comparação com 93,1% em 2016, ocupando cada vez mais o lugar do telefone fixo
convencional, que sobrevivia em 9,5% das casas.
Houve avanço no acesso à internet, registrado
em 92,5% do total de domicílios em 2023, sendo o percentual de 94,1% nas áreas
urbanas e 81% nas rurais. No entanto, esses números ficam distantes dos
conquistados pela maioria dos países do ranking do IMD, de modo que o Brasil
ficou em 54º lugar em assinantes de banda larga móvel e na mesma posição em
usuários de internet por mil habitantes. O custo elevado foi a justificativa
dada ao IBGE em 30% dos domicílios não conectados à rede.
A falta de recursos para investimentos e os
juros elevados prejudicaram o Brasil em várias frentes do ranking. O país ficou
abaixo da 60ª colocação em financiamento para o desenvolvimento tecnológico e a
disponibilidade de capital de risco. Outra pesquisa, esta da consultoria PwC
também com a Fundação Dom Cabral, constatou que o aumento do custo do capital
levou 45,1% das empresas brasileiras a adotarem atitude mais cautelosa em
relação às iniciativas digitais, limitando-se a investimentos mais modestos. Com
isso, sua competitividade digital avança lentamente. Entre 2023 e 2024, o
índice que mede a maturidade das companhias nesse quesito (chamado de ITDBr)
passou de 3,3 para 3,7 no país, em uma escala de um a seis. Na frente
regulatória, há problemas ainda tecnologia de comunicações (60ºlugar), uso de
big data e analytics (60º) e segurança digital (59º).
Mas talvez o ponto mais preocupante seja a
dificuldade do país de reter talentos, item em que fica em penúltimo lugar
(66º), e de transferir conhecimento, no último lugar (67º). Os talentos para
melhorar a competitividade digital do Brasil existem, mas muitos acabam
deixando o país ou então trabalham para empresas estrangeiras mesmo estando
aqui. Em 2023, aumentou em 46% a contratação de profissionais nacionais por
empresas internacionais.
O Brasil é a quinta nação com maior número de
profissionais que trabalham para companhias de fora, atrás apenas de Filipinas,
EUA, Colômbia e Argentina, de acordo com o Relatório Global de Contratações
Internacionais da Deel. EUA, Reino Unido, Suécia e Canadá estão entre os países
com maior interesse em talentos brasileiros, segundo a pesquisa.
Custo alto do capital, em decorrência dos
problemas fiscais, dificuldade para reter talentos e disseminar o conhecimento
são fatores que prejudicam a capacidade do Brasil de avançar em meio a uma nova
revolução digital. O atraso vai cobrar um alto preço de um país com um crônico
baixo índice produtividade.
Cúpula do G20 antecipa dificuldades de Lula
com Trump
Folha de S. Paulo
Com o argentino Milei no papel de preposto do
republicano e Janja causando embaraço, Brasil vê agenda positiva ofuscada
Grandes reuniões
internacionais tendem a servir mais ao anfitrião do que à
coletividade global. Cabe ao país que as sedia garantir uma agenda positiva,
seja para consumo externo, doméstico ou ambos.
É o paradoxo do multilateralismo —muita gente
reunida dificilmente chega a consensos que não se baseiem em platitudes. A
alternativa, o "diktat", é pior.
Por certo interessa ao Brasil ver uma
declaração final consensual na reunião do G20 ora em curso pela primeira vez no
país. Logo, poupar a autocracia russa acerca da Guerra da Ucrânia,
por exemplo, faz sentido pontual.
Para Moscou, seus aliados chineses e
simpatizantes em Nova Déli e outras capitais, a vantagem é outra. A todos
interessa, cada um a seu modo, demonstrar
musculatura ante o Ocidente.
Que isso traia a dificuldade de o Brasil
encaixar um discurso sobre a guerra é dano colateral. Assim como, na mão
inversa, o malabarismo para criticar o conflito no Oriente Médio sem melindrar
os EUA, fiadores de Israel.
Restaria ao governo de Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
aproveitar a oportunidade, algo que terá também no ano que vem, quando, depois
de presidir de forma rotativa o grupo das principais economias ricas e
emergentes, estará à frente do Brics e receberá a reunião ambiental COP30.
Com o foco na agenda ambiental, ajudado pela
ida do americano Joe Biden à
Amazônia, e a inserção de uma versão
global de suas preocupações com a fome, o líder petista parecia
caminhar na direção correta.
Mas a realidade se interpôs e, de largada, o
G20 tem servido como mostra dos percalços que esperam o brasileiro com a volta
do republicano Donald Trump à
Casa Branca, a partir de janeiro.
O argentino Javier Milei fez
valer a alcunha de "meu presidente preferido" que recebeu de Trump.
A Argentina assumiu
no encontro, como já havia feito na COP29, o papel de representante do
trumpismo no ocaso de Biden.
Trouxe dificuldades à negociação do texto
final, nada muito diferente daquilo que Washington fará na próxima gestão. De
todo modo, é algo precificado.
O que estava fora do roteiro ocorreu por
graça e obra da primeira-dama brasileira, Rosângela da Silva, Janja,
que ocupou um inexplicável protagonismo.
Gratuitamente, ela ofendeu o bilionário Elon Musk com
um termo chulo
em inglês. A diatribe pode fazer sucesso em nichos das redes
sociais, mas tem implicações. Goste-se ou não, Musk será figura importante na
administração da maior potência global.
Sua reação foi
também inapropriada, pregando a derrota eleitoral do PT em 2026 —além de futura
autoridade, Musk controla a rede social X, outrora Twitter.
Mas o ônus maior fica com Janja e seu marido,
cujas referências pretéritas a Trump já o colocavam em posição vulnerável, não
menos pela proximidade do americano com Jair
Bolsonaro (PL). Se deseja relações
amistosas com os EUA, Lula começa mal.
A alarmante internacionalização das facções
brasileiras
Folha de S. Paulo
Relatório aponta a presença de máfias
estrangeiras no país; urge integração entre autoridades, inteligência e
rastreamento do dinheiro
A recente
emboscada em que encapuzados com fuzis assassinaram um delator
do Primeiro
Comando da Capital no maior aeroporto do país, ainda em
apuração, não deixa de ser um indicativo de que facções brasileiras
se assemelham cada vez mais a cartéis e máfias transnacionais, tanto na
metodologia como na sofisticação de suas atividades criminosas.
Se de início quadrilhas como o PCC atuavam
localmente, sobretudo em assaltos, tráfico de drogas e no controle
paralelo de unidades prisionais, a expansão delituosa ganhou novos
contornos.
Entre outros, na lavagem de
dinheiro, com criptomoedas e bancos digitais, que dificultam o
rastreamento; na infiltração
no poder público, com cargos eletivos e suspeitas de envolvimento
com prefeituras; e em conexões com congêneres de outros países.
Neste último, um relatório a ser divulgado
nesta semana aponta um
intercâmbio crescente de facções com grupo do exterior,
principalmente da América Latina.
O estudo, uma parceria de Diálogo
Interamericano, Fundação Fernando Henrique Cardoso e Instituto de Relações
Internacionais da USP, analisou políticas de segurança implementadas em São
Paulo e no Rio de Janeiro.
Ainda que a profissionalização do banditismo
e a escalada da violência estejam em níveis menos alarmantes por aqui, o
documento revela o aumento da presença de cartéis mexicanos, colombianos,
venezuelanos e até albaneses em território nacional.
Notou-se, a exemplo dos "maras",
como são conhecidas as gangues da América Central, avanço nas práticas de
extorsão, no controle de territórios —especialmente onde a presença do Estado é
deficitária— e na influência em administrações municipais.
O narcoestado colombiano dos anos 1990 ou a atual
realidade mexicana ainda podem ser fantasmas distantes, mas já
há no país 72 facções criminosas vinculadas à venda de entorpecentes.
Cumpre ao Brasil intensificar desde já a
colaboração entre entes federativos, polícias, Forças Armadas, serviços de
inteligência e autoridades internacionais, além de enfrentar a porosidade
das fronteiras. O melhor caminho é "seguir o dinheiro",
estratégia cujo objetivo visa estrangular transações financeiras e inviabilizar
as múltiplas e complexas ações do crime organizado.
Trata-se de tarefa hercúlea, mas a progressiva
descriminalização das drogas, apoiada por esta Folha, pode
ajudar a concentrar esforços e agentes públicos no combate aos grandes
distribuidores —em vez de ações inócuas contra varejistas e usuários.
STF decide que pobres são incapazes
O Estado de S. Paulo
Ao mandar o governo impedir que benefício do
Bolsa Família seja usado para pagar ‘bets’, Supremo dá a entender que pobres,
por definição, não sabem tomar decisões sobre seu dinheiro
O colegiado do Supremo Tribunal Federal
(STF), em decisão unânime, confirmou a liminar do ministro Luiz Fux que obriga
o governo federal a adotar mecanismos técnicos para impedir que beneficiários
do Bolsa Família utilizem recursos do programa em apostas online, as
chamadas bets. Decerto todos os ministros do STF acreditam ter dormido o
sono dos justos na noite do dia 14 passado, seguros de terem tomado mais uma
daquelas decisões “iluministas” – agora no sentido de resguardar os brasileiros
mais desvalidos dos males dos jogos de azar. A demão de virtude, porém, mal
esconde o autoritarismo, o preconceito, a incoerência e a afronta à
Constituição que subjazem à suposta boa intenção.
Senão vejamos. A decisão do STF é autoritária
porque determina como uma parcela dos cidadãos deve dispor de seu próprio
dinheiro. O Bolsa Família, deveria ser ocioso lembrar após tantos anos de
vigência do programa, não é necessariamente voltado à alimentação dos
beneficiários. Fosse assim, seria o caso de o governo federal substituir o
Bolsa Família por um “cartão alimentação”, utilizável apenas em vendas e
supermercados para compra de comida. Além disso, por que proibir o uso desse
dinheiro apenas em apostas, e não, por exemplo, em bebidas alcoólicas, cigarros
ou prostituição? Pensando bem, diante do ânimo paternalista do Supremo, é
melhor não dar ideias.
Cada brasileiro tem o direito de dispor de
sua renda como bem entender, mas, para os doutos ministros do Supremo, isso não
se aplica aos cidadãos cuja renda deriva da transferência do Bolsa Família.
Estes, conforme o entendimento dos magistrados, são incapazes de tomar suas
decisões e de arcar com as consequências delas.
A decisão do STF também é preconceituosa
porque trata os brasileiros mais pobres como uma massa de incapazes que
precisam ser tutelados pelo Estado, como se a pobreza, por si só, os tornasse
ignorantes em termos de dinheiro. Os prejuízos individuais e familiares –
sociais e financeiros – do vício em jogos de azar recaem sobre os cidadãos em
geral, inclusive, e sobretudo, sobre os que mais têm recursos para apostar nas
tais bets. E não consta que os ministros do Supremo cogitem de determinar
como esses cidadãos mais abonados, não necessariamente mais ricos, vão dispor
de seu patrimônio. Por que, então, fazê-lo em relação aos beneficiários do
Bolsa Família, senão por uma visão enviesada sobre eles apenas em razão da
fonte de sua renda?
Não bastasse tudo isso, a decisão do STF de
determinar que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e
Combate à Fome impeça o uso do Bolsa Família para apostas online é ainda
incoerente. Desde o início, o programa de transferência de renda prioriza as
mulheres, em particular as mães chefes de família, como as responsáveis pelo
recebimento do benefício. O Estado sempre tratou essas cidadãs como as mais
aptas para gerir os recursos, sem jamais tolher sua capacidade de decidir onde
e como empregar o Bolsa Família. No máximo, há algumas contrapartidas muito
razoáveis, como, por exemplo, manter a vacinação dos filhos em dia,
matriculá-los na escola, entre outras. Pois esse mesmo Estado, representado por
sua mais alta Corte de Justiça, agora parece não vê-las assim tão responsáveis
como outrora.
Por fim, mas não menos importante, a decisão
do STF é afrontosa à Constituição, por incrível que possa parecer, em
particular ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º
da Lei Maior. Está claro para este jornal que um Estado que considera uma
expressiva parcela de seus nacionais incapaz de tomar decisões que afetam
diretamente sua vida apenas porque recebe um benefício público é um Estado que
a trata de forma indigna.
Os males da jogatina nada têm a ver com
pobreza. É possível que, a depender do caso, o impacto das apostas online na
renda e no patrimônio de um beneficiário do Bolsa Família seja até
proporcionalmente menor do que a dilapidação de grandes fortunas em decorrência
do vício em jogos de azar entre os mais ricos. É de paternalismo, puro e
simples, que se está tratando.
Uma COP nebulosa
O Estado de S. Paulo
A discussão sobre repasses dos países ricos
aos pobres para mitigar as mudanças climáticas será improdutiva se não forem
concertados objetivos realistas e meios eficazes para satisfazê-los
Já se sabia que as discussões na 29.ª
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-29), no
Azerbaijão, seriam difíceis, a começar por sua pauta principal: dinheiro. A
expectativa é a de que os participantes restabeleçam as metas de recursos
transferidos das nações ricas para as pobres enfrentarem as mudanças
climáticas. A promessa de 2009, de US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020, foi
cumprida com dois anos de atraso. Agora, o secretário-geral da ONU, António
Guterres, fala em “trilhões”.
Mas a reeleição de Donald Trump na nação mais
rica e poderosa do planeta, e também uma das maiores emissoras de gás
carbônico, é um balde de água fria. As mais inequívocas de suas promessas são
aquelas contra as políticas climáticas. Os EUA certamente sairão do Acordo de
Paris.
Há razões para se angustiar, mas não para se
desesperar. Os EUA já haviam abandonado o Acordo antes, e as tratativas
seguiram mesmo assim. As eleições de meio de mandato podem levar a um
reequilíbrio de forças. O sistema federativo garante alguma autonomia aos
governadores, e muitos estão comprometidos com políticas climáticas. Ademais,
Trump não revogará os recursos do Pacote Verde de Joe Biden a Estados
republicanos e democratas.
Independentemente disso, os membros da COP,
até para desacreditar críticos como Trump, precisam alinhar as expectativas a
fins realistas e meios eficazes. “Abandonemos qualquer ideia de que o
financiamento climático é caridade”, disse Simon Stiell, a maior autoridade
climática da ONU. “Um novo financiamento ambicioso serve totalmente ao
autointeresse de cada nação.” Em tese, é verdade. Mas, na prática, as questões
decisivas são: quanto será gasto, por quem e em quê.
Os países ricos querem cortar emissões, mas a
prioridade dos países pobres é erradicar a pobreza. Em teoria e no longo prazo,
são objetivos compatíveis. Mas, a curto prazo, os países pobres precisam de
combustíveis fósseis para crescer, e, na prática, será preciso fazer escolhas
baseadas em cálculos de custos e benefícios.
A expectativa de trilhões a título de
“reparações” por danos climáticos dos ricos aos pobres é irrealista. Os US$ 2,5
trilhões que alguns ativistas demandam implicariam um custo aproximado de US$
1.000 para cada pessoa nos países ricos todos os anos, algo que os eleitores
simplesmente não aceitarão. De resto, quanto desse dinheiro seria tolhido do
combate à pobreza, desnutrição ou analfabetismo? E mesmo que se chegue a um
novo montante para o clima, quais garantias os doadores terão, em termos de
governança, de que será bem empregado?
Finalmente, há a questão desse emprego mesmo.
Os países pobres continuarão precisando de grandes quantidades de combustíveis
baratos e confiáveis para crescer. Hoje, só os fósseis oferecem essas
condições, e dinheiro para “reparações” não alterará essa realidade. A solução
definitiva é encontrar uma energia verde tão barata e confiável quanto a
fóssil. Mas isso exige investimentos em pesquisa e desenvolvimento. De novo,
quanto do montante discutido na COP será dedicado a esse fim?
Sem respostas a estas questões, o debate
sobre o quanto gastar só levará à acrimônia e frustração, e a tendência é que
mesmo os avanços da COP sejam submergidos em um clima de pessimismo. E houve
avanços. De saída, aprovou-se um acordo sobre padrões globais para o mercado de
carbono, pelo qual países e empresas poderão compensar suas emissões comprando
créditos gerados por agentes que já reduziram as suas. Mas o próprio Brasil é
um exemplo de como esses avanços podem ser frustrados por falta de diligência. Só
agora o País, que sediará a COP-30, está aprovando o seu próprio regulamento
para o mercado de carbono.
Isso serve de alerta aos países em
desenvolvimento. É do autointeresse dos ricos ajudá-los a mitigar o aquecimento
global e seus efeitos. Mas, além de pleitear um montante realista, que não
prejudique excessivamente nem os gastos com desenvolvimento social nem com o
desenvolvimento dos combustíveis verdes, os países pobres também precisam fazer
a sua lição de casa. Se pleitearem recursos a título de mera “caridade”, a
chance de recebê-los diminui.
Muito pouco, muito tarde
O Estado de S. Paulo
A dias de dar lugar a um crítico da ajuda à
Ucrânia, Joe Biden dá uma força a Kiev
Com mil dias de guerra e a dois meses do
final de seu mandato, o presidente americano, Joe Biden, finalmente concedeu a
Kiev permissão para atingir o território russo com mísseis americanos. Segundo
o jornal francês Le Figaro, França e Reino Unido também autorizaram o emprego
de seus mísseis. Aliados europeus pressionam o relutante governo alemão a fazer
o mesmo.
A mudança de paradigma é significativa. Pela
primeira vez, um país com arsenal nuclear pode ser atacado por mísseis de
potências adversárias. Na prática, é improvável que isso implique mudanças
dramáticas de rumo no campo de batalha. Mas ao menos dará uma injeção de vigor
no moral ucraniano, bastante degradado pelos avanços russos recentes, e
fortalecerá a mão de Kiev para negociações que, ao que tudo indica, vão ocorrer
no início do governo de Donald Trump.
O sinal verde não é irrestrito. Os ataques,
em princípio, estarão limitados à região de Kursk Oblast, parcialmente ocupada
por forças ucranianas. A motivação imediata é deter tropas norte-coreanas
empregadas na região e dissuadir Pyongyang e Moscou de ampliarem sua
colaboração. Os danos à capacidade militar russa serão limitados. Segundo o
Pentágono, 90% dos caças russos que estão bombardeando a Ucrânia foram
deslocados para áreas fora do alcance dos mísseis. Ainda assim, outros alvos,
como depósitos de munição, postos de comando ou núcleos logísticos, podem ser
atingidos.
A grande questão é sobre a dimensão dos
riscos. Vladimir Putin afirma que um ataque com mísseis ocidentais na Rússia
significará um “envolvimento direto” na guerra, insinuando um conflito nuclear.
A Ucrânia, porém, já vem utilizando mísseis para atacar posições inimigas na
Crimeia, que Moscou considera território russo. Apesar das ameaças, a invasão
de Kursk Oblast também não foi respondida com arsenal nuclear. Kiev, por sua
vez, não arriscará perder o favor dos aliados transgredindo linhas traçadas por
eles.
Putin está em condições relativamente
favoráveis. Trump nunca condenou a invasão e favorece abertamente uma solução
negociada. O Kremlin nega, mas, segundo a equipe de Trump, os dois líderes
teriam conversado e Trump teria pedido contenção. A resposta de Putin nos
últimos dias – uma saraivada de mísseis sobre a rede elétrica ucraniana, com
grandes danos aos civis às portas do inverno – sinaliza que as negociações
serão em termos duros. Mas Putin não pode arriscar encurralar Trump em uma
posição de “perdedor” que nem ele nem o establishment republicano tolerarão.
Se Putin sabe que terá de fazer concessões a
Trump, Kiev tentará ganhar a seu favor oferecendo vantagens aos EUA, como, por
exemplo, a exploração de recursos naturais ucranianos ou o emprego de tropas na
Europa.
É provável que até a posse de Trump ambos os
lados tentem infligir severos danos um ao outro buscando fortalecer suas
posições. Os conflitos devem se intensificar, possivelmente atingindo um pico
na guerra. Os riscos de erros de cálculo aumentam. Mas ambos têm razões para
não queimar suas fichas em apostas excessivamente temerárias.
Semana decisiva para a crise climática
Correio Baziliense
Nesta semana de fortes negociações
internacionais, Manaus e Rio de Janeiro estão aproximadas pela urgência da
adoção de medidas que, de fato, contenham a crise climática
O presidente Joe Biden, primeiro mandatário
norte-americano a visitar a Região Amazônica, fez uma doação de US$ 50 milhões
ao Fundo Amazônia logo depois de desembarcar, no domingo, em Manaus. Em
seguida, voou para o Rio de Janeiro para participar da reunião da
Cúpula do G20, iniciada ontem, que reúne os países mais ricos do mundo.
São milhares de quilômetros de distância entre uma cidade e outra, mas, nesta
semana de fortes negociações internacionais, as capitais estão aproximadas pela
urgência da adoção de medidas que, de fato, contenham a crise climática.
A possibilidade de a doação de Biden chegar
aos cofres do Fundo Amazônia é bastante remota. O democrata está na reta final
do mandato e entregará as chaves da Casa Branca a Donald Trump, que, em janeiro
de 2025, inicia o seu segundo governo como presidente dos Estados Unidos e dá
sinais claros de que, como na primeira gestão, não investirá em medidas de
combate às mudanças climáticas. Ao contrário, ele alega não acreditar no
aquecimento global. Além disso, o dinheiro prometido precisa ser aprovado pelo Congresso
norte-americano, onde o Partido Republicano, de Trump, fez maioria nas últimas
eleições gerais.
Ao contrário do que prega Trump, desmatamento
e queimadas de florestas, emissão de carbono das indústrias, poluição de rios e
mares são fatores indissociáveis das alterações climáticas. Estudos científicos
e registros sucessivos de fenômenos extremos são a prova disso. No Brasil, as
enchentes na Região Sul causaram inéditos e gravíssimos danos materiais e
perdas de vida. Biden conheceu uma floresta afetada por uma seca rigorosa
histórica, em que cursos d'água caudalosos, como o Rio Negro, secaram e deixaram
várias comunidades isoladas.
Pelo resto do mundo, os extremos causam estragos e surpresas — como a neve que se acumulou, pela primeira vez, no deserto da Arábia Saudita, no início deste mês. As dificuldades em enfrentar o problema também são extensas, não se limitando ao futuro governo americano. Em sua semana decisiva, a 29ª Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas (COP29), em Baku, capital do Azerbaijão, tem como objetivo definir a contribuição dos países para o enfrentamento das mudanças climáticas. É forte, porém, o temor de que o objetivo não saia do papel.
A quatro dias do encerramento da COP, os
representantes do Brasil na conferência, a ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva, e o embaixador André Corrêa do Lago, chefe da delegação brasileira,
retornaram ao Brasil para tentar sensibilizar e pressionar os líderes de países
ricos, reunidos no G20, para que definam com quanto irão contribuir. Segundo
cálculos da Organização das Nações Unidas (ONU), será necessário
arrecadar US$ 1 trilhão por ano, até 2030, para enfrentar e adequar os países
mais pobres à nova realidade.
Ante o aumento do aquecimento global, eventos climáticos cada vez mais danosos à vida humana e às cidades, no entendimento das Nações Unidas, não há mais tempo a perder. Não bastam boas intenções. É imprescindível e urgente a construção do consenso entre as nações a fim de tornar reais as intervenções indispensáveis para mitigar os danos das alterações do clima e garantir a continuidade da vida no planeta. Anfitrião dos países mais poderosos do planeta nesta semana, da COP do ano que vem e dono de uma das maiores biodiversidades do planeta, o Brasil é peça-chave nesse desafio vital.
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