terça-feira, 19 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Lei Antiterrorismo deveria incluir motivação política

O Globo

Omissão, resultado de pressão de movimentos sociais, torna legislação mais branda com a barbárie

Investigações sobre o atentado na Praça dos Três Poderes na semana passada mostram que o autor premeditou meticulosamente suas ações. Saiu de Rio do Sul (SC), alugou uma quitinete onde foram encontrados explosivos, instalou um trailer perto das sedes dos Poderes, comprou fogos de artifício, anunciou nas redes sociais seu intuito e se explodiu na frente do prédio do Supremo Tribunal Federal. Em suas redes, foram encontradas críticas ao Supremo, aos presidentes da República, da Câmara e do Senado. Foi um ato com todas as características de terrorismo. Mas não para a legislação brasileira.

O diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, afirma que não há respaldo jurídico para enquadrar o caso como ato terrorista. Isso porque a Lei Antiterrorismo não prevê motivação política ou ideológica. Aprovada pouco antes da Olimpíada do Rio em 2016, ela define terrorismo como prática que visa a atingir um grupo em razão do preconceito de raça, etnia, cor, religião ou xenofobia. “Não se aplica a conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe, ou de categoria profissional, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”, diz o texto.

Na época em que a lei foi discutida, no governo Dilma Rousseff, houve pressão de movimentos políticos, partidos de esquerda e diferentes corporações para que a motivação política ficasse fora, sob a justificativa de que a lei serviria para perseguir adversários políticos ou “criminalizar movimentos sociais”. A alegação não faz sentido. Leis antiterrorismo de vários países incluem motivação política e em nada prejudicam os movimentos sociais.

Nos Estados Unidos, a invasão ao Capitólio em 2021 foi enquadrada como “terrorismo doméstico”. A legislação pune “atos criminais cometidos para promover objetivos ideológicos”. No Reino Unido, a lei antiterrorismo inclui ações de cunho político. Na França, em casos semelhantes o Código Penal estabelece punição a quem “perturbar gravemente a ordem pública por razões políticas, ideológicas ou religiosas”. As leis alemãs também contemplam a ideologia. A omissão na legislação brasileira beneficia os extremistas.

O atentado na Praça dos Três Poderes infelizmente não foi o único ato terrorista recente — e nem é preciso discutir as motivações ideológicas dos golpistas que tomaram de assalto as sedes dos Poderes no 8 de Janeiro para encontrar outros exemplos. Também em janeiro de 2023, depois da posse de Lula, pelo menos quatro torres de energia foram derrubadas e outras 16 danificadas em 11 ataques nos estados de São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Rondônia. Às vésperas do Natal de 2022, houve uma tentativa de explodir um caminhão-tanque perto do Aeroporto de Brasília.

Nesta última, os acusados foram condenados por crimes como “expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio”; “causar incêndio em combustível ou inflamável”; “porte ilegal de arma de fogo e artefato explosivo”. Nada de terrorismo. Se o homem-bomba não tivesse morrido no atentado da semana passada, provavelmente seria enquadrado nos crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e explosão. Isso resultaria em penas mais brandas que se condenado por terrorismo. É evidente que a legislação brasileira precisa de ajustes para se adaptar à escalada do radicalismo e do ódio. O rigor da lei é uma das condições para que a barbárie não prospere.

Concluir obras de Angra 3 seria a decisão mais sensata para o país

O Globo

Diante do custo de manter construção parada, governo não pode mais adiar uma solução

O governo federal decidirá até dezembro se investirá para concluir as obras de Angra 3, terceira usina nuclear do país. A análise deve ser feita sem preconceitos, considerando a necessidade da transição energética imposta pelas mudanças climáticas e os custos financeiros do projeto. Em vários países, a energia nuclear, cujo nível de emissões é baixo na comparação com outras fontes, tem saído vencedora nos debates. A China lidera a expansão, com dois novos reatores inaugurados em 2022 e quatro outros em construção. No ano passado, a Finlândia inaugurou a primeira usina na Europa em 15 anos. A França está construindo seis novas, com a opção de iniciar outras oito. A Índia pretende triplicar sua geração atômica até 2031.

Os defensores da conclusão de Angra 3 ressaltam que a usina produzirá energia firme e limpa para complementar a produção crescente de fontes intermitentes. Além de quase não emitir gás carbônico, a geração nuclear pode ser feita sob demanda diante da necessidade (como a térmica), sem estar sujeita às variações de sol e vento (como solar e eólica). Um estudo publicado pelo BNDES em setembro estimou que uma tarifa de energia de R$ 653 por megawatt-hora, condizente com a geração térmica, tornaria viável a conclusão das obras.

O que acontece nos Estados Unidos é sintomático. Com o aumento da disputa pelo desenvolvimento de inteligência artificial, que consome grande quantidade de eletricidade, gigantes digitais fecharam nos últimos dois meses contratos de energia atômica. As fontes eólica e solar foram mantidas, mas era preciso garantir fornecimento nas 24 horas do dia — e só a energia nuclear assegurava isso sem aumentar a pegada de carbono.

Há duas críticas à geração atômica. A primeira diz respeito à segurança. Desastres como Three Mile Island (Estados Unidos), Tchernóbil (Ucrânia) e Fukushima (Japão) mostram que se trata de questão fundamental. Mas a maioria avassaladora das centrais nucleares em funcionamento no planeta jamais deu problemas do tipo. A França depende há várias décadas de energia nuclear sem sobressalto. É possível mitigar os riscos.

A segunda crítica se concentra nos custos. Para entrar em operação, Angra 3 consumirá mais R$ 30 bilhões. Atrasos e estouros no orçamento são recorrentes no setor e, num país como o Brasil, costumam ganhar proporções maiores. A construção da central começou na década de 1980 e, mesmo parada, a obra consome R$ 1 bilhão por ano só em manutenção para evitar deterioração do equipamento. De acordo com o BNDES, desistir da conclusão custaria R$ 21 bilhões, incluindo os gastos desde 2010, dívidas e multas. Como parada ela já consome uma fortuna, não dá mais para adiar uma decisão. Se o governo dispuser de R$ 30 bilhões para investir, a usina produzirá a energia prometida e poderá pagar quanto foi despendido nela até agora.

Brasil recua em competitividade digital e ainda perde talentos

Valor Econômico

O atraso vai cobrar um alto preço de um país com um crônico baixo índice produtividade

O Brasil regrediu no ranking Mundial de Competitividade Digital. Elaborado pelo suíço Internacional Institute for Management Development (IMD), em parceria com o Núcleo de Inovação e Tecnologias Digitais da Fundação Dom Cabral, o mais novo levantamento mostrou que o país voltou ao patamar em que estava há cinco anos. É péssima sinalização para o futuro, em um momento em que a inteligência artificial está revolucionando a vida digital de pessoas, empresas e governos.

Entre 67 países avaliados, o Brasil ficou em 57º lugar. As últimas posições foram ocupadas por Peru, Mongólia, Gana, Nigéria e Venezuela. Na dianteira estão Cingapura, Suíça, Dinamarca, Estados Unidos e Suécia.

Nos primeiros rankings, de 2018 e 2019, o Brasil havia ficado exatamente na 57ª posição. Nos anos da pandemia, o país surpreendentemente avançou para o 51º lugar em 2020 e 2021 e ficou em 52º em 2022. No ano passado, porém, recuou para o 57º lugar, em que estagnou neste ano.

Três pontos fundamentam o levantamento: conhecimento, tecnologia e prontidão para o futuro, que se desdobram em outros três cada um. O Brasil recuou nos três principais indicadores entre 2022 e este ano, caindo do 55º lugar para o 56º em tecnologia; do 51º para o 56º em conhecimento; e do 47º para 53º em prontidão para o futuro.

O relatório aponta alguns pontos positivos do Brasil, como o total de gastos públicos em educação, produtividade em estudos de pesquisa e inovação, e políticas de inteligência artificial. Recente relatório “Education at a Glance 2024”, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), registra que o Brasil gasta ao redor de 5% do PIB em educação, patamar semelhante ao de países como a Suécia e a Nova Zelândia, considerados referência na área. Mas pelo critério mais adequado de despesas por aluno na educação básica e universidades, os países da OCDE gastam em média três vezes mais.

Outro destaque é o investimento em telecomunicações, cujos números captam a implantação do 5G. O setor tem canalizado R$ 35 bilhões em média anualmente, a maior parte para a infraestrutura do 5G. Apesar disso, há algum atraso no processo, e dados da Anatel mostram que a adoção do 5G ainda é incipiente entre as empresas, que somam 2,2 milhões de conexões.

O elevado uso de smartphone pela população colocou o Brasil em 14º lugar no ranking do IMD. Pesquisa do IBGE constatou que 96,7% dos domicílios brasileiros tinham telefone celular móvel em 2023 em comparação com 93,1% em 2016, ocupando cada vez mais o lugar do telefone fixo convencional, que sobrevivia em 9,5% das casas.

Houve avanço no acesso à internet, registrado em 92,5% do total de domicílios em 2023, sendo o percentual de 94,1% nas áreas urbanas e 81% nas rurais. No entanto, esses números ficam distantes dos conquistados pela maioria dos países do ranking do IMD, de modo que o Brasil ficou em 54º lugar em assinantes de banda larga móvel e na mesma posição em usuários de internet por mil habitantes. O custo elevado foi a justificativa dada ao IBGE em 30% dos domicílios não conectados à rede.

A falta de recursos para investimentos e os juros elevados prejudicaram o Brasil em várias frentes do ranking. O país ficou abaixo da 60ª colocação em financiamento para o desenvolvimento tecnológico e a disponibilidade de capital de risco. Outra pesquisa, esta da consultoria PwC também com a Fundação Dom Cabral, constatou que o aumento do custo do capital levou 45,1% das empresas brasileiras a adotarem atitude mais cautelosa em relação às iniciativas digitais, limitando-se a investimentos mais modestos. Com isso, sua competitividade digital avança lentamente. Entre 2023 e 2024, o índice que mede a maturidade das companhias nesse quesito (chamado de ITDBr) passou de 3,3 para 3,7 no país, em uma escala de um a seis. Na frente regulatória, há problemas ainda tecnologia de comunicações (60ºlugar), uso de big data e analytics (60º) e segurança digital (59º).

Mas talvez o ponto mais preocupante seja a dificuldade do país de reter talentos, item em que fica em penúltimo lugar (66º), e de transferir conhecimento, no último lugar (67º). Os talentos para melhorar a competitividade digital do Brasil existem, mas muitos acabam deixando o país ou então trabalham para empresas estrangeiras mesmo estando aqui. Em 2023, aumentou em 46% a contratação de profissionais nacionais por empresas internacionais.

O Brasil é a quinta nação com maior número de profissionais que trabalham para companhias de fora, atrás apenas de Filipinas, EUA, Colômbia e Argentina, de acordo com o Relatório Global de Contratações Internacionais da Deel. EUA, Reino Unido, Suécia e Canadá estão entre os países com maior interesse em talentos brasileiros, segundo a pesquisa.

Custo alto do capital, em decorrência dos problemas fiscais, dificuldade para reter talentos e disseminar o conhecimento são fatores que prejudicam a capacidade do Brasil de avançar em meio a uma nova revolução digital. O atraso vai cobrar um alto preço de um país com um crônico baixo índice produtividade.

Cúpula do G20 antecipa dificuldades de Lula com Trump

Folha de S. Paulo

Com o argentino Milei no papel de preposto do republicano e Janja causando embaraço, Brasil vê agenda positiva ofuscada

Grandes reuniões internacionais tendem a servir mais ao anfitrião do que à coletividade global. Cabe ao país que as sedia garantir uma agenda positiva, seja para consumo externo, doméstico ou ambos.

É o paradoxo do multilateralismo —muita gente reunida dificilmente chega a consensos que não se baseiem em platitudes. A alternativa, o "diktat", é pior.

Por certo interessa ao Brasil ver uma declaração final consensual na reunião do G20 ora em curso pela primeira vez no país. Logo, poupar a autocracia russa acerca da Guerra da Ucrânia, por exemplo, faz sentido pontual.

Para Moscou, seus aliados chineses e simpatizantes em Nova Déli e outras capitais, a vantagem é outra. A todos interessa, cada um a seu modo, demonstrar musculatura ante o Ocidente.

Que isso traia a dificuldade de o Brasil encaixar um discurso sobre a guerra é dano colateral. Assim como, na mão inversa, o malabarismo para criticar o conflito no Oriente Médio sem melindrar os EUA, fiadores de Israel.

Restaria ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aproveitar a oportunidade, algo que terá também no ano que vem, quando, depois de presidir de forma rotativa o grupo das principais economias ricas e emergentes, estará à frente do Brics e receberá a reunião ambiental COP30.

Com o foco na agenda ambiental, ajudado pela ida do americano Joe Biden à Amazônia, e a inserção de uma versão global de suas preocupações com a fome, o líder petista parecia caminhar na direção correta.

Mas a realidade se interpôs e, de largada, o G20 tem servido como mostra dos percalços que esperam o brasileiro com a volta do republicano Donald Trump à Casa Branca, a partir de janeiro.

O argentino Javier Milei fez valer a alcunha de "meu presidente preferido" que recebeu de Trump. A Argentina assumiu no encontro, como já havia feito na COP29, o papel de representante do trumpismo no ocaso de Biden.

Trouxe dificuldades à negociação do texto final, nada muito diferente daquilo que Washington fará na próxima gestão. De todo modo, é algo precificado.

O que estava fora do roteiro ocorreu por graça e obra da primeira-dama brasileira, Rosângela da Silva, Janja, que ocupou um inexplicável protagonismo.

Gratuitamente, ela ofendeu o bilionário Elon Musk com um termo chulo em inglês. A diatribe pode fazer sucesso em nichos das redes sociais, mas tem implicações. Goste-se ou não, Musk será figura importante na administração da maior potência global.

Sua reação foi também inapropriada, pregando a derrota eleitoral do PT em 2026 —além de futura autoridade, Musk controla a rede social X, outrora Twitter.

Mas o ônus maior fica com Janja e seu marido, cujas referências pretéritas a Trump já o colocavam em posição vulnerável, não menos pela proximidade do americano com Jair Bolsonaro (PL). Se deseja relações amistosas com os EUA, Lula começa mal.

A alarmante internacionalização das facções brasileiras

Folha de S. Paulo

Relatório aponta a presença de máfias estrangeiras no país; urge integração entre autoridades, inteligência e rastreamento do dinheiro

recente emboscada em que encapuzados com fuzis assassinaram um delator do Primeiro Comando da Capital no maior aeroporto do país, ainda em apuração, não deixa de ser um indicativo de que facções brasileiras se assemelham cada vez mais a cartéis e máfias transnacionais, tanto na metodologia como na sofisticação de suas atividades criminosas.

Se de início quadrilhas como o PCC atuavam localmente, sobretudo em assaltos, tráfico de drogas e no controle paralelo de unidades prisionais, a expansão delituosa ganhou novos contornos.

Entre outros, na lavagem de dinheiro, com criptomoedas e bancos digitais, que dificultam o rastreamento; na infiltração no poder público, com cargos eletivos e suspeitas de envolvimento com prefeituras; e em conexões com congêneres de outros países.

Neste último, um relatório a ser divulgado nesta semana aponta um intercâmbio crescente de facções com grupo do exterior, principalmente da América Latina.

O estudo, uma parceria de Diálogo Interamericano, Fundação Fernando Henrique Cardoso e Instituto de Relações Internacionais da USP, analisou políticas de segurança implementadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Ainda que a profissionalização do banditismo e a escalada da violência estejam em níveis menos alarmantes por aqui, o documento revela o aumento da presença de cartéis mexicanos, colombianos, venezuelanos e até albaneses em território nacional.

Notou-se, a exemplo dos "maras", como são conhecidas as gangues da América Central, avanço nas práticas de extorsão, no controle de territórios —especialmente onde a presença do Estado é deficitária— e na influência em administrações municipais.

narcoestado colombiano dos anos 1990 ou a atual realidade mexicana ainda podem ser fantasmas distantes, mas já há no país 72 facções criminosas vinculadas à venda de entorpecentes.

Cumpre ao Brasil intensificar desde já a colaboração entre entes federativos, polícias, Forças Armadas, serviços de inteligência e autoridades internacionais, além de enfrentar a porosidade das fronteiras. O melhor caminho é "seguir o dinheiro", estratégia cujo objetivo visa estrangular transações financeiras e inviabilizar as múltiplas e complexas ações do crime organizado.

Trata-se de tarefa hercúlea, mas a progressiva descriminalização das drogas, apoiada por esta Folha, pode ajudar a concentrar esforços e agentes públicos no combate aos grandes distribuidores —em vez de ações inócuas contra varejistas e usuários.

STF decide que pobres são incapazes

O Estado de S. Paulo

Ao mandar o governo impedir que benefício do Bolsa Família seja usado para pagar ‘bets’, Supremo dá a entender que pobres, por definição, não sabem tomar decisões sobre seu dinheiro

O colegiado do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão unânime, confirmou a liminar do ministro Luiz Fux que obriga o governo federal a adotar mecanismos técnicos para impedir que beneficiários do Bolsa Família utilizem recursos do programa em apostas online, as chamadas bets. Decerto todos os ministros do STF acreditam ter dormido o sono dos justos na noite do dia 14 passado, seguros de terem tomado mais uma daquelas decisões “iluministas” – agora no sentido de resguardar os brasileiros mais desvalidos dos males dos jogos de azar. A demão de virtude, porém, mal esconde o autoritarismo, o preconceito, a incoerência e a afronta à Constituição que subjazem à suposta boa intenção.

Senão vejamos. A decisão do STF é autoritária porque determina como uma parcela dos cidadãos deve dispor de seu próprio dinheiro. O Bolsa Família, deveria ser ocioso lembrar após tantos anos de vigência do programa, não é necessariamente voltado à alimentação dos beneficiários. Fosse assim, seria o caso de o governo federal substituir o Bolsa Família por um “cartão alimentação”, utilizável apenas em vendas e supermercados para compra de comida. Além disso, por que proibir o uso desse dinheiro apenas em apostas, e não, por exemplo, em bebidas alcoólicas, cigarros ou prostituição? Pensando bem, diante do ânimo paternalista do Supremo, é melhor não dar ideias.

Cada brasileiro tem o direito de dispor de sua renda como bem entender, mas, para os doutos ministros do Supremo, isso não se aplica aos cidadãos cuja renda deriva da transferência do Bolsa Família. Estes, conforme o entendimento dos magistrados, são incapazes de tomar suas decisões e de arcar com as consequências delas.

A decisão do STF também é preconceituosa porque trata os brasileiros mais pobres como uma massa de incapazes que precisam ser tutelados pelo Estado, como se a pobreza, por si só, os tornasse ignorantes em termos de dinheiro. Os prejuízos individuais e familiares – sociais e financeiros – do vício em jogos de azar recaem sobre os cidadãos em geral, inclusive, e sobretudo, sobre os que mais têm recursos para apostar nas tais bets. E não consta que os ministros do Supremo cogitem de determinar como esses cidadãos mais abonados, não necessariamente mais ricos, vão dispor de seu patrimônio. Por que, então, fazê-lo em relação aos beneficiários do Bolsa Família, senão por uma visão enviesada sobre eles apenas em razão da fonte de sua renda?

Não bastasse tudo isso, a decisão do STF de determinar que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome impeça o uso do Bolsa Família para apostas online é ainda incoerente. Desde o início, o programa de transferência de renda prioriza as mulheres, em particular as mães chefes de família, como as responsáveis pelo recebimento do benefício. O Estado sempre tratou essas cidadãs como as mais aptas para gerir os recursos, sem jamais tolher sua capacidade de decidir onde e como empregar o Bolsa Família. No máximo, há algumas contrapartidas muito razoáveis, como, por exemplo, manter a vacinação dos filhos em dia, matriculá-los na escola, entre outras. Pois esse mesmo Estado, representado por sua mais alta Corte de Justiça, agora parece não vê-las assim tão responsáveis como outrora.

Por fim, mas não menos importante, a decisão do STF é afrontosa à Constituição, por incrível que possa parecer, em particular ao princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da Lei Maior. Está claro para este jornal que um Estado que considera uma expressiva parcela de seus nacionais incapaz de tomar decisões que afetam diretamente sua vida apenas porque recebe um benefício público é um Estado que a trata de forma indigna.

Os males da jogatina nada têm a ver com pobreza. É possível que, a depender do caso, o impacto das apostas online na renda e no patrimônio de um beneficiário do Bolsa Família seja até proporcionalmente menor do que a dilapidação de grandes fortunas em decorrência do vício em jogos de azar entre os mais ricos. É de paternalismo, puro e simples, que se está tratando.

Uma COP nebulosa

O Estado de S. Paulo

A discussão sobre repasses dos países ricos aos pobres para mitigar as mudanças climáticas será improdutiva se não forem concertados objetivos realistas e meios eficazes para satisfazê-los

Já se sabia que as discussões na 29.ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-29), no Azerbaijão, seriam difíceis, a começar por sua pauta principal: dinheiro. A expectativa é a de que os participantes restabeleçam as metas de recursos transferidos das nações ricas para as pobres enfrentarem as mudanças climáticas. A promessa de 2009, de US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020, foi cumprida com dois anos de atraso. Agora, o secretário-geral da ONU, António Guterres, fala em “trilhões”.

Mas a reeleição de Donald Trump na nação mais rica e poderosa do planeta, e também uma das maiores emissoras de gás carbônico, é um balde de água fria. As mais inequívocas de suas promessas são aquelas contra as políticas climáticas. Os EUA certamente sairão do Acordo de Paris.

Há razões para se angustiar, mas não para se desesperar. Os EUA já haviam abandonado o Acordo antes, e as tratativas seguiram mesmo assim. As eleições de meio de mandato podem levar a um reequilíbrio de forças. O sistema federativo garante alguma autonomia aos governadores, e muitos estão comprometidos com políticas climáticas. Ademais, Trump não revogará os recursos do Pacote Verde de Joe Biden a Estados republicanos e democratas.

Independentemente disso, os membros da COP, até para desacreditar críticos como Trump, precisam alinhar as expectativas a fins realistas e meios eficazes. “Abandonemos qualquer ideia de que o financiamento climático é caridade”, disse Simon Stiell, a maior autoridade climática da ONU. “Um novo financiamento ambicioso serve totalmente ao autointeresse de cada nação.” Em tese, é verdade. Mas, na prática, as questões decisivas são: quanto será gasto, por quem e em quê.

Os países ricos querem cortar emissões, mas a prioridade dos países pobres é erradicar a pobreza. Em teoria e no longo prazo, são objetivos compatíveis. Mas, a curto prazo, os países pobres precisam de combustíveis fósseis para crescer, e, na prática, será preciso fazer escolhas baseadas em cálculos de custos e benefícios.

A expectativa de trilhões a título de “reparações” por danos climáticos dos ricos aos pobres é irrealista. Os US$ 2,5 trilhões que alguns ativistas demandam implicariam um custo aproximado de US$ 1.000 para cada pessoa nos países ricos todos os anos, algo que os eleitores simplesmente não aceitarão. De resto, quanto desse dinheiro seria tolhido do combate à pobreza, desnutrição ou analfabetismo? E mesmo que se chegue a um novo montante para o clima, quais garantias os doadores terão, em termos de governança, de que será bem empregado?

Finalmente, há a questão desse emprego mesmo. Os países pobres continuarão precisando de grandes quantidades de combustíveis baratos e confiáveis para crescer. Hoje, só os fósseis oferecem essas condições, e dinheiro para “reparações” não alterará essa realidade. A solução definitiva é encontrar uma energia verde tão barata e confiável quanto a fóssil. Mas isso exige investimentos em pesquisa e desenvolvimento. De novo, quanto do montante discutido na COP será dedicado a esse fim?

Sem respostas a estas questões, o debate sobre o quanto gastar só levará à acrimônia e frustração, e a tendência é que mesmo os avanços da COP sejam submergidos em um clima de pessimismo. E houve avanços. De saída, aprovou-se um acordo sobre padrões globais para o mercado de carbono, pelo qual países e empresas poderão compensar suas emissões comprando créditos gerados por agentes que já reduziram as suas. Mas o próprio Brasil é um exemplo de como esses avanços podem ser frustrados por falta de diligência. Só agora o País, que sediará a COP-30, está aprovando o seu próprio regulamento para o mercado de carbono.

Isso serve de alerta aos países em desenvolvimento. É do autointeresse dos ricos ajudá-los a mitigar o aquecimento global e seus efeitos. Mas, além de pleitear um montante realista, que não prejudique excessivamente nem os gastos com desenvolvimento social nem com o desenvolvimento dos combustíveis verdes, os países pobres também precisam fazer a sua lição de casa. Se pleitearem recursos a título de mera “caridade”, a chance de recebê-los diminui.

Muito pouco, muito tarde

O Estado de S. Paulo

A dias de dar lugar a um crítico da ajuda à Ucrânia, Joe Biden dá uma força a Kiev

Com mil dias de guerra e a dois meses do final de seu mandato, o presidente americano, Joe Biden, finalmente concedeu a Kiev permissão para atingir o território russo com mísseis americanos. Segundo o jornal francês Le Figaro, França e Reino Unido também autorizaram o emprego de seus mísseis. Aliados europeus pressionam o relutante governo alemão a fazer o mesmo.

A mudança de paradigma é significativa. Pela primeira vez, um país com arsenal nuclear pode ser atacado por mísseis de potências adversárias. Na prática, é improvável que isso implique mudanças dramáticas de rumo no campo de batalha. Mas ao menos dará uma injeção de vigor no moral ucraniano, bastante degradado pelos avanços russos recentes, e fortalecerá a mão de Kiev para negociações que, ao que tudo indica, vão ocorrer no início do governo de Donald Trump.

O sinal verde não é irrestrito. Os ataques, em princípio, estarão limitados à região de Kursk Oblast, parcialmente ocupada por forças ucranianas. A motivação imediata é deter tropas norte-coreanas empregadas na região e dissuadir Pyongyang e Moscou de ampliarem sua colaboração. Os danos à capacidade militar russa serão limitados. Segundo o Pentágono, 90% dos caças russos que estão bombardeando a Ucrânia foram deslocados para áreas fora do alcance dos mísseis. Ainda assim, outros alvos, como depósitos de munição, postos de comando ou núcleos logísticos, podem ser atingidos.

A grande questão é sobre a dimensão dos riscos. Vladimir Putin afirma que um ataque com mísseis ocidentais na Rússia significará um “envolvimento direto” na guerra, insinuando um conflito nuclear. A Ucrânia, porém, já vem utilizando mísseis para atacar posições inimigas na Crimeia, que Moscou considera território russo. Apesar das ameaças, a invasão de Kursk Oblast também não foi respondida com arsenal nuclear. Kiev, por sua vez, não arriscará perder o favor dos aliados transgredindo linhas traçadas por eles.

Putin está em condições relativamente favoráveis. Trump nunca condenou a invasão e favorece abertamente uma solução negociada. O Kremlin nega, mas, segundo a equipe de Trump, os dois líderes teriam conversado e Trump teria pedido contenção. A resposta de Putin nos últimos dias – uma saraivada de mísseis sobre a rede elétrica ucraniana, com grandes danos aos civis às portas do inverno – sinaliza que as negociações serão em termos duros. Mas Putin não pode arriscar encurralar Trump em uma posição de “perdedor” que nem ele nem o establishment republicano tolerarão.

Se Putin sabe que terá de fazer concessões a Trump, Kiev tentará ganhar a seu favor oferecendo vantagens aos EUA, como, por exemplo, a exploração de recursos naturais ucranianos ou o emprego de tropas na Europa.

É provável que até a posse de Trump ambos os lados tentem infligir severos danos um ao outro buscando fortalecer suas posições. Os conflitos devem se intensificar, possivelmente atingindo um pico na guerra. Os riscos de erros de cálculo aumentam. Mas ambos têm razões para não queimar suas fichas em apostas excessivamente temerárias.

Semana decisiva para a crise climática

Correio Baziliense

Nesta semana de fortes negociações internacionais, Manaus e Rio de Janeiro estão aproximadas pela urgência da adoção de medidas que, de fato, contenham a crise climática

O presidente Joe Biden, primeiro mandatário norte-americano a visitar a Região Amazônica, fez uma doação de US$ 50 milhões ao Fundo Amazônia logo depois de desembarcar, no domingo, em Manaus. Em seguida, voou  para o Rio de Janeiro para participar da reunião da Cúpula do G20, iniciada ontem, que reúne os países mais ricos do mundo. São milhares de quilômetros de distância entre uma cidade e outra, mas, nesta semana de fortes negociações internacionais, as capitais estão aproximadas pela urgência da adoção de medidas que, de fato, contenham a crise climática.

A possibilidade de a doação de Biden chegar aos cofres do Fundo Amazônia é bastante remota. O democrata está na reta final do mandato e entregará as chaves da Casa Branca a Donald Trump, que, em janeiro de 2025, inicia o seu segundo governo como presidente dos Estados Unidos e dá sinais claros de que, como na primeira gestão, não investirá em medidas de combate às mudanças climáticas. Ao contrário, ele alega não acreditar no aquecimento global. Além disso, o dinheiro prometido precisa ser aprovado pelo Congresso norte-americano, onde o Partido Republicano, de Trump, fez maioria nas últimas eleições gerais. 

Ao contrário do que prega Trump, desmatamento e queimadas de florestas, emissão de carbono das indústrias, poluição de rios e mares são fatores indissociáveis das alterações climáticas. Estudos científicos e registros sucessivos de fenômenos extremos são a prova disso. No Brasil, as enchentes na Região Sul causaram inéditos e gravíssimos danos materiais e perdas de vida. Biden conheceu uma floresta afetada por uma seca rigorosa histórica, em que cursos d'água caudalosos, como o Rio Negro, secaram e deixaram várias comunidades isoladas. 

Pelo resto do mundo, os extremos causam estragos e surpresas — como a neve que se acumulou, pela primeira vez, no deserto da Arábia Saudita, no início deste mês. As dificuldades em enfrentar o problema também são extensas, não se limitando ao futuro governo americano. Em sua semana decisiva, a 29ª Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas (COP29), em Baku, capital do Azerbaijão, tem como objetivo definir a contribuição dos países para o enfrentamento das mudanças climáticas. É forte, porém, o temor de que o objetivo não saia do papel.

A quatro dias do encerramento da COP, os representantes do Brasil na conferência, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o embaixador André Corrêa do Lago, chefe da delegação brasileira, retornaram ao Brasil para tentar sensibilizar e pressionar os líderes de países ricos, reunidos no G20, para que definam com quanto irão contribuir. Segundo cálculos da Organização das Nações Unidas (ONU), será  necessário arrecadar US$ 1 trilhão por ano, até 2030, para enfrentar e adequar os países mais pobres à nova realidade.

Ante o aumento do aquecimento global, eventos climáticos cada vez mais danosos à vida humana e às cidades, no entendimento das Nações Unidas, não há mais tempo a perder. Não bastam boas intenções. É imprescindível e urgente a construção do consenso entre as nações a fim de tornar reais as intervenções indispensáveis para mitigar os danos das alterações do clima e garantir a continuidade da vida no planeta. Anfitrião dos países mais poderosos do planeta nesta semana, da COP do ano que vem e dono de uma das maiores biodiversidades do planeta, o Brasil é peça-chave nesse desafio vital.

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